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A necessidade de demonstração da ausência de boa-fé nos processos de contas

A prestação de contas se aproxima da ideia de boa-fé objetiva, em decorrência da autêntica expectativa da sociedade em relação ao comportamento dos agentes públicos, que demanda a observância do dever de proteção da coisa pública, de esclarecimento dos atos de gestão praticados e de lealdade para com a coletividade.

9/4/2024

Introdução

Conforme bem apontado no acórdão: 11.161/20 – TCU – 2ª Câmara, de relatoria do min. Raimundo Carreiro, a obrigatoriedade de demonstrar a boa e regular aplicação dos recursos públicos – imposta por determinação constitucional1 a qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos –, acarreta o dever do gestor público de prestar contas às autoridades administrativas competentes acerca da aplicação dos recursos públicos sob a sua responsabilidade.

A obrigatoriedade de prestar contas atribuída ao administrador público tem como objetivo mitigar o conflito principal-agente, existente entre a sociedade (principal), detentora original de todos os direitos e poderes, e os gestores públicos (agentes), que se encontram, necessariamente, a serviço da coletividade2.

Nesse sentido, prestação de contas se aproxima da ideia de boa-fé objetiva, em decorrência da autêntica expectativa da sociedade em relação ao comportamento dos agentes públicos, que demanda a observância do dever de proteção da coisa pública, de esclarecimento dos atos de gestão praticados e de lealdade para com a coletividade.

A demonstração da ausência de boa-fé nos processos de contas

No âmbito dos processos de contas é comum a discussão sobre a boa-fé objetiva dos agentes públicos, no trato com a coisa pública, por expressa previsão regimental, que determina que a ocorrência de boa-fé na conduta do responsável deve ser examinada na oportunidade da análise da resposta à citação3.

Analisando-se as razões de decidir do acórdão: 11.161/20 – TCU – 2ª Câmara, de relatoria do min. Raimundo Carreiro, que analisou o recurso de reconsideração interposto contra a decisão que julgou as contas do recorrente irregulares, condenando-o em débito e aplicando-lhe multa, verifica-se a afirmação de que "a boa-fé não pode ser presumida, devendo ser demonstrada e comprovada a partir dos elementos que integram os autos" 4.

Realmente, no âmbito da relação entre a administração pública controladora e o agente público prestador das contas, a boa-fé objetiva deve ser analisada com base na conduta do agente no âmbito do processo de contas, fundamentando-se, precipuamente, no dever de esclarecimento5 do gestor público em relação aos atos de gestão por ele praticados.

A boa-fé objetiva não decorre de presunção legal6, mas sim de aspectos concretos endo processuais objetivamente identificados no processo de contas.

Desse racional decorre a conclusão de que a omissão no dever de prestar contas afasta as chances de se aferir a boa-fé objetiva na conduta do responsável7, por afronta ao dever de esclarecimento do gestor público perante a sociedade, que deve ser concretizado por meio da prestação de contas e do fornecimento de informações necessárias ao saneamento do processo, de maneira diligente e colaborativa.

Alguns precedentes da corte de contas chegam a afirmar não ser possível reconhecer a boa-fé objetiva do gestor que deixa de apresentar razões de justificativa8 ou alegações de defesa9 no âmbito do processo de contas, em virtude da quebra da legítima expectativa que baliza a relação entre o agente público e a autoridade administrativa competente10 para avaliar a boa e regular aplicação de recursos públicos.

Todavia, muito embora, como visto, a boa-fé não possa ser presumida, também a sua ausência deve ser devidamente motivada em aspectos endo processuais concretos, sob pena de afronta ao princípio da motivação dos atos administrativos11 e das decisões judiciais12.

Nesse sentido, pode-se afirmar que as decisões da corte de contas que afastem a existência da boa-fé objetiva devem, obrigatoriamente, indicar os elementos concretos que fundamentam a afirmação.

Caso contrário, se a decisão analisada se basear em argumentos genéricos e abstratos, possivelmente poderá ser considerada como uma decisão carente de fundamentação, tendo em vista que não se consideram fundamentadas as decisões que invocarem motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão.

Em decorrência do exposto, pode-se afirmar que o não reconhecimento da boa-fé objetiva, no âmbito dos processos de contas no Tribunal de Contas, depende da conduta concreta do responsável, notadamente em relação ao dever de esclarecimento imposto ao gestor público por força da regra constitucional de prestação de contas. Nesse sentido, é possível afirmar que a ausência de boa-fé objetiva no âmbito dos Tribunais de Contas deve estar lastreada em elementos concretos, a exemplo dos seguintes:

i) omissão do dever de prestar contas;

ii) conduta negligente do responsável para esclarecer os fatos;

iii) revelia;

iv) não fornecimento de informações necessárias ao saneamento dos autos;

v) condutas contraditórias no âmbito dos atos processuais; 

vi) ou ausência de conduta colaborativa do agente público.

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1. De acordo com o art. 70, parágrafo único, da Constituição Federal de 1988, “prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária”.

2. UNIÃO, Tribunal de Contas. Referencial básico de governança organizacional para organizações públicas e outros entres jurisdicionados ao TCU. p. 38.

3. RITCU. Art. 202. § 2º Na oportunidade da resposta à citação, será examinada a ocorrência de boa-fé na conduta do responsável e a inexistência de outra irregularidade nas contas.

4. Nesse sentido, encontram-se os seguintes precedentes: Acórdão 763/2007 - TCU - Segunda Câmara, Relator Augusto Sherman; Acórdão 4667/2017 – TCU - Primeira Câmara, Relator Bruno Dantas; e Acórdão 1895/2014 - TCU - Segunda Câmara, Relatora Min. Ana Arraes.

5. Cristiano Farias e Nelson Rosenvald afirmam que os deveres de conduta, decorrentes da boa-fé objetiva, se desdobram em deveres de proteção, de esclarecimento e de lealdade (p. 197). Apesar de os referidos autores tratarem dessas dimensões no âmbito das relações contratuais, entendemos que os mesmos deveres se encontram presentes na relação de sujeição especial existente entre administração pública e as pessoas obrigadas a prestar contas.

6. A boa-fé, no âmbito dos processos do TCU, não decorre de presunção legal geral. Deve estar corroborada em contexto fático e de condutas propício ao reconhecimento dessa condição em favor dos responsáveis (Acórdão 10237/2020 - Segunda Câmara, Relator Min. Ana Arraes).

7. A omissão na prestação de contas afasta a presunção quanto à presença de boa-fé na conduta do responsável e a não configuração da boa-fé nos autos já constitui, por si só, razão suficiente para o julgamento definitivo pela irregularidade das contas (Acórdão 1121/2010 - Primeira Câmara, Relator Min. Marcos Bemquerer).

8. Nos processos de contas onde houver débito, o relator ou o Tribunal ordenará a citação do responsável para que, no prazo de quinze dias, apresente alegações de defesa, nos termos do art. 202, inciso II, do RITCU.

9. Se não houver débito, o relator ou o Tribunal determinará a audiência do responsável para que, no prazo de quinze dias, apresente razões de justificativa, nos termos do art. 202, inciso III, do RITCU.

10. Na falta de apresentação de razões de justificativa, reputam-se verdadeiros os fatos que ensejaram a audiência do responsável. Sendo revel, não há como reconhecer-lhe a boa-fé (Acórdão 4207/2011 - Primeira Câmara, Relator Min. Valmir Campelo).

11. Lei 9.784/1999. Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

12. CPC. Art. 489. § 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão.

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BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 25 de março de 2024.

Presidência da República. Lei 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em 25 de março de 2024.

Presidência da República. Lei 9.784, de 29 de janeiro de 1999. Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9784.htm. Acesso em 25 de março de 2024.

ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves. Curso de Direito Civil: Contratos, Teoria Geral e Contratos em Espécie. 9ª edição ed. [s.l.] Editora Juspodivm, 2019.

UNIÃO, Tribunal de Contas. Referencial básico de governança organizacional para organizações públicas e outros entres jurisdicionados ao TCU. Disponível em https://www.tcu.gov.br. Acesso em 25 de março de 2024

Tribunal de Contas. Regimento Interno do Tribunal de Contas da União (RITCU). Disponível em https://www.tcu.gov.br. Acesso em 25 de março de 2024.

Tribunal de Contas. Acórdão 10237/2020 - Segunda Câmara, Relator Min. Ana Arraes. Disponível em https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/redireciona/jurisprudencia-selecionada/JURISPRUDENCIA-SELECIONADA-99668. Acesso em 25 de março de 2024.

Tribunal de Contas. Acórdão 4667/2017 – TCU - Primeira Câmara, Relator Bruno Dantas. Disponível em https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/redireciona/jurisprudencia-selecionada/JURISPRUDENCIA-SELECIONADA-41650. Acesso em 25 de março de 2024.

Tribunal de Contas. Acórdão 1895/2014 - TCU - Segunda Câmara, Relatora Min. Ana Arraes. Disponível em https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/redireciona/jurisprudencia-selecionada/JURISPRUDENCIA-SELECIONADA-26514. Acesso em 25 de março de 2024.

Tribunal de Contas. Acórdão 4207/2011 - Primeira Câmara, Relator Min. Valmir Campelo. Disponível em https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/redireciona/jurisprudencia-selecionada/JURISPRUDENCIA-SELECIONADA-27079. Acesso em 25 de março de 2024.

Tribunal de Contas. Acórdão 1121/2010 - Primeira Câmara, Relator Min. Marcos Bemquerer. Disponível em https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/redireciona/jurisprudencia-selecionada/JURISPRUDENCIA-SELECIONADA-27124. Acesso em 25 de março de 2024.

Tribunal de Contas. Acórdão 763/2007 - TCU - Segunda Câmara, Relator Augusto Sherman. Disponível em https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/redireciona/jurisprudencia-selecionada/JURISPRUDENCIA-SELECIONADA-33797. Acesso em 25 de março de 2024.

Thiago da Cunha Brito
Auditor Federal de Controle Externo do Tribunal de Contas da União. Advogado. Mestrando em Direito Econômico e Desenvolvimento(IDP). LLM Direito Penal Econômico (IDP). Graduado em Direito (IDP).

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