No ano de 2023, com o intuito de acompanhar os rápidos avanços tecnológicos, o direito à proteção de dados pessoais foi incluído no rol de direitos e garantias fundamentais da nossa Constituição Federal.
Nessa mesma linha, com o advento da IA, as atenções estão agora voltadas ao desenvolvimento da neurotecnologia e o impacto que esse avanço pode ocasionar na vida das pessoas, mais especificamente na proteção da nossa integridade mental e cognitiva.
E do que se trata a neurotecnologia? A neurotecnologia abarca todas as tecnologias desenvolvidas para entender o cérebro, visualizar seus processos e, inclusive, controlar, reparar ou melhorar suas funções. Assim, são inúmeras as aplicações da neurotecnologia, que vão desde o desenvolvimento de medicamentos mais eficientes por conta da melhor compreensão do sistema nervoso até o desenvolvimento de próteses capazes de suprir as capacidades motoras, sensórias ou cognitivas danificadas por lesões ou doenças.
Sendo assim, a neurotecnologia tem um potencial gigantesco para melhorar nossas vidas, principalmente no campo da saúde1, no tratamento de doenças até hoje consideradas incuráveis, por exemplo. Por outro lado, o emprego de neurotecnologias sem um controle e regras específicas e para fins comerciais pode trazer consequências drásticas, como a violação da integridade mental das pessoas. E esta realidade não está longe de nós. O neurobiólogo espanhol Rafael Yuste2, apontado como um dos mais influentes neurocientistas da atualidade acredita que “em mais de cinco ou dez anos, descobriremos como começar a modificar a atividade cerebral”3. Deste modo, apesar dos inúmeros benefícios, o aperfeiçoamento e a consequente intensificação do uso das neurotecnologias suscitam novos problemas éticos e sociais.
Por conta dessa preocupação, em 2017, um grupo de 25 especialistas de diversas nacionalidades se reuniu na Universidade Columbia em Nova Iorque para analisar o problema, propondo um quadro normativo voltado para a proteção e a preservação do cérebro e da mente humana frente aos avanços da neurotecnologia, os chamados neurodireitos. Os neurodireitos ganharam maior destaque com a criação, em 2019, pelo grupo liderado por Yuste, da “Neurorights Foudation”4, organização para proteção dos neurodireitos que busca envolver organizações, governos, cientistas, empreendedores e o público em geral para aumentar a conscientização global sobre os riscos envolvidos nos avanços neurotecnológicos.
A proposta desses cientistas é da ampliação dos direitos humanos para a inclusão dos neurodireitos, protegendo cinco aspectos da atividade humana contra o potencial uso indevido ou abuso na utilização das neurotecnologias:
- Direito à privacidade mental: proteger as informações pessoais obtidas com o emprego de neurotecnologias, ou seja, os dados sobre a atividade cerebral das pessoas não podem ser usados sem o consentimento delas.
- Direito à identidade pessoal ou à consciência: uso da neurotecnologia não pode perturbar ou alterar o senso de identidade, ou seja, não pode alterar o sentido do “eu” das pessoas.
- Direito ao livre arbítrio: poder continuar escolhendo a forma como nos comportamos sem interferências externas, ou seja, as pessoas devem ser capazes de tomar decisões livremente, sem a manipulação neurotecnológica.
- Direito ao Acesso Equitativo: garantir benefícios e melhorias sensoriais de forma equânime a toda população, a fim de evitar abismos sociais.
- Direito à proteção contra vieses algorítmicos: indivíduos não podem ser discriminados a partir de dados obtidos por meio da neurotecnologia.
Nos últimos anos, tem crescido globalmente o debate sobre a necessidade de os legisladores reconhecerem e protegerem os neurodireitos. O Chile foi o primeiro país do mundo a aprovar uma emenda constitucional5 para incluir os direitos digitais e a proteção da integridade mental perante o avanço das neurotecnologias.
No Brasil, agosto de 2022 o tema passou a ser mais discutido quando a procuradora do Estado de São Paulo, Camila Pintarelli, levou a pauta para o Senado, se tornando uma das principais vozes sobre neurodireitos no país. Segundo Camila, “diante de tantas evoluções na medicina e na tecnologia, o cérebro assumiu um valor jurídico que há 20 anos ele não tinha. Isso é natural, faz parte da caminhada social da humanidade. É essa jornada que faz novas necessidades e carências surgirem. E hoje, temos essa grande carência que é a tutela do nosso pensamento, da nossa mente, da nossa parte mais íntima. É essa virada que traz a necessidade de discutir essa tutela”.6
O projeto foi acolhido pelo senador Randolfe Rodrigues (REDE) e em junto de 2023 foi protocolado uma proposta de emenda constitucional (PEC 29/233) para incluir, entre os direitos e garantias fundamentais, a proteção à integridade mental e à transparência algorítmica.
No texto da PEC 29/23, o senador Randolfe Rodrigues afirma que as neurotecnologias trazem “evoluções tecnológicas e científicas que vão além de a proteção de dados pessoais já inserida dentre os direitos fundamentais de nossa Constituição, pois dizem respeito à própria integridade psíquica e física do ser humano – são verdadeiros neurodireitos”. O senador então conclui que:
“O Brasil, como um dos principais celeiros, mercados e destinatários globais dos progressos da tecnologia, precisa caminhar conjuntamente nessa vereda da reinserção do giro kantiano no contexto das evoluções tecnológicas e científicas, reafirmando seu conhecido protagonismo na defesa dos direitos humanos ao expandir a compreensão jusnormativa da dignidade da pessoa humana diante do progresso da neurotecnologia e do uso dos algoritmos de inteligência artificial, e internalizando em seu conjunto normativo a tutela constitucional a esse novo direito humano: o neurodireito.”
A PEC 29 ainda aguarda a indicação do relator da matéria pelo presidente da CCJ - Comissão de Constituição e Justiça, senador Davi Alcolumbre. O relator ficará encarregado de apresentar um parecer aos demais membros do colegiado responsável por opinar sobre a constitucionalidade das propostas em análise no Senado.
Não obstante, é importante notar a magnitude que o impacto da tecnologia, em especial da Inteligência Artificial, pode ter na nossa vida. O incremento das técnicas da neurotecnologia pode trazer inúmeros benefícios científicos na compreensão do funcionamento do nosso cérebro e, com isso, entender quais fatores contribuem para doenças ainda misteriosas para a medicina, como o Alzheimer, por exemplo. Por outro lado, a depender da forma de utilização desse poder tecnológico, o seu impacto pode ser mais nocivo à sociedade a longo prazo, na medida em que há o risco de perdermos a última barreira de controle que temos sobre nossa privacidade e proteção de nossos dados, a nossa intimidade mental.
Em função disso, é de extrema relevância que se inicie esse caminho em torno de uma regulação protetiva dos direitos mais fundamentais do homem, como o direito à vida privada, à privacidade e à proteção de dados pessoais, aplicada especificamente para os neurodireitos, dando desde já um norte e limites legais ao uso dessa tecnologia, partindose do princípio basilar da ética e da boa-fé.
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1 Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/ciencia/noticia/2024/04/cerebro-humano-detalhado-pormaquina-de-ressonancia-magnetica-mais-poderosa-do-mundo.ghtml
2 Disponível em: https://veja.abril.com.br/ciencia/conheca-rafael-yuste-cientista-que-defende-os-neurodireitos 3 https://exame.com/ciencia/neurotecnologia-permitira-alterar-funcionamento-mental-dizcientista/
3 Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9386704&ts=1686688862951&disposition=inline
4 Disponível em: https://neurorightsfoundation.org/
5 O Chile é um país pioneiro a consagrar a proteção dos neurodireitos a nível supralegal com a modificação do artigo 19-numeral 1 de sua Carta Magna:
Artículo 19.- La Constitución asegura a todas las personas:
1º.- El derecho a la vida y a la integridad física y psíquica de la persona.
6 Disponível em: https://futurodasaude.com.br/neurodireitos/