Notas informativas e brevíssimas considerações:
“(...) O regime de responsabilização há de ser forte, duro, justo, para não deixar que as vítimas fiquem a ver navios, mas não a ponto de que a sociedade não fique mais ser os ver, dada a eventual insustentabilidade do setor. [...]
“(...) Por fim, deixo um recado que peca pela obviedade, mas que nunca é demais ser repetido: a invulgar importância do negócio de seguro, que é aquele que viabiliza o desenvolvimento econômico e que leva aos cenários de crise o bom e doce selo do conforto.
Dia 9 de abril, por volta das 11h, participei de gravação do prestigioso Canal de Arbitragem no Youtube, ao lado de importantes nomes do Direito Marítimo brasileiro.
O objetivo era o de comentar o sinistro do navio DALI que colidiu com a ponte principal em Baltimore, EUA, causando danos severos e de toda ordem
Pelo acidente, os participantes e eu discutiríamos temas importantes como logística de transportes, operações portuárias, contingenciamento de danos, sistemas de prevenção, novos paradigmas do caso fortuito e da força maior, sistemas de responsabilizações e os seguros em geral.
Notadamente pelo último assunto, os seguros em geral, é que fui convidado pelos organizadores, ao que desde já externo meu mais profundo e sincero agradecimento por tão honrosa confiança.
Apoiado por meus amigos Rubens Walter Machado Filho, que é meu sócio desde sempre, e Christian Smera Britto, que é meu parceiro profissional de longa data e respeitado regulador de sinistros, pude participar da gravação munido de informações e considerações absolutamente fiéis e importantes.
Dado o interesse de muita gente nesse sinistro, compartilho parte do que disse no encontro, ajudado por meus amigos (faço questão de registrar isso publicamente, na forma de segundo e justo agradecimento), fazendo-o de modo sumário, em tópicos simples:
Primeiro, as informações gerais:
- O sinistro afirma a importância do sistema de seguros, que é sabidamente fundamental para a Economia global.
- Prejuízos estimados em USD 4 bilhões
- Estima-se que apenas a reconstrução da ponte “Francis Scott Key” consumirá 660 milhões USD
- Foi informado que a cobertura do risco de propriedade da ponte é da CHUBB, considerada uma das maios importantes seguradoras do mundo.
- Armador proprietário do navio é empresa sediada em Cingapura, a Grace Ocean Pte. Ltd.
- O navio estava afretado por Time Charter para a MAERSK, mas quem deve responder pelo danos e prejuízos é o armador-proprietário e seu segurador P&I, o Britannia [na prática, como segurador de responsabilidade civil do navio].
- O navio colidiu contra a ponte por ter perdido sistema de geração de energia e, assim, enfrentado pane nos sistemas de leme (direção) e propulsão. [as causas da pane ainda não são sabidas e seu conhecimento é importante por dois motivos: I. prevenção e aprimoramento de sistemas e II. dimensionamento da responsabilidade civil]
- Como essa pane ocorreu minutos antes da colisão, o navio enviou mensagens de emergência para a administração do porto (Mayday) o que evitou um desastre muito maior, pois o tráfego da ponte foi contido. Teriam caído muito mais veículos ao rio e a situação seria ainda mais crítica e dolorosa [o que agora convém apurar é se algo mais poderia ser feito e se a ponte possuía sistemas eficientes de prevenção de riscos, como dolphins de proteção dos pilares].
- Há, ainda e pelo menos, seis navios de porte retidos no porto, impossibilitados de zarpar. Dezenas de outros, do lado exterior da ponte, tiveram que alterar suas escalas, gerando perdas logísticas importantes;
- O canal do porto foi reaberto provisoriamente mas com calado muito reduzido e isso prejudica inegavelmente a entrada e saída de navios e o bom fluxo da economia local.
- Os prejuízos maiores, sem qualquer dúvida, serão decorrentes de B.I. (Business Interruption) e lucros cessantes, pois o porto sofreu colapso operacional, como múltiplas indústrias e negócios sendo afetados. Ao lado da responsabilidade civil por danos materiais, haverá seguramente reclamações de danos imateriais e outras figuras legais, como a da perda de chances.
- O dono do navio (armador proprietário) já peticionou à Corte Federal de Maryland, pedindo proteção patrimonial, limitando sua responsabilidade ao valor de USD 44 milhões, valor do casco do navio;
- Essa limitação é prevista pela Convention on Limitation of Liability for Maritime Claims (LLMC), de 1976, da qual os EUA são signatários; [o Brasil não é].
- A sorte desse pleito de limitação de responsabilidade dependerá da investigação técnica da causa do acidente. Se as autoridades apurarem que o defeito que resultou no blecaute do navio era presente e perceptível antes do início da viagem, então as regras limitativas da convenção poderão ser afastadas, porque caracterizada falha procedimental de Due Diligence”, que normalmente leva a outra amplitude e dimensão de responsabilidade civil;
- A consequência imediata, em sendo provada a negligência com dever geral de cautela e a Due Diligence, é o de possível perda, pelo Armador da garantia do seguro de P&I, que pressupõe que o navio esteja em condições de navegabilidade (seaworthiness). Essa, aliás, é a mesma discussão que se trata nos seguros de responsabilidade civil dos diferentes modos de transportes: o agravamento de risco e a negligência grave, inescusável, por parte do segurado-transportador.
- Parece, porém, pouco provável que seja o caso de ofensa aos princípios e protocolos da Due Diligence, pois os navios operados pela Maersk são muito bem gerenciados do ponto de vista náutico e técnico, não sendo à toa que ela detém a condição de uma das maiores transportadoras marítimas de cargas do mundo;
- O armador provavelmente declarará avaria grossa, objetivando repartir as despesas de salvamento com os proprietários de carga. Após o acidente, o navio ficou bastante afetado por partes da ponte sobre seu convés, o que atingiu muitas cargas, trazendo riscos e constituindo um perigo real. Nesse caso, que ora se cogita sem juízo de valor, tem-se por certo que apenas as despesas de sacrifício poderão ser rateadas, sendo certo que os danos da colisão (diretos e indiretos) e os de outras causas de imputação de responsabilidade civil não se enquadram no instituto.
- A Avaria grossa, pelas Regras de York Antuérpia (Rule D), independem – inicialmente e para a declaração – da causa originária, sendo muito difícil, senão impossível, aos proprietários e seguradores das cargas a bordo se desvencilharem, ao menos no calor dos acontecimentos, da obrigação de compromisso de prestação de garantias para a avaria grossa.
Agora, as considerações, bem pontuais:
- O sinistro surpreende pela forma como ocorreu, pelo danos e pela dimensão geométrica dos prejuízos
- Considerando os avanços no domínio do estado da técnica, da tecnologia de navegação, da engenharia naval, é imperiosa a apuração da causa do blecaute, até por causa dos novos paradigmas do caso fortuito de da força maior.
- Sem pisar no areia movediça da transferência de culpa à vítima, mas apenas visando maior segurança em todos os portos, também é imperioso saber se a ponte de Baltimore possuía sistema de proteção eficazes contra colisões de embarcações e se a envergadura do seu plano de contingenciamento de danos.
- O mundo precisa repensar os riscos em geral da atividade empresarial. Navios de cagas são imprescindíveis para a economia, assim como os seguros em geral. Em casos como este, de amplíssima envergadura econômico-financeira, há de ser buscado um meio justo entre o conceito de reparação civil integral e a teoria da preservação da empresa.
- Uma coisa é a responsabilidade civil incidente sobre a carga. Dela, pouco ou nada há o que se discutir sobre a reparação civil integral do transportador-danador. Outra coisa é a responsabilidade civil extracontratual por danos em outras e que o ato-fato gerador é vórtice de prejuízos em escala geométrica e que não podem apurar imediatamente.
- Buscar a limitação da responsabilidade com base no valor do casco do navio, embora possível por norma convencional internacional, não é exatamente algo que se alinha ao conceito de justiça e a visão atual da reparação civil. Por outro lado, espécie de responsabilidade civil infinita também não é a melhor resposta, já que a sociedade interessa, e muito, a mantença de empresas saudáveis de navegação.
- O amigo Christian Smera e eu discutimos bastante sobre a natureza jurídica da avaria grossa, a maior ou menor importância da causa antecedente ao dano voluntário para o evitamento de mal maior, porém estamos certos de que a declaração em si mesma é ato unilateral do armador e muitas são as causas autorizadoras nas Convenções Internacionais. Este, porém, não é assunto para ser tratado nessas informações e considerações, cabendo-me apenas expor o que provavelmente será feito, seu juízo de valor.
- De qualquer forma, dado o ônus previsto aos proprietários de cargas à bordo do “DALI”, afirma-se uma vez mais a importância do seguro de transporte, que envolve custo (prêmio) pequeno e entrega aos exportadores e importadores garantias excepcionais. As empresas com cargas à bordo que estiverem sem seguro terão de prestar garantias de avaria grossa em dinheiro ao Armador para poderem receber suas cargas. As que tiverem cobertas por apólices de transporte, estarão protegidas pelas garantias a serem estendidas por seus seguradores.
- O sinistro de Baltimore deixa-nos importante lição, ainda que esteja na fase inicial de estudos e apuração: os riscos estão aí e são enormes. Não há desenvolvimento econômico-social sem riscos. Demonizá-los com discursos ideológicos apequenados não aproveita a ninguém. O esforço é o do bom-senso e este diz que é necessário o fomento de negócios com a maior segurança possível. O transporte marítimo de cargas não é definitivamente mais uma aventura, porém é algo circundado pelo selo do risco. O regime de responsabilização há de ser forte, duro, justo, para não deixar que as vítimas fiquem a ver navios, mas não a ponto de que a sociedade não fique mais ser os ver, dada a eventual insustentabilidade do setor.
- Por fim, deixo um recado que peca pela obviedade, mas que nunca é demais ser repetido: a invulgar importância do negócio de seguro, que é aquele que viabiliza o desenvolvimento econômico e que leva aos cenários de crise o bom e doce selo do conforto.