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Mickey (e Minnie) Mouse: tutela protetiva e o domínio público

O ano novo trouxe especulações sobre o fim dos direitos autorais de Mickey e Minnie Mouse da Disney. No entanto, os direitos não entraram completamente em domínio público, mas agora podem ser usados livremente, abrindo discussões jurídicas e culturais.

22/4/2024

1. Introdução e apresentação geral

A mudança de ano trouxe uma peculiar alteração no mundo dos fatos que reverbera efeitos de interesse para o Direito. Trata-se de evento mundialmente noticiado1 envolvendo duas criaturas animadas que simbolizam a fundação de um império global na indústria de produção cultural. 

Segundo efusivamente reportado pela mídia jornalística – nacional e internacional –, este seria o início de uma nova era, pois representaria o fim dos Direitos Autorais sobre as personagens Mickey e Minnie Mouse da “The Walt Disney Company” (doravante, “Disney”). Nesse sentido, encontram-se diversas manchetes de cunho assertivo: “Mickey entra em domínio público nesta segunda [...]”3; “Welcome to the Public Domain, Mickey Mouse”2 etc. No entanto, questiona-se se seria mesmo o fim da proteção de exclusiva sobre os roedores mais famosos da Arte.

Em vista de distintas curiosidades que possam emergir desse acontecimento, o presente e breve artigo buscará esclarecer a respeito dos principais aspectos fáticos e jurídicos envolvidos. Por oportuno, pondera-se em que medida e extensão os “Direitos Autorais (no caso, Copyright3) das personagens” teriam se extinguido. Observar-se-á que, em realidade, os direitos da Disney sobre Mickey e Minnie Mouse (i) não ingressaram, integralmente, em domínio público no mundo, tampouco que a empresa tenha perdido toda a tutela protetiva sobre elas, e que, (iii) a partir de agora, todo e qualquer interessado poderá, livremente, utilizá-las no meio e forma que quiserem.

2. Um histórico sobre o alargado prazo de proteção sobre Mickey e Minnie Mouse

A personagem Mickey Mouse, bem como a sua fiel parceira Minnie Mouse, fora(m) concebido(s) pelo sr. Walter Elias Disney (conhecido como “Walt Disney”) – através da parceria com o seu colaborador criativo, Ub Iwerksm, e de seu “aprendiz”, Les Clark –, como fruto de engenhosidade criativa original de seu espírito humano4. Há, assim, a existência de duas criações intelectuais estéticas (corpus mysticum), embora possam se externalizar nos mais distintos meios do mundo físico (corpus mechanicum), sobre as quais recaem o filtro constitucional protetivo respectivo, que se destinam à fins e funções específicas, com duração certa prevista em lei.

As personagens debutaram ao público no ano de 1928, ao aparecerem na produção de animação “Steamboat Willie”. De acordo com a legislação da época nos Estados Unidos da América (“Copyright Act of 1909”), o prazo de proteção dos Direitos Autorais era correspondente a 28 anos contados da publicização da obra, podendo-se renovar por igual período. Logo, a proteção de exclusiva conferida à proprietária dos direitos intelectuais dessas personagens poderia findar até em 1984 (e a Disney chegou a utilizar o mecanismo de renovação protetiva). 

Entretanto, os integrantes do Congresso Federal dos EUA votaram e editaram uma nova legislação de Direitos Autorais (“Copyright Act of 1976”), na qual trouxe em seu conjunto de inovações um novel interregno protetivo: 75 anos, contados a partir da data da publicação da obra intelectual que se enquadravam na categoria “work made for hire” (“trabalho contratado” – tradução livre). E, considerando que aquelas versões das personagens foram criadas em função de vínculo laboral com a Disney, o prazo de proteção se estendeu até o ano de 2004.

Ocorre que, após intenso lobby político de agentes econômicos, aprovou-se instrumento legislativo que permitiu a adição de tempo protetivo (“Copyright Term Extension Act of 1998”). Curiosamente apelidado de “Mickey Mouse Protection Act”5, determinou que as criações “work made for hire” teriam um acréscimo de mais 20 anos ao seu prazo de proteção.

3. A natural extinção dos direitos patrimoniais de exclusiva e regras do domínio público

Ambas as criações estéticas eram protegidas, de modo temporário e certo, pela incidência dos Direitos Autorais. Em específico, a Pessoa Jurídica Disney, titular, é a detentora dos direitos patrimoniais sobre aquelas personagens – ao passo que os direitos morais, inalienáveis, atrelamse aos seus originadores6. Desse modo, p.e., a empresa pode impedir terceiros de apropriá-los sem prévia autorização, observadas limitações e exceções (doutrina do “fair use” ou “uso razoável”).

No entanto, com o advento do termo previsto em lei, finda-se o prazo de proteção que resguardava esse direito de cunho patrimonial. Dessa feita, o objeto então protegido pelo Direito Autoral (corpus mysticum – cada personagem Mickey e Minnie de 1928) ingressou no espaço de livre circulação de informações que se denomina “domínio público”. Trata-se de um ambiente inderrogável, cuja livre apropriação por parte de todo e qualquer integrante da coletividade é permitida (ou melhor, é a regra9). Esta verdadeira consequência geral do sistema da propriedade intelectual se coaduna com o animus do constituinte (e de elaboradores de tratados internacionais) em promover o mais livre e amplo acesso à cultura dos povos, à emancipação informacional das sociedades, aos exercícios das liberdades naturais do ser humano e muito mais.

O domínio público é, ainda, territorial. Ou seja, cada país possui ampla autonomia para determinar regras específicas sobre a sua extensão, motivo pelo qual existem diferentes prazos de proteção para direitos patrimoniais sobre as criações estéticas (protegida pelos Direitos Autorais) pelo mundo, seguindo-se a dinâmica de cada lei interna, respeitados os limites constitucionais. Muito embora os tratados internacionais sobre a matéria (como a Convenção de Berna de 1886 – decreto 75.699/75) homogeneízem ordens gerais e padrões regulamentadores, inexiste uma previsão de prazo que seja universal e mandatório, mas mera diretiva de mínimo protetivo7.

4. Tutela protetiva sobre as criações intelectuais Mickey e Minnie Mouse

Assim, conclui-se que (i) o que verdadeiramente ingressou em domínio público não foi a personagem Mickey e Minnie Mouse, mas, tão somente, os direitos patrimoniais de exclusiva que eram inerentes àquelas precisas versões animadas debutadas em “Steamboat Willie”. Ou seja, ao contrário do que se poderia sugerir, apenas as versões de 1928 (e não as posteriores) que não mais se encontram sob o império da exclusividade da Disney, podendo ser utilizadas, em tese, por todo e qualquer interessado. Como exemplo concreto, destaca-se o trabalho do diretor Jamie Bailey e roteirista Simon Phillips (“Mickey’s Mouse Trap”)8, que consiste em um filme do gênero terror contendo a versão de Mickey Mouse como protagonista com os precisos traços da obra de 1928.

Versões das personagens Mickey e Minnie Mouse em “Steamboat Willie” (1928)

Versão utilizada no filme “Mickey’s Mouse Trap” (2024)

Em acréscimo, dada a natureza territorial do domínio público, verifica-se que, com o fim do alargado prazo estatuído no Copyright Act of 1976, o que realmente se deflagrou no início do ano foi a extinção dos direitos patrimoniais exclusivos sobre aquelas versões das personagens em solo estadunidense. Isto significa, destarte, que essas conclusões não podem ser transplantadas para o Brasil, pois prevê regras específicas para regulamentar o seu domínio público nacional.

Para além da ponderação realizada acerca da identificação do domínio público pertinente no qual incidiu os direitos patrimoniais de exclusiva dessas específicas obras (corpus mysticum), há que se destacar, ainda, (ii) que o entendimento sobre o “livre e amplo” acesso da coletividade àquelas versões de 1928 é, em realidade, mais restrita do que se poderia imaginar. 

Isso se dá, em razão de a Disney possuir marcas9 para tais versões de Mickey e Minnie Mouse vigentes no território dos EUA (e em outros países). Frisa-se, todavia, que a interdição condicionada pela tutela das criações distintivas será legítima apenas no espaço concorrencial10, impedindo-se que terceiros utilizem da imagem de Mickey e de Minnie como marca11 nas suas especificações. Com esses registros, de acordo com a lei estadunidense de marcas (Lanham Act), veda-se o uso dessas versões das personagens quando aplicadas em produtos e/ou serviços que ocasionem, para o público consumidor, atos de confusão e/ou associação indevida.

Considerando, assim, essa vertente de tutela jurídica existente às versões de “Steamboat Willie” das personagens, infere-se que (iii) Mickey e Minnie Mouse não estão à mais plena e livre disposição para que todo e qualquer interessado possa utilizá-las no meio e forma que quiserem.

5. Conclusões e apontamentos finais

O ano de 2024 trouxe com o supramencionado evento ou factoide uma reflexão para a sociedade, acerca da extensão temporal dos direitos patrimoniais de Autor. Demonstrou-se, assim, que (i) apesar de os direitos patrimoniais de exclusiva sobre tais criações intelectuais estéticas Mickey e Minnie Mouse de “Steamboat Willie” terem caído em domínio público (estadunidense), (ii) ainda há faceta de tutela protetiva à Disney com relação aos famosos ratinhos (que se estende aos países com essas marcas em vigor), em meio aos atos de comércio no âmbito concorrencial. 

Com efeito, (iii) em solo estadunidense, cujas marcas seguem em pleno vigor, não poderá o interessado apropriar-se de Mickey Mouse e de Minnie Mouse (versões de “Steamboat Willie”) como figuras que exerçam função marcária (e.g., as de assinalamento e de diferenciação de bens de consumo industriais), para identificar e distinguir produtos e/ou serviço12. Entretanto, toda atenção é necessária para que não se chancele uma marcha contra o domínio público, de modo a autorizar o uso de tais criações distintivas para obstar o livre acesso às criações estéticas. 

Por isso que, por exemplo, entende-se que a Disney não pode opor-se, legitimamente, ao uso das versões de 1928 de Mickey e Minnie Mouse no ambiente das artes (como o longametragem “Mickey’s Mouse Trap”), nos países nos quais os direitos patrimoniais tenham se extinguido. Todo cuidado é pouco, contudo, com o uso dessas imagens em produtos e/ou serviços no ambiente industrial de países para o qual estejam vigentes marcas de titularidade da Disney.

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1 Informação disponível em: https://www.nytimes.com/2024/01/01/arts/public-domain-mickey-mouse.html>, acesso em 11/2/24. 3 Informação disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/mickey-entra-em-dominio-publico-nesta-segunda-1osaiba-o-que-a-disney-fara/, acesso em 11/02/2024.

2 Informação disponível em: https://www.theverge.com/24006670/mickey-mouse-steamboat-willie-enters-copyright-publicdomain-2024, acesso em 11/02/2024.

3 “The common law copyright model is said to be primarily concerned with encouraging the production of new works. This is reflected in copyright law’s emphasis on economic right, such as the right to produce copies. [...] In contrast, the civil law droit d’auteur model is said to be more concerned with the natural rights of authors in their creations.” (BENTLY, L. & SHERMAN, B. Intellectual Property Law. 3ª ed. Nova Iorque: Oxford University Press, 2009, p. 32)

4 “A obra estética é, por isso, um retículo significacional, por traduzir elementos de cultura que a vinculam a uma estreita e singular gama de valores, sentidos, anseios, perspectivas e inspirações que encontram sua síntese no espírito de determinado autor.”

(BITTAR, Carlos Alberto. Direito de Autor. 7ª ed. Atualizada por Eduardo C. B. Bittar. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 21)

5 Informação disponível em: https://hls.harvard.edu/today/harvard-law-i-p-expert-explains-how-disney-has-influenced-u-scopyright-law-to-protect-mickey-mouse-and-winnie-the-pooh/, acessado em 11/02/2024. 

6 “Conforme a teoria dualista, relativa à natureza de direitos de autor, diferentemente da parcela moral – a estreita vinculação entre a pessoa do autor e sua criação intelectual –, a parcela patrimonial se refere à exploração econômica que o autor pode fazer de sua obra. A expressão “pode” não é acidental, mas proposital, porque há atributo exclusivo do autor a autorização – ou não (e em que condições) – do uso de sua obra.” (COSTA NETTO, José Carlos. Direito Autoral no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 239) 9 “Na verdade, no sistema constitucional brasileiro, e de outros países, o domínio público seria o estado jurídico natural para os conhecimentos tecnológicos; e o exercício dos direitos de patentes é uma exceção a essa regra geral. Assim, essas três hipóteses são exceções à regra geral de que o conhecimento técnico é de livre utilização.” (BARBOSA, Denis Borges; BARBOSA, Pedro Marcos

Nunes. O Código da Propriedade Industrial conforme os Tribunais, v.1. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2018, p. 953)

7 “Em síntese, a Convenção de Berna estabelece os parâmetros mínimos de proteção. Assim, o patamar geral a ser observado é a vida do autor mais cinquenta anos. No entanto, esse mínimo conta com algumas exceções: [...]. Será sempre facultado aos países proteger as obras por tempo maior do que o fixado na Convenção.” (BRANCO, Sérgio. O Domínio Púbico no Direito Autoral

Brasileiro: uma obra em domínio público. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2011, pp. 98-99)

8 Informação disponível em: https://variety.com/2024/film/news/steamboat-willie-horror-film-mickey-mouse-public-domaincopyright-1235849861/, acesso em 11/02/2024.

9 “A marca é um bem incorpóreo que não se confunde com o produto material sobre o qual é grafada. A marca é um primeiro (o signo) que identifica um produto ou serviço (o segundo) a um terceiro (o mercado).” (SCHMIDT, Lélio Denicoli. A Distintividade das Marcas: secondary meaning, vulgarização e teoria da distância. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 73)

10 “Desta feita, pode-se constatar que direitos de propriedade, privilégios, monopólios e o uso do direito obrigacional através do sistema contratual são o núcleo da interdição competitiva. Neste norte, apesar da causa mediata da interdição sempre advir do direito posto, formal (direito objetivo), o liame imediato do titular para com o terceiro concorrente será fruto do direito subjetivo.” (BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Curso de Concorrência Desleal. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2022, p. 106)

11 “Como mencionado, a marca, ao designar um produto, mercadorias ou serviço, serviria, em princípio, para identificar a sua origem e distinguir a atividade empresarial em face dos competidores.” (BARBOSA, Denis Borges. A Proteção das Marcas: uma perspectiva semiológica. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2017, p. 12)

12 “Com o passar dos anos, o mesmo desenho do ratinho simpático passou a ser associado à imagem da Disney e passou a identificar produtos e serviços desse conglomerado empresarial. Com isso, além da função de obra protegida pelo direito autoral, ele passou a funcionar como signo distintivo e, por essa razão, quando estava cumprindo esse papel de sinal distintivo, era tutelado pelo regime jurídico marcário e passou a ter proteção, naquelas circunstâncias, por tempo indeterminado, dentro das classes que protegem as atividades exercidas pelas indústrias Disney.” (PORTO, Patrícia Carvalho da Rocha. Limites à Sobreposição de Direitos de

Propriedade Intelectual. In: Revista da ABPI, n. 109. Rio de Janeiro, nov./dez., 2010, pp. 04-05)

Lucas Torres Santini Campos
Sócio do Escritório Denis Borges Barbosa Advogados. Bacharel em Direito pela PUC-Rio com ênfase em Contencioso.

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