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A inviabilidade jurídica do pedido formulado no mandado de segurança impetrado em face do concurso para magistradas do TJ/SP

O mandado de segurança contesta a constitucionalidade de concurso exclusivo para magistradas. Alega-se que o edital baseado na resolução do CNJ é inconstitucional, mas o TJ/SP não tem competência para julgar a resolução, tornando o pedido questionável.

3/4/2024

O mandado de segurança impetrado por um grupo de magistrados de São Paulo, visando suspender a realização do concurso exclusivo para magistradas do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP), pauta-se na alegação de que os impetrantes teriam o direito líquido e certo a concorrer no certame. A causa de pedir funda-se no argumento de que o edital seria inconstitucional, visto que está pautado na Resolução 525/24, exarada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que, segundo os pacientes, padeceria de vício de inconstitucionalidade.

Neste artigo, não nos propomos a analisar a constitucionalidade ou não da Resolução, uma vez que não é o momento para tanto; nem buscamos apresentar parecer técnico do ponto de vista processual discutindo o cabimento ou não da medida, debatendo qual seria a via mais adequada para veicular a insatisfação dos impetrantes; tampouco nos propomos a conjecturar o deslinde da ação. O texto visa compartilhar um ponto de vista acadêmico para contribuir com o debate que será realizado pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do mérito do mandado de segurança.

Visando compreender a tese apresentada na ação constitucional em tela, sob o ponto de vista da doutrina do Direito constitucional, o pedido formulado na inicial poderia ser interpretado como uma espécie de pedido de reconhecimento da “inconstitucionalidade por arrastamento” do Edital, considerando a suposta inconstitucionalidade da Resolução.

A inconstitucionalidade por arrastamento, por atração ou por consequência é técnica utilizada no âmbito do controle de constitucionalidade concentrado, com vistas a evitar que legislações derivadas de leis inconstitucionais se mantenham no ordenamento jurídico.

O STF explica que a inconstitucionalidade por arrastamento “Ocorre quando a declaração de inconstitucionalidade de uma norma impugnada se estende aos dispositivos normativos que apresentam com ela uma relação de conexão ou de interdependência”.1 Ou seja, uma lei pode vir a ser declarada inconstitucional quando a legislação conexa a ela é inconstitucional.

A tese poderia ser defensável, mesmo no âmbito do controle de constitucionalidade incidental, por força de decorrência lógica, caso a norma a ser declarada inconstitucional estivesse posicionada abaixo de uma norma já declarada inconstitucional em sede de controle concentrado, ou se o órgão incumbido de analisar o afastamento da aplicação da norma no âmbito do controle difuso, reconhecendo possível vício de inconstitucionalidade, fosse competente para a analisar a constitucionalidade de ambas as leis, a secundária e primária que a fundamentou. Não é o caso nesta ação.

O TJ-SP não poderia analisar a constitucionalidade da Resolução do CNJ, pois tal decisão configuraria usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal2, órgão responsável por analisar ações envolvendo o Conselho Nacional de Justiça. É relevante esclarecer que, no âmbito do controle difuso, qualquer juiz, em qualquer grau de jurisdição, é competente para analisar a constitucionalidade de uma lei, ainda que de ofício, por tratar-se de matéria de direito público.

Entretanto, no que tange às Resoluções do CNJ, há uma característica que as difere das demais espécies normativas, pois trata-se de normas que são exaradas para impor regras e comportamentos especificamente aos membros da magistratura. Não seria razoável que um magistrado ou Tribunal, destinatários dos regramentos do Conselho, tivessem competência para afastar a sua aplicação. Caso contrário, as normativas estariam sujeitas a serem descartadas ao talante de qualquer juízo, invalidando todo o trabalho do órgão responsável por administrar o Poder Judiciário.

A argumentação aqui defendida toma por empréstimo o raciocínio que levou o Supremo Tribunal Federal a tomar a decisão de atrair para a Corte a competência para julgar ações envolvendo atos relacionados às atividades finalísticas do Conselho Nacional de Justiça, qual seja, a proteção à segurança jurídica.

“Prevaleceu o entendimento de que a missão constitucional dos conselhos, órgãos de controle do Judiciário e do Ministério Público, ficaria comprometida caso suas decisões, que têm eficácia nacional, fossem revistas pelos mesmos órgãos que estão sob sua supervisão e fiscalização.”3

Dessa feita, é defensável afirmar que especificamente as Resoluções do CNJ não podem ser alvo de decisões em sede de controle difuso. Tal afirmação não viola o princípio da inafastabilidade da jurisdição, visto que é possível questionar a normativa, mas no órgão competente, o STF, por meio da via adequada.

Feita essa digressão necessária, retomamos o raciocínio acerca do pleito formulado na inicial, que se configuraria, de acordo com a tese que estamos apresentando, em uma espécie de pedido de declaração de inconstitucionalidade por arrastamento. Pontuamos que tal fenômeno só poderia ser reconhecido, caso fosse realizada análise da norma superior hierarquicamente, a Resolução do CNJ, e essa fosse declarada inconstitucional pelo órgão com competência para tanto. Assim, por conseguinte, as normas que dela tivessem exsurgido forçosamente estariam eivadas por vício de inconstitucionalidade.

A Resolução que fundamenta o Edital se mantém constitucionalmente hígida. Não há como o TJ-SP declarar o afastamento do Edital dentro do caso concreto, se a Resolução que a fundamenta é válida. Para questionar a validade do Edital, seria necessário a declaração de inconstitucionalidade prévia da Resolução. E, textualmente, não é isso que está sendo pleiteado na exordial, nem poderia ser.

“Não se discutiu e nem se fixou, pelo que se sabe, qualquer orientação, para situações como a presente, quando a ação mandamental não se volta contra o Conselho Nacional de Justiça, mas, sim, em face de ato que materializou normatização sua, e que, em tese, venha a ferir direitos líquidos e certos de integrantes da carreira, como é o caso dos Impetrantes, e que podem ensejar a impetração de mandado de segurança contra a autoridade coatora, responsável por tal materialização, buscando o reconhecimento incidental de inconstitucionalidade, na forma difusa.”4

Ciente de que os impetrantes não podem impugnar diretamente a ato do CNJ, toda a longa fundamentação trazida na peça inaugural, no que tange à suposta inconstitucionalidade da normativa exarada pelo Conselho, torna-se absolutamente despiciendo, visto que descabe ao julgador, ao qual a peça está endereçada, a análise do mérito da constitucionalidade ou não da Resolução.

E, para fins didáticos, a fim de afastar quaisquer dúvidas, vale pontuar que as duas normas questionadas são indissociáveis. Não há como declarar a inconstitucionalidade da norma “secundária”, o Edital, sem a análise da norma que ensejou a sua criação, porque o suposto vício de inconstitucionalidade estaria presente na lei “originária”, a Resolução do CNJ, não especificamente no Edital, que apenas reproduz os preceitos estabelecidos na referida normativa do Conselho.

É ensinamento que se extrai do voto da eminente Ministra Cármen Lúcia, no âmbito da ADI 4551/RN:

Pelos julgados mencionados, não se conhece da ação direta de inconstitucionalidade quando o dispositivo impugnado na inicial não tem autonomia e faz parte de complexo normativo maior, no qual contidos preceitos não incluídos no pedido inicial. Tem-se interdependência ou conexão necessária entre o dispositivo objeto da ação direta e outro não apontado na impugnação, mas ambos incidem conjuntamente e de maneira indissociável sobre determinada situação jurídica, pelo que não se conheceria da ação direta, pois o controle de constitucionalidade pretendido se tornaria inviável.

A ação direta deve ser conhecida, todavia, se o dispositivo atacado dispuser de autonomia suficiente a justificar a declaração de inconstitucionalidade exclusiva, sem que a análise da validade constitucional dependa da apreciação de outro dispositivo. Se a retirada do mundo jurídico comprometer a validade de outro dispositivo dele dependente, admite-se a declaração de inconstitucionalidade por arrastamento desse segundo preceito se tiverem teor análogo e se a causa de pedir for a mesma.

A explicação está se referindo ao controle concentrado, mas o raciocínio pode e deve ser aproveitado na presente discussão. O Edital não pode ser analisado de forma autônoma, desconectado da Resolução, ainda que em sede de controle difuso. Como já dito aqui, trata-se de norma secundária, sendo tecnicamente inviável a declaração de inconstitucionalidade, pois a sua fonte normativa não é o texto constitucional, mas sim a Resolução do CNJ.

Ante todo o exposto, defendemos que há uma inadequação lógica no pedido formulado, já que a norma geradora do ato impugnado, a Resolução, se mantém constitucionalmente válida (e continuará sendo, até que o órgão jurisdicional constitucionalmente competente decida em sentido contrário).

Não é possível declarar a inconstitucionalidade de um ato, por vício material, se ele é totalmente compatível com a norma hierarquicamente superior, que lhe oferece lastro normativo direto e esta última continua válida. Tal decisão tratar-se-ia de verdadeiro “salto triplo carpado hermenêutico”5.

______

1 Site do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/tesauro/pesquisa.asp?pesquisaLivre=INCONSTITUCIONALIDADE#:~:text=INCONSTITUCIONALIDADE%20POR%20ARRASTAMENTO,-NOTA%3A&text=NOTA%3A-,Ocorre%20quando%20a%20declara%C3%A7%C3%A3o%20de%20inconstitucionalidade%20de%20uma%20norma%20impugnada,de%20conex%C3%A3o%20ou%20de%20interdepend%C3%AAncia.

 

2 Nos termos do entendimento definido no âmbito das ações: ADI 4412, Rcl 33459, Pet 4470.

3 Site do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=455591&ori=1#:~:text=Compet%C3%AAncia%20para%20julgar%20a%C3%A7%C3%B5es%20contra%20CNJ%20e%20CNMP%20%C3%A9%20exclusiva%20do%20STF

4 Excerto da petição inicial, fl. 08.

5 Expressão espirituosa utilizada pelo sempre festejado Ministro, poeta e professor, Dr. Carlos Ayres Britto. 

Adriana Cecilio Marco dos Santos
Advogada. Professora de Direito Constitucional da Universidade Nove de Julho. Especialista e Mestra em Direito Constitucional. Autora das obras: Advogando em Mandado de Segurança e A Separação dos Poderes e o Sistema de Freios e Contrapesos. Diretora Nacional da Coalizão Nacional de Mulheres.

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