Estas primeiras semanas de abril foram de esforço concentrado para a comissão de juristas responsável pela reforma do Código Civil. Após 180 dias de atividades, a comissão encerrou seus trabalhos entregando o relatório com o anteprojeto do novo código.
Dentre o texto, chamou atenção as inovações dadas à disciplina arbitral, já que a atual codificação faz apenas duas menções relacionadas à arbitragem: uma admitindo a cláusula compromissória para o juízo arbitral nos contratos (art. 853) e outra sobre a prescrição da pretensão dos honorários dos árbitros (art. 206, III).
Inicialmente, advertimos que como o que há por ora é o texto do anteprojeto, houvemos por bem não utilizar menções à numeração dos artigos constantes no texto, por motivos que nos parecem óbvios: de não ser o anteprojeto projeto, tampouco projeto ser lei (que ainda há de vir), com o perdão do truísmo. Portanto, para evitar confusões ao futuro leitor, melhor trabalhar em cima do conteúdo do dispositivo sugerido, não da sua numeração.
A inovação que salta aos olhos no anteprojeto é a substituição da expressão “o juiz” por "o juiz ou o árbitro" nas referências ao julgador em algumas situações. A modificação do vocábulo não é meramente cosmética; carrega uma profundidade jurídica importante, pois representa um avanço significativo na formalização e reconhecimento da arbitragem como meio equivalente à jurisdição estatal para a resolução de litígios.
Historicamente, não era de se esperar muita coisa sobre o tema no Código Civil/02. Embora sua finalização tenha sido posterior à lei de arbitragem de 1996, sua elaboração decorreu de muito antes. O processo de elaboração do Código Civil teve início em 1969, sob o regime militar. O projeto foi oficialmente apresentado ao Congresso Nacional em 1975, onde se deu início a um percurso legislativo extenso. Após diversas discussões e emendas, o texto final do código foi aprovado em 15/8/01, estabelecendo-se então um período de transição determinado por lei antes de sua efetiva implementação.
Dessa forma, a disciplina da arbitragem não encontraria estabilidade na codificação civil naqueles tempos de incerteza da sua utilidade e até mesmo da sua constitucionalidade, que foi posta em xeque até 2001, quando foi declarada em conformidade com a Constituição Federal em dezembro daquele ano.
Agora, com a mudança terminológica, a sugestão é que o novo Código Civil abraçe de forma mais robusta a arbitragem, equiparando-a, em termos de linguagem legislativa, ao poder judiciário. A mudança denota, em primeiro lugar, um reconhecimento do legislador quanto à eficiência da arbitragem como método alternativo de resolução de disputas. O que pode influenciar diretamente na confiança das partes em optar pela arbitragem, especialmente em contratos complexos e relações empresariais, onde a celeridade e especialização dos árbitros são fatores críticos.
Por outro lado, observe-se que a equiparação entre o juiz estatal e o árbitro não é uma novidade do ponto de vista da realidade fática. Pelo contrário, isso é um pressuposto que faz a arbitragem funcionar desde o início da sua utilização, consagrado no art. 18 da lei de arbitragem1. O que se celebra aqui é a equiparação do ponto de vista linguístico, enriquecendo o texto do Código Civil, o que pode ser visto como uma valorização que pode levar a um aumento na utilização da arbitragem.
Também foi sugerida alteração do único dispositivo que trata da cláusula compromissória. A redação atual (“Admite-se nos contratos a cláusula compromissória, para resolver divergências mediante juízo arbitral, na forma estabelecida em lei especial”) passaria a ser: “São admitidos, nos negócios jurídicos em geral, a cláusula compromissória e o compromisso arbitral, judicial ou extrajudicial, para resolver divergências mediante juízo arbitral, na forma estabelecida em lei especial”.
A modificação do dispositivo ajuda a clarificar o que se propõe. Ao substituir “admite-se nos contratos” por “admite-se nos negócios jurídicos”, o texto amplia o campo de visão de quem escolhe a arbitragem, uma vez que o conceito de negócios jurídicos é muito mais amplo do que o de contratos. Para Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves, “é o poder que o sistema concede a uma pessoa para criar suas próprias normas, nos limites conferidos pelo ordenamento jurídico"2.
Todas essas alterações levam a um efeito positivo sobre a percepção da arbitragem no Brasil, que vem crescendo cada vez mais. O avanço deste instituto é revelado pelas pesquisas já conhecidas da comunidade arbitral brasileira, elaboradas pela professora Selma Lemes. “Em 2005, havia apenas 21 processos arbitrais, que tinham em jogo R$ 247 mil. Uma década depois, em 2015, eram contabilizados 222 novos casos, somando R$ 10,7 bilhões. Já em 2021 e 2022 foram registrados 658 novos procedimentos, em um total de R$ 95 bilhões”3.
Ainda nos dados, um levantamento realizado pelo Observatório da Arbitragem examinou as decisões do TJ/SP e revelou que somente 1,5% das sentenças arbitrais foram anuladas pelo judiciário. Este número evidencia uma clara inclinação do sistema judicial brasileiro em manter e ratificar as decisões provenientes da arbitragem, ao invés de invalidá-las.
Dessa forma, com o fortalecimento da arbitragem através de um arcabouço legal que assim contribua, espera-se que mais empresas e indivíduos considerem o mecanismo como uma opção viável e eficaz, especialmente em disputas comerciais, onde a expertise técnica e a celeridade processual são altamente valorizadas. Resta-nos, assim, acompanhar as mãos que darão sequência ao texto do anteprojeto.
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1 A atividade do árbitro é “em tudo e por tudo idêntica à do juiz togado” (CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei n° 9.307/1996. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2023, p. 275). Neste mesmo sentido já se manifestavam fórmulas antigas do direito nacional, como o art. 1.041 do Código Civil de 1916 e o art. 1.078 do Código de Processo Civil de 1973.
2 ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves. Curso de Direito Civil: obrigações. 14ª ed. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 130.
3 BARCELO, Joice. Arbitragem bate recorde com bilhões de reais em disputa. Valor Econômico, São Paulo, 8 set. 2023. Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2023/09/08/arbitragem-bate-recorde-com-bilhoes-de-reais-em-disputa.ghtml. Acesso em: 9 abr. 2024.