Migalhas de Peso

A vocação do nosso tempo para a codificação civil

Reforma do Código Civil é comparada à "síndrome de Napoleão". Renomear pode eternizar juristas. Miguel Reale presidiu a redação do código atual.

12/4/2024

Ouvi de um querido colega, que não sei se gostaria de ser mencionado, que essa reforma do Código Civil, impudentemente apresentada como "novo Código Civil" no site do Senado Federal, está sendo movida por uma "síndrome de Napoleão". Reza a lenda que, nas viragens do século XVIII, Napoleão Bonaparte teria garantido que seu nome seria lembrado, mais em função do código francês de 1816, do que de suas conquistas bélicas.

Batizar um código torna inesquecível um jurista. Que o digam Bevilaqua e Miguel Reale. Este último não era sequer civilista. (Napoleão também não era). Afirmou-se na cena jurídica como advogado e filósofo do direito. Presidiu a comissão de redação do código civil que está hoje em vigor, composta por seis outros nomes consagrados em suas disciplinas dogmáticas. Mais do que isso, participou muito ativamente nos seis anos (seis anos!) de elaboração de seu anteprojeto. Debateu-o publicamente com outros civilistas de estirpe, dentre os quais, o mais destacado foi Caio Mário da Silva Pereira. Ao longo dos quase trinta anos (quase trinta anos!) de sua tramitação, participou dos diálogos sobre a proposta, fez concessões em alguns casos, opinou nos trabalhos legislativos de adaptação dos dispositivos à Constituição de 1988. O próprio Caio Mário, por vezes é lembrado apenas como "detrator" do código civil, o que não lhe faz justiça. Ele mesmo esclareceu, por diversas vezes, que se tratava de combater o bom combate em prol do refinamento daquela proposta que foi feita para se tornar lei. Lei que valeria sobre todos e todas. Que precisa ser discutida em seus próprios termos, e, até onde se pôde registrar historicamente, suas objeções só fizeram bem ao texto que entrou em vigor. Dizer que o resultado dos trabalhos foi bom, é algo opinativo. Convém destacar ao menos este ponto: A coisa foi trabalhada. Foi debatida. Não por meses, mas por anos, décadas.

Há o temor de que ocorra, agora, algo muito diferente. Foi organizada uma comissão de trinta e oito juristas, dentre os quais estão, outra vez, muitos dos melhores nomes do país. Entretanto foi estabelecido um cronograma apertado, que propunha realizar tudo em apenas seis meses. O prazo seria exíguo, ainda que a meta fosse apenas aquela inicial de propor atualizações e ajustes aos dispositivos do código. Para agravar a situação, a coisa escalou muito rápido; o que era "atualização" já apresenta tantos adendos, tantas emendas, que desnatura completamente aquele corpo normativo debatido por Caio Mário e Reale, dentre tantos outros, e ao longo de tantos anos. Não se deve supor que, com muitos colaboradores seja mais fácil dividir as tarefas e tratar de tudo mais rapidamente como em um mutirão. Na verdade, é o contrário. Quanto maior o número de envolvidos, maior o tempo necessário para construir convergências. Mais tempo ainda é necessário quando o texto se abre ao debate democrático mais amplo. Fala-se, no interior da comissão, que qualquer que seja o resultado dos trabalhos, ele ainda terá de passar, naturalmente, pela tramitação legislativa. Porém, nós, que aqui estamos, advogadas e advogados, juízas e juízes, professoras e professores de direito – ou apenas nós, sociedade civil –, tememos a apresentação de uma proposta de lei, para tramitar a toque-de-caixa, como temos visto acontecer nos últimos anos, a partir de certas interpretações e reformas dos regimentos internos da Câmara e do Senado.

Embora se trate, por enquanto, apenas da elaboração de um anteprojeto, a urgência com que tem sido pautada a questão não deixa de causar estranhamento e alvoroço. Da parte da sociedade, ou dos estudiosos da matéria, não estava posta nenhuma demanda reformista para tão cedo (senão, talvez, em relação ao livro do Direito de sucessões). De onde veio isso? E, mais importante: para onde está indo? Nem os membros da própria comissão puderam processar as mudanças que estão sendo colocadas. Os sintomas de desconforto aparecem. Alguns dos grandes nomes ali designados estão se tornando fiadores de um texto que deve conter pontos positivos, certamente. Mas contém também muitos e muitos outros que, para ficar nos eufemismos, apresentam-se, no mínimo, controversos. E a reforma já aparece como uma grande oportunidade para emplacar jabutis. Está claro que nem todos concordam com tudo. Se houvesse tempo para analisar com calma o que está sendo colocado, é possível que a maioria discordasse da maior parte. O grupo se mantém coeso, porém, entoando o mantra de que a democracia demanda concessões. O que não é verdade. A democracia demanda diálogo, debate. O consenso construído no atropelo da deliberação é outra coisa. 

O que falta à proposta? Falta trabalho. Não é dizer que os membros da comissão não tenham trabalhado arduamente para bem desempenharem o papel a que foram chamados. Muito pelo contrário. Mas é dizer apenas que seis ou oito meses de trabalho não são o suficiente. Isso não é uma crítica à diversidade (ainda insuficiente) na composição dos quadros da comissão, ou à metodologia de trabalho empregado. A experiência tem tudo para ser positiva e interessante. Senão por esse único dado: O tempo. O tempo que, aqui, é tratado na sua ambivalência. Que é o tempo cronológico, contado em horas, dias, semanas e meses. O tempo que é necessário para fertilizar o solo, brotar a semente, produzir o fruto. E que é também o tempo kayrótico, o tempo oportuno, a compreensão do momento próprio e adequado. Do tempo de plantar, do tempo de colher. Em que momento estamos? Houve tempo suficiente? Haverá tempo?

Quando Savigny questionou a vocação de sua época para a legislação e a ciência do direito, era do tempo kayrótico que ele falava. Em relação a isso, a questão que se coloca para nossa época e para a nossa geração é ainda mais grave. Vivemos a era dos imediatismos e do império das aparências. Multiplicam-se as comparações entre um "antes" e um "depois" que suprimem tudo o que ocorreu "durante". Para nos venderem um cosmético, vemos a foto de um rosto maduro ao lado de outro rejuvenescido, invertendo a lógica do antes e o do depois na vida humana. (É disso que se trata? De "rejuvenescer" um código civil, invertendo os valores da prudência, associada à maturidade, e da impulsividade, associada à juventude?). Parte da doutrina do direito civil tem se dobrado às exigências imediatistas do concursionismo. O pragmatismo tem prevalecido sobre a crítica. A produção intelectual tem se contraído para caber nas fórmulas instagramáveis. Essa lógica também atravessa para as dinâmicas do poder Legislativo e do Judiciário, cujas imagens têm sido recortadas para exibições lacradoras e descontextualizadas nas redes sociais. Tememos, agora, que este nosso precioso instrumento de trabalho, o Código Civil, seja também sequestrado por um Zeitgeist assombroso. 

Quem assiste aos cortes da transmissão das sessões públicas de reunião da comissão pela TV Senado pode ficar com a impressão de que é fácil fazer um "novo Código Civil" em apenas alguns meses. Quem assiste a transmissão inteira, vê bem que não é assim. E percebe que muitas das questões postas em discussão não estão suficientemente maduras para serem pautadas e legisladas. Mas o cronograma se impõe. Os temas são postos em votação e votados. Há pressa, por razão nenhuma. Ao menos, não por alguma razão legítima. Tanta correria parece ser para evitar que se avolumem as análises externas. Permitir que algum projeto passe, passe logo, independente de sua qualidade. Impedir que o debate pegue tração.

A transparência com que se exibem as discussões é positiva, fundamental, e igualmente inédita. A princípio, isso é bom, contando que a transparência não se apresente de forma meramente performática e exibicionista. Ou será apenas, e outra vez, o sintoma dessa malfadada época, que tende a produzir, talvez, o pior código civil já elaborado em toda a nossa história de tentativas. E que, durante a tramitação legislativa, vulnerável aos terraplanismos das extremas direitas e ao lobby dos grandes interesses empresariais, só tende a piorar. 

A crítica não vem por mal. É que é preciso combater o bom combate. É fácil entender a ansiedade de se chegar logo à meta, e parear com um Napoleão, um Bevilaqua ou um Miguel Reale na história das codificações. Mas um código não se faz sem se dar à devida interlocução com quem faz as vezes de um Rui Barbosa, de um Caio Mário, que, nesta história, costumam ser lembrados pelo avesso.  

Missão ingrata essa dos que correm na direção contrária sem pódio de chegada ou beijo de namorada. Mas necessária. Um código civil não se faz apenas pelos que reivindicam sua autoria. E, a bem da verdade, melhor seria se abandonássemos logo esse personalismo dos códigos, e entendêssemos que um código não tem autores. O que está em jogo nos códigos é muito sério e tende a se projetar sobre a vida privada de todo um povo. Tem de ser feito, sempre, a múltiplas mãos, e de modo intergeracional.

Sim, um código também não se faz de uma só vez. O projeto que prospera, vem depois de outros que se frustram. E todo o processo é necessário. Ninguém dirá que foi inútil o trabalho de Teixeira de Freitas, para ficar apenas em um único exemplo, e o maior de todos. E assim, também, o produto dos trabalhos desta comissão, não precisa se perfazer em projeto de lei tão-logo, menos ainda em lei em vigor. Vale a proposta para animar o debate. E o debate há de valer muito mais do que a proposta em si.

Precisamos de tempo. Certamente que o relatório final há de apresentar propostas de atualização interessantes. Mas precisaremos de tempo para avaliá-las e queremos que seja dado o tempo devido, o tempo necessário, para que assim seja feito. Isso é o que está em questão neste momento crucial da história do direito civil brasileiro: Qual a vocação da nossa geração para a legislação e a ciência do direito? Não é dizer que não a temos. Isso ainda está por ver. Daremos à renovação deste código o tempo que ela demanda? Pois há muito chão para caminhar até que se dê a hora de uma nova codificação, efetivamente. E deve haver algum provérbio oriental que advirta sobre o erro de se pensar que a vida é sobre chegar logo ao destino. A vida não é o destino, mas o caminho que se faz até ele.

O projeto que está em deliberação deve servir, antes de tudo, para animar o debate da codificação, e basta. Se não servir para isso, não servirá para nada. Nós, que aqui estamos, advogadas e advogados, juízas e juízes, professoras e professores – ou, nós, sociedade civil, apenas – não queremos simplesmente assistir a tudo bestializados.

Thaís Fernanda Tenório Sêco
Professora de Direito na Universidade Federal de Lavras (UFLA), doutora em Direito pela UFMG, Mestre em Direito Civil pela UERJ.

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