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Verificação preliminar de informações e unidade de inteligência financeira: Bisbilhotice

Para verificar a procedência de uma denúncia anônima, pode uma autoridade policial solicitar um Relatório de Inteligência Financeira (RIF) à Unidade de Inteligência Financeira (UIF) antes mesmo da instauração de inquérito policial? Não, não pode. É bisbilhotice.

8/4/2024

O plenário do STF decidiu, no julgamento do RE 1.055.941/SP, que o compartilhamento de RIF’s - relatórios de inteligência financeira RIF’s dependeria da existência de "procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional". O entendimento foi reafirmado pela 2ª Turma da Corte no HC 201.965/RJ, em que se decidiu que a "primeira razão de nulidade dos RIFs" estaria relacionada "ao fato de a produção de RIFs por intercâmbio ter ocorrido sem que houvesse sido instaurado formalmente em face do paciente qualquer investigação preliminar".

De fato, o STF não utilizou os termos "inquérito policial" ou "procedimento investigatório criminal". Mas parece elementar que, ao se afirmar a necessidade de "procedimentos formalmente instaurados" ou de "investigação preliminar", a Corte se referiu ao gênero1 do qual são espécies o inquérito policial e o procedimento investigatório criminal, por exemplo.

Daí é que surge a questão: Verificação de procedência de denúncia anônima não é e não pode ser espécie de investigação formalmente instaurada – apta a justificar a solicitação de RIF por intercâmbio.

O §3º do art. 5º do CPP dispõe que, no caso de notícia de crime de qualquer do povo, a autoridade policial, "verificada a procedência das informações, mandará instaurar inquérito". A essa verificação, que deveria servir como filtro para evitar inquéritos policiais temerários, se dá o nome de VPI2 3, NCV4, a depender da polícia judiciária e sua respectiva regulamentação.

A norma processual deixa evidente que a instauração de inquérito policial exige ao menos a possibilidade da colheita de indícios iniciais de materialidade e autoria, sendo necessária relação direta ou próxima de causalidade, e não meramente remota ou especulativa.A investigação deve se iniciar após a verificação dos fatos narrados na denúncia anônima, com um ato que formaliza sua existência - a portaria da instauração de inquérito, que deve conter o objeto da investigação, as circunstâncias já conhecidas e as diligências a serem cumpridas.

A simplicidade do procedimento de verificação não deveria significar falta de controle, já que as diligências iniciais deveriam ser consignadas em relatórios, a permitir os controles interno, externo e judicial. Não deveria. Fato é que tais verificações não conseguem ser devidamente controladas nem mesmo pelo ministério Público. Nesse sentido são os esclarecedores dados constantes da nota técnica 1/2023 – GT – ROTEIRO CEAP6, assinada em 27/10/23, produzida no âmbito da 7ª Câmara de coordenação e revisão da procuradoria-geral da república. E se não há controle do próprio ministério Público, também não o haverá por parte do poder Judiciário.

Por incrível que pareça, tem sido comum a solicitação de relatórios de inteligência financeira à UIF no âmbito das mencionadas VPI’s. Por isso é que os Tribunais precisam se atentar à hipótese: se se permitir a solicitação de RIF’s à UIF, diretamente pelo delegado de polícia e sem inquérito policial instaurado, notadamente para a verificação de denúncia anônima, far-se-á letra morta do entendimento do STF no Tema 990. E isso por três razões fundamentais.

A primeira razão é demasiado evidente, mas precisa ser afirmada, por ser de ordem lógica (e até ontológica): Verificação não é investigação. Além da clareza da própria disposição do §3º do art 5º do CPP, fato é que, se se entender que a VPI é espécie de investigação criminal, ter-se-á de sustentar, por exemplo, que, após a implantação do juiz das garantias, haverá necessidade de comunicação ao juiz acerca de instauração de todas as verificações preliminares de denúncia anônima, ante a previsão do art. 3º-B, inc. IVdo CPP. Ora, se nem mesmo um termo circunstanciado de ocorrência, que deveria registrar em detalhes fatos tidos como ocorridos, tem natureza investigativa8, não há razão para uma verificação de denúncia anônima, seguida de mera coleta de dados abertos, tê-lo.

A segunda é que a regulamentação de tais verificações – as VPI’s, NCV’s – é feita pelos próprios órgãos de polícia judiciária, não se admitindo medidas invasivas9. É inadmissível que, em procedimentos regulamentados por portarias, haja disposição sobre meios de obtenção de prova cuja (i)licitude e limites são objeto de repercussão geral por serem diretamente relacionados a bens jurídicos protegidos por normas constitucionais. De fato, a persecução penal é dotada de natureza processual, e não meramente procedimental, cuja competência legislativa é privativa da União, conforme art. 22, inc. I da CF.

A terceira e mais grave é a própria ratio decidendi do tema 990 do STF: Não se pode permitir que todo e qualquer sujeito de direitos fundamentais esteja sujeito a um RIF encomendado sob medida para averiguar suas supostas movimentações bancárias atípicas10. É dizer: Todo cidadão pode ter um RIF elaborado em seu desfavor, bastando a existência de uma denúncia anônima.

Nesse sentido é a recente decisão da 1ª Turma do STF no AgRg na RCL 61.944/PA. No caso, o próprio ministro relator esclareceu que havia, antes da solicitação de RIF, "inquérito instaurado (...) a partir inclusive de requisição do ministério Público". O ministro Alexandre de Moraes também registrou o parecer da PGR, afirmando que os "pedidos de informações à UIF foram formalizados após a instauração do inquérito" 11 12.

Desse modo, não se pode falar que supostas diligências prévias à instauração de inquérito justificariam a referida solicitação de RIFs, sob pena de se cair num raciocínio circular e paradoxal: Seria afirmar que as autoridades policiais podem solicitar meios de obtenção de prova - no caso, RIFs à UIF – mesmo se ausentes indícios de materialidade e autoria suficientes à instauração do inquérito. Uma tautologia quase kantiana: O que seria o objeto conhecido se (não) fosse conhecido: o que a autoridade policial precisa saber para saber o que não sabe? Trata-se de exemplo escolar de fishing expedition, já que há a subversão total da lógica investigativa, ausente qualquer critério de especificação dos fatos investigados ou delimitação temporal objetiva.

Como dito pelo eminente ministro Luís Roberto Barroso, no julgamento do RE 1.055.941/SP, “não há espaço para pedidos informais, curiosidade, bisbilhotice e muito menos perseguição” – ao que devemos secundar: Não há espaço para solicitação de RIF à UIF sem inquérito policial instaurado.

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1 Nesse sentido, aliás, é o multicitado o excerto de voto do referido julgamento, em que se alerta para “a absoluta e intransponível impossibilidade da geração de RIF por encomenda (fishing expedition) contra cidadãos que não estejam sob investigação criminal de qualquer natureza”.

No Estado de Goiás, por exemplo, a Portaria Normativa nº 033/2020 – PC regulamenta a VPI, afirmando que ela é cabível apenas quando “da notícia de crime não constam informações suficientes sobre a existência de fato criminoso punível ou, ainda, não resta evidente a justa causa para instauração imediata do correspondente procedimento policial” (art. 1º). Ademais, há a determinação para que todo e qualquer ato praticado nesse tipo de verificação seja reduzido a termo (art. 3º) e que, se se constatar a “existência de infração penal punível ou a presença da justa causa, o Delegado de Polícia, imediatamente, instaurará Inquérito Policial” (art. 4º). No Rio de Janeiro, a regulamentação revela que a VPI é cabível “face a inexistência de indícios e autoria e/ou de comprovação da materialidade da infração penal”.

3 O STF já se manifestou a respeito das “VPI’s” na ADI 4414: “Os procedimentos investigativos pré-processuais não previstos no ordenamento positivo são ilegais, a exemplo das VPIs, sindicâncias e acautelamentos, sendo possível recorrer ao Judiciário para fazer cessar a ilicitude, mantida a incolumidade do sistema acusatório (...) Basta lembrar a hipótese da ilegal “verificação de procedência das informações”, prática vetusta adotada em muitas delegacias pelo país, que, a pretexto de aplicar o disposto no art. 5º, § 3º, do CPP (“Qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal em que caiba ação pública poderá, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à autoridade policial, e esta, verificada a procedência das informações, mandará instaurar inquérito”), permite a prática de diversos atos policiais sem qualquer supervisão do Ministério Público (...)”. (STF – ADI 4414, Relator: Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 31/05/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-114 DIVULG 14-06-2013 PUBLIC 17-06-2013).

4 A Instrução Normativa (IN) DG/PF nº 255, de 20 de julho de 2023, em seu art. 21, tratou do que chamou de “Notícia-Crime em Verificação” (NCV).

5 STF, Inq 3.847 AgR, rel. min. Dias Toffoli, DJ 7/4/2015.

6 O MPF registrou o seguinte acerca da NCV – equivalente da VPI no âmbito da Polícia Federal: “[é] defeso à Polícia utilizar a NCV como sucedâneo do inquérito policial, sob pena de ofensa ao sistema de garantias constitucionais instituído com a finalidade de se evitar o abuso que, muitas vezes, se revela na prática de atos eivados pelo desvio funcional. [...] O art. 5º, § 3º, do CPP registra que a “verificação de procedência das informações” é uma leitura inicial da representação feita por qualquer pessoa do povo à polícia, para se evitar que alguém seja exposto com uma imediata e infundada instauração de investigação formal. Dessa forma, estando a representação compreensível e embasada em indicativos mínimos de autoria e materialidade, o inquérito policial deve ser instaurado para que haja efetivos atos investigativos, os quais diferem de meros atos de verificação. [...] Enquanto o inquérito policial visa a comprovar autoria e materialidade, a NCV busca verificar se os dados trazidos à autoridade policial, por dúvida clara e objetiva decorrente da primeira análise da notícia-crime em si, são evidentemente falsos ou absolutamente infundados. Dessa forma, são permitidos apenas atos apuratórios simples, céleres, não invasivos, mesmo em caso de entrevistas feitas por policiais federais, e tais atos devem ser empregados a partir da necessidade de esclarecer elementos da notícia-crime nos casos de dúvida sobre sua suficiência para a instauração de inquérito policial. Assim, reitere- se, a NCV não substituirá o inquérito policial e não pode servir para investigar existência de materialidade e autoria. Durante a tramitação da NCV, é absolutamente indevida a intimação de pessoas, mesmo que testemunhas, para comparecimento em delegacia sob pena de condução coercitiva.[...]”. Disponível em: https://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr7/dados-da-atuacao/grupos-de-trabalho/gt-roteiro-ceap/nota-tecnica-no-1_2023-gt-roteiro-ceap.pdf/view  Acesso em 02/04/2024.

7 O dispositivo afirma que o juiz das garantias deverá “ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal”. A doutrina cita exemplos que excluem, evidentemente, quaisquer verificações: “Assim, lavrada pelo Delegado de Polícia uma portaria inaugural de um inquérito policial diante da existência de fundamento razoável, sua instauração deverá ser informada ao juiz das garantias (...). Referindo-se o dispositivo sob comento a qualquer investigação criminal, o ideal é concluir que a expressão abrange não apenas os inquéritos policiais, mas também outros instrumentos vocacionados à identificação de fontes de prova e colheita de elementos de informação de determinada infração penal, como, por exemplo, um procedimento investigatório criminal instaurado pelo Ministério Público” (BRASILEIRO DE LIMA, Renato. Manual de Processo Penal – 12. ed. São Paulo: JusPodivm, 2023, p. 126). O próprio STF, no julgamento da ADI 6298/DF, incluiu o PIC (Procedimento Investigatório Criminal) como espécie de “investigação criminal”, interpretando o inc. IV do art. 3º-B do CPP e mencionando ser “frequente [a] instauração de investigações criminais, sob outros títulos que não o de inquérito, deve ser dada interpretação conforme à Constituição aos referidos incisos, de modo a determinar que que todos os atos praticados pelo Ministério Público como condutor de investigação penal se submetam ao controle judicial”.

8 ADI 6245, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 22-02-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n  DIVULG 28-04-2023  PUBLIC 02-05-2023.

Na Bahia e no Tocantins, entende-se que “[r]equisições de perícias, representações por ordem judicial para medidas cautelares, interrogatórios e depoimentos, quando necessários ao esclarecimento formal dos fatos investigados, deverão ocorrer no bojo de inquérito policial ou outro procedimento investigativo previsto em lei.” As regulamentações estão disponíveis, respectivamente, em: http://www.policiacivil.ba.gov.br/arquivos/File/ManualdeProcedimentosPoliciaJudiciaria/manual_de_proce dimentos_31_05_22.pdf. e https://central3.to.gov.br/arquivo/463085/

10 Há necessidade de se afastar o senso comum de que os RIFs elaborados pela UIF são feitos como que à base do copia e cola, como se a UIF inserisse um CPF ou CNPJ em um sistema e apertasse a tecla “enter”: pronto, seguem apenas as movimentações supostamente atípicas. Não é assim que acontece. Segundo as informações prestadas pelo COAF, a seleção das informações que comporão o RIF se dá em três etapas diferentes, chegando-se à análise individualizada das operações bancárias que podem ser incluídas nos RIFs (conforme fls. 30-33 do voto do Ministro Dias Toffoli no STF. RE nº 1.055.941).

11 Conforme excertos dos debates orais do referido julgamento: “MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES: ‘(...) A limitação (...) o que nós quisemos impedir era – o que sabemos que ocorreu em determinado momento – trocas de dados sem qualquer formalização. Trocas de dados sem qualquer inquérito, sem qualquer investigação. A pescaria nem com vara, é com tarrafa. MINISTRO CRISTIANO ZANIN: a expressão se usava era ‘dá uma olhadinha aí’. ALEXANDRE DE MORAES: Que que tem essa pessoa? ZANIN: Exatamente. Diferentemente deste caso que há um inquérito instaurado, como eu disse, a partir inclusive de requisição do Ministério Público. E a requisição está devidamente formalizada nos autos e também nos registros do próprio COAF, hoje UIF. MINISTRO FLÁVIO DINO: Ministro Alexandre, tem que ser um escrito um artigo doutrinário. Nós temos a produção de prova, a pescaria probatória e o ‘dá uma olhadinha aí’. MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES: Só que aqui, como lembrado pelo Ministro Cristiano Zanin, e eu cito parecer da Procuradoria-Geral da República, diz claramente: os pedidos de informações à UIF foram formalizados, após a instauração do inquérito, por meio do sistema eletrônico de intercâmbio, com a identificação da pessoa investigada (...) ou seja, tudo dentro do que fixado no tema 990 para garantir total possibilidade de controle jurisdicional posterior.” Sessão da 1ª Turma do STF – 02/04/2024 – Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lY_haJp-0cM Tempo do vídeo: 1:31:05 a 1:32:07.

12 No mesmo sentido é o que foi decidido no AgRG na AP 940, perante o STJ. O inteiro teor do referido acórdão do STJ traz a afirmação de necessidade da existência de “investigação formalizada sobre determinado fato, no âmbito do qual a medida será implementada, permitindo, assim, o controle judicial”. No caso, segundo consta do acórdão, havia “procedimento investigatório (...) tramitando perante a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça”, sendo que os elementos probatórios produzidos no inquérito não “teriam seu nasced inquéritoouro” no RIF cuja ilicitude se apontava. O mesmo teria ocorrido no julgamento da PET na AÇÃO PENAL Nº 985, em que o STJ rejeitou a alegação fishing expedition com base no argumento de que o RIF cuja ilicitude se apontava teria sido solicitado “com base em elementos concretos e preexistentes, contidos em mais de um procedimento investigatório formalizado nesta Corte superior de justiça”.

Célio Rabelo
Advogado criminalista. Bacharel em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e Membro do Instituto de Garantias Penais (IGP).

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