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Desconsideração da personalidade jurídica nos casos de encerramento irregular das atividades da empresa (Tema repetitivo 1.210 do STJ)

A desconsideração da personalidade jurídica é um processo que busca responsabilizar indivíduos por abusos ou irregularidades empresariais.

4/4/2024

A desconsideração da personalidade jurídica decorre de incidente processual que busca levantar o “véu” ou escudo da pessoa jurídica a fim de alcançar a pessoa natural (sócios) protegida pela limitação da responsabilidade empresarial.

Os limites da responsabilidade da personalidade jurídica podem ser superados em uma discussão judicial, precisamente pelo chamado “incidente da desconsideração da personalidade jurídica”, que é tratado nos arts. 133 a 137 do CPC (lei federal 13.105/15) e observa os pressupostos previstos em lei, nos termos do §3° de seu art. 133. O chamado “abuso de personalidade” está previsto no art. 50 do Código Civil (lei federal 10.406/02). Para sua aplicação, há duas teorias: a Teoria Maior (referente ao texto do Código Civil); e a Teoria Menor, bastante difundida no âmbito da lei de crimes ambientais (art. 4º, da lei federal 9.605/98) e do CDC (art. 28, da lei federal 8.078/90). Confira:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

Das linhas acima transcritas se depreende a explícita distinção entre a Teoria Maior e a Teoria Menor, qual seja: a primeira exige a presença do desvio de finalidade ou da confusão patrimonial, cujas especificações são apresentadas adiante; enquanto a segunda, em face da expressiva amplitude dos requisitos, o mero prejuízo causado pela pessoa jurídica ao meio ambiente ou especificamente ao seu consumidor (TARTUCE, 2023, p. 190).

Ante a breve introdução do tema, convém expor que, em 29 de agosto de 2023, a 2ª seção STJ deu início à análise do Tema Repetitivo 1.210, cuja questão submetida a julgamento é “o cabimento ou não de desconsideração da personalidade jurídica no caso de mera inexistência de bens penhoráveis e/ou eventual encerramento irregular das atividades da empresa”.

Ao analisar a Proposta de Afetação no REsp 1.873.187/SP, leading case do aludido Tema, o ministro Raul Araújo entendeu que a questão discutida é recorrente na Corte Cidadã e ainda não recebeu solução uniformizadora, concentrada e vinculante, sob o rito especial dos recursos repetitivos, cuja pacificação contribuirá para oferecer maior segurança e transparência na solução a ser adotada pelas instâncias originárias e, até mesmo, pelos órgãos fracionários do STJ.

Contudo, ao exemplificar os mais recentes julgados da 2ª seção que tratam da tese afetada para julgamento, salta aos olhos o entendimento dominante de que “A mera inexistência de bens penhoráveis ou eventual encerramento irregular das atividades da empresa não enseja a desconsideração da personalidade jurídica (AgInt no AREsp 940.420/SP, relatora ministra Maria Isabel Gallotti, 4ª turma, julgado em 26/6/23, DJe de 30/6/23)”.

Sobre o cabimento de desconsideração da personalidade jurídica no caso de encerramento irregular das atividades da empresa, isto é, dissolução irregular, o CJF - Conselho de Justiça Federal aprovou, há muito tempo, o Enunciado 292, da IV Jornada de Direito Civil, no sentido de que: "O encerramento irregular das atividades da pessoa jurídica, por si só, não basta para caracterizar abuso da personalidade jurídica".

Sendo assim, apesar do Tema 1.210 ainda estar meramente afetado, sem data provável de julgamento, pode-se dizer que a tese a ser firmada aparentemente já está estabelecida.

Afinal de contas, considerados o entendimento dominante do STJ e o posicionamento pretérito do CJF, o levantamento do véu da pessoa jurídica deve ser restrito, seguindo categoricamente as previsões legais a fim de se preservar o relevante instituto jurídico que representa. Isso porque “a pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores”, nos moldes do art. 49-A do Código Civil.

Os pressupostos previstos em lei visam a impedir a ofensa ao “instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos”, nos termos do parágrafo único do art. 49-A do Código Civil. O escudo da pessoa jurídica deve ser mantido para trazer segurança àqueles que a utilizam, atendendo ao fundamento e objetivo da República Federativa do Brasil, quais sejam: “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” e “garantir o desenvolvimento nacional”, respectivamente prescritos no inc. IV, do art. 1°, e no inc. II, do art. 3°, da Constituição Federal.

Conforme se depreende das ementas dominantes e do enunciado da IV Jornada de Direito Civil, a mera alegação de inexistência de bens penhoráveis ou dissolução irregular das atividades da empresa não deve autorizar o incidente que já acolhe outros elementos como o “cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa" ou “transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante”, respectivamente, incs. I e II, do §2°, do art. 50 do Código Civil.

Ora, já está estabelecido que a autonomia patrimonial da empresa não deveria ser violada em virtude de mero encerramento irregular das suas atividades. Até mesmo porque ela possui função social de extrema relevância, a partir da sua fonte produtora, atividade econômica e manutenção de empregos, conforme preceitua o princípio da preservação da empresa prescrito no art. 47 da lei federal 11.101/05 (Lei de Falências e Recuperações Judiciais – LFRJ), justificando a menção feita aos dispositivos constitucionais.

Em que pese o entendimento majoritário da Corte Cidadã e o Enunciado 292 do CJF, a tese a ser firmada no Tema 1.210 exige uma discussão aprofundada, especialmente a partir da inteligência firmada pelo próprio STJ em se tratando de execuções fiscais combinada com a compreensão da profunda ilegalidade por detrás da dissolução irregular.

Matheus Corrêa de Melo
Matheus Corrêa de Melo é advogado associado de nosso escritório. Especialista em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas, o profissional foi graduado em Direito pelo Instituto de Ensino Superior de Brasília (IESB). Atualmente, é membro da Comissão de Direito Empresarial da OAB/DF. Matheus Corrêa de Melo também foi-membro da Comissão de Empreendedorismo Jurídico da OAB/DF.

João Antônio Novaes Venuto Ribeiro
É graduando em Direito pelo Centro de Ensino Unificado de Brasília (CEUB), colaborador do escritório Barreto Dolabella Advogados e ex-assessor da Defensoria Pública do Distrito Federal.

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