Em um mundo globalizado, são cada vez mais frequentes as contratações de bens e serviços no âmbito internacional, tanto pelas empresas privadas quanto pela própria administração pública.
A assertiva ganha reforço quando o gestor público se depara com a necessidade da contratação de bens e serviços, voltados a atividades relacionadas à pesquisa, à inovação científica à assistência e ao desenvolvimento tecnológico no âmbito da saúde pública.
Parece razoável compreender que as aquisições relativas à produção de materiais e insumos que serão direcionados à produção de bens e serviços voltados à saúde, se diferem das compras rotineiras da Administração.
Isto porque, apesar da vedação à escolha de marca, assim como da definição de especificações exclusivas nas licitações públicas, cujo cerne é o de garantir o princípio da impessoalidade, por vezes o gestor público, arrimado em prévia justificativa técnica, necessita contratar o bem ou serviço que atenda à necessidade pública; como por exemplo, nos casos de bens e serviços já padronizados (art. 40, V, “a”, c/c art. 41, I, “a” e art. 47, I, todos da lei 14.133/21).
No tocante às contratações públicas e ressalvado os casos de inexigibilidade e dispensa de licitação, previamente definidos em lei (arts. 74 e 75, da lei 14.133/21), é sabido que no âmbito da administração pública, as obras, serviços, compras e alienações são contratados mediante processo de licitação que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações (inciso XXI, do art. 37, da CRFB/88).
A partir de 31/12/23, a lei 14.133/21, passou a ser obrigatória para os novos procedimentos licitatórios, sem prejuízo da aplicação da lei 8.666/93, para as contratações já firmadas pela Administração até o término das obrigações firmadas entre as partes em respeito ao princípio do tempus regit actum.
Prosseguindo sobre o tema, não há dúvidas de o contrato administrativo é um ajuste de vontades realizado entre particulares e a Administração Pública; por esta razão, possuem cláusulas específicas.
Por serem firmados com o poder público, os contratos administrativos possuem cláusulas próprias, consoante o disposto no art. 92, da lei 14.133/21, cujo conteúdo merece transcrição:
Art. 92. São necessárias em todo contrato cláusulas que estabeleçam:
- o objeto e seus elementos característicos;
- a vinculação ao edital de licitação e à proposta do licitante vencedor ou ao ato que tiver autorizado a contratação direta e à respectiva proposta;
- a legislação aplicável à execução do contrato, inclusive quanto aos casos omissos;
- o regime de execução ou a forma de fornecimento;
- o preço e as condições de pagamento, os critérios, a data-base e a periodicidade do reajustamento de preços e os critérios de atualização monetária entre a data do adimplemento das obrigações e a do efetivo pagamento;
- os critérios e a periodicidade da medição, quando for o caso, e o prazo para liquidação e para pagamento;
- os prazos de início das etapas de execução, conclusão, entrega, observação e recebimento definitivo, quando for o caso;
- o crédito pelo qual correrá a despesa, com a indicação da classificação funcional programática e da categoria econômica;
- a matriz de risco, quando for o caso;
- o prazo para resposta ao pedido de repactuação de preços, quando for o caso;
- o prazo para resposta ao pedido de restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro, quando for o caso;
- as garantias oferecidas para assegurar sua plena execução, quando exigidas, inclusive as que forem oferecidas pelo contratado no caso de antecipação de valores a título de pagamento;
- o prazo de garantia mínima do objeto, observados os prazos mínimos estabelecidos nesta lei e nas normas técnicas aplicáveis, e as condições de manutenção e assistência técnica, quando for o caso;
- os direitos e as responsabilidades das partes, as penalidades cabíveis e os valores das multas e suas bases de cálculo;
- as condições de importação e a data e a taxa de câmbio para conversão, quando for o caso; (grifamos)
- a obrigação do contratado de manter, durante toda a execução do contrato, em compatibilidade com as obrigações por ele assumidas, todas as condições exigidas para a habilitação na licitação, ou para a qualificação, na contratação direta;
- a obrigação de o contratado cumprir as exigências de reserva de cargos prevista em lei, bem como em outras normas específicas, para pessoa com deficiência, para reabilitado da Previdência Social e para aprendiz;
- o modelo de gestão do contrato, observados os requisitos definidos em regulamento;
- os casos de extinção.
Neste diapasão, para a formalização dos ajustes administrativos para a compra de bens e serviços, também foi previsto no art. 95, da lei 14.133/21, que o instrumento de contrato é obrigatório, salvo nas hipóteses, em que a Administração poderá substituí-lo por outro instrumento hábil, como carta-contrato, nota de empenho de despesa, autorização de compra ou ordem de execução de serviço, assim como nos casos de dispensa de licitação em razão de valor e compras com entrega imediata e integral dos bens adquiridos e dos quais não resultem obrigações futuras, inclusive quanto a assistência técnica, independentemente de seu valor.
Nota-se que, a priori, o legislador previu apenas duas hipóteses que viabilizam, sob a égide da lei 14.133/21, a substituição do instrumento formal de contrato por outros instrumentos hábeis; a primeira, relativa à dispensa de licitação em razão do valor; a segunda, referente às aquisições consideradas como de entrega imediata.
A dispensa de licitação em razão do valor encontra-se disciplinada no art. 75, da lei 14.133/21, in verbis:
Art. 75. É dispensável a licitação:
- para contratação que envolva valores inferiores a R$ 100.000,00, no caso de obras e serviços de engenharia ou de serviços de manutenção de veículos automotores (Vide decreto 11.871/23) Vigência.
- para contratação que envolva valores inferiores a R$ 50.000,00, no caso de outros serviços e compras; (Vide decreto 11.871/23) Vigência.
De acordo com o art. 6º, X, da lei 14.133/21, as aquisições de entrega imediata limitam-se às entregas realizadas no prazo de em até 30 dias, contados a partir da emissão da ordem de fornecimento pela Administração (pedido):
Art. 6º Para os fins desta lei, consideram-se:
(...)
X - compra: aquisição remunerada de bens para fornecimento de uma só vez ou parceladamente, considerada imediata aquela com prazo de entrega de até 30 dias da ordem de fornecimento;
Neste contexto, salvo as hipóteses acima, estaria a Administração fadada à celebração do instrumento formal de contrato que na prática, poderá não resultar na melhor solução para as partes envolvidas.
Isto porque, a elaboração de um modelo formal de contrato para a aquisição de bens e serviços com parceiros estrangeiros inevitavelmente nos reporta à necessidade de observância a exigências peculiares decorrentes de tratados e convenções, a fim de tornar possível a fixação de regras como: a representação do estrangeiro no país; as condições de importação; a data e a taxa de câmbio para conversão; a forma de pagamento; a fixação de garantias contratuais; o estabelecimento das sanções aplicáveis aos casos de descumprimento contratual; a definição do de foro de competência, dentre outros, que certamente irão impactar nos custos do negócio jurídico pretendido.
Todavia, é importante destacar que como medida de flexibilização foi previsto no art. 40, I, da lei 14.133/21, que em determinados casos é possível a adoção de condições próprias dos contratos regidos pelo setor privado:
Art. 40. O planejamento de compras deverá considerar a expectativa de consumo anual e observar o seguinte:
- condições de aquisição e pagamento semelhantes às do setor privado;
Neste diapasão, a Receita Federal do Brasil, órgão integrante da Administração Pública direta, atualmente subordinada ao Ministério da Fazenda, dentre outras atribuições, responsável pelo controle aduaneiro disponibilizou em seu sítio eletrônico o Manual de Importação, onde constam os documentos que devem instruir o despacho de importação; dentre eles, a fatura comercial, expondo que:
"A fatura comercial é o documento de natureza contratual que espelha a operação de compra e venda entre o importador brasileiro e o exportador estrangeiro.”1:
No citado manual, consta a informação de que a DI - Declaração de Importação deverá ser obrigatoriamente instruída com a via original da fatura comercial, assinada pelo exportador (art. 553, inciso II do Regulamento Aduaneiro c/c art. 18 da IN SRF 680/06) ou seu representante legal, conforme ADI RFB 14/07, c/c o art. art. 557, do Regulamento Aduaneiro (decreto 6.759/09), que aponta as informações que devem conter numa fatura comercial.
Por outro lado, não há dúvidas de que caberá à Administração Pública o juízo de valor, oportunidade e conveniência acerca da elaboração e consequentemente, da celebração do instrumento formal de contrato, face à complexidade do objeto, que por vezes, exigirá a fixação de regras e condições não contempladas na fatura comercial.
Assim, à luz do art. 40, I, da lei 14.133/21, c/c as orientações constantes no manual de importação2disponibilizado pela Receita Federal do Brasil, cremos na viabilidade jurídica acerca da adoção da fatura comercial para fins de instrumentalização das contratações internacionais feitas pela Administração Pública, para fins de atingimento de suas atividades finalísticas.
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1 Disponível em: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/aduana-e-comercio-exterior/manuais/despacho-de-importacao/topicos-1/despacho-de-importacao/documentos-instrutivos-do-despacho/fatura-comercial
2 Disponível em: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/aduana-e-comercio-exterior/manuais/despacho-de-importacao