A simbiose que deve existir entre o direito processual e o direito material é fundamental para que o primeiro possa fornecer técnicas adequadas à solução dos conflitos.
Não bastasse a simbiose, há ainda determinados temas que, atavicamente, possuem um pé no direito material e outro no direito processual, sendo por isso mesmo chamado de bifrontes.
Seja pelo primeiro motivo, seja pelo segundo, não tem sido incomum encontrar normas processuais em diplomas dedicados ao direito material e vice-versa. O Código de Processo e o Código Civil têm uma miríade de exemplos.
Um caso que representa este fenômeno são os artigos que se situam na Seção IV (arts. 497 à 501) do Capítulo XIII do Título I do Livro I da parte Especial do CPC.
Para bom entendedor o parágrafo único do art. 497 traz um conceito de ato ilícito mais amplo e mais adequado do que o previsto no art. 186 do CCB que cuida apenas do ato ilícito danoso.
Todavia, nem sempre essas intromissões são elogiáveis.
É o caso, por exemplo, do novo parágrafo único do artigo 499 do CPC.
A redação original do dispositivo era apenas a constante do caput (A obrigação somente será convertida em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente).
Recentemente, por meio da lei 14.833, acrescentou-se ao referido dispositivo um parágrafo único com a seguinte redação “Nas hipóteses de responsabilidade contratual previstas nos arts. 441, 618 e 757 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e de responsabilidade subsidiária e solidária, se requerida a conversão da obrigação em perdas e danos, o juiz concederá, primeiramente, a faculdade para o cumprimento da tutela específica.”
O caput já era ruim, e o parágrafo único apenas piorou, em grande escala, o que já não estava bem-posto.
Para compreender a problemática por detrás desse artigo, é preciso ter lucidez sobre alguns aspectos do problema.
Em primeiro lugar, ao examinar o art. 499 do CPC (seja antes, ou depois, da modificação introduzida), estamos sempre pensando em obrigações que são, originariamente, de fazer, de não fazer ou de entregar coisa. Toda obrigação originariamente pecuniária escapará da incidência desse artigo, que, inserido na Seção do Código denominada “Do Julgamento das Ações Relativas às Prestações de Fazer, de Não Fazer e de Entregar Coisa”, cogita tão somente das obrigações ditas “específicas”. Assim, se a obrigação consiste, em sua origem, em pagar quantia, não é mais esse artigo que se deverá ter em exame.
Excluídas de nossa análise as obrigações originariamente consistentes em pagar quantia, há, ainda, um outro aspecto que deve ser enfatizado.
O direito material distingue dois tipos de inadimplemento: o absoluto e o relativo. Em linhas gerais, no primeiro caso, não há mais possibilidade de prestar (por exemplo, o objeto da obrigação foi destruído); no segundo, ainda há tal possibilidade, e, portanto, há apenas mora do devedor e o credor pode exigir o cumprimento do contrato tal qual pactuado.
O artigo 499, na primeira parte (que trata da conversão em perdas e danos por requerimento do autor), cuida apenas dos casos de inadimplemento relativo (quando a prestação ainda é possível de ser prestada)1. Frise-se: se o inadimplemento foi absoluto, no sentido de que não é mais possível, objetivamente, cumprir a obrigação, então a conversão em perdas e danos é automática, e segue as regras próprias de responsabilidade do devedor estatuídas no Código Civil (arts. 234 e ss.).
Porém, se o inadimplemento foi relativo, então há, em tese, duas possibilidades práticas abrem-se para o credor: (a) pedir, em juízo, o cumprimento da obrigação, tal qual originariamente pactuada (o próprio fazer, não fazer ou a coisa); ou (b) pedir a conversão da obrigação em perdas e danos.
Examinando essas duas possibilidades exsurge a questão: o credor pode escolher, discricionariamente, entre a opção “a” e a “b”? Ou existe alguma baliza ou requisito para que o credor peça a transformação da obrigação específica em perdas e danos?
Dois artigos, aparentemente parecem lidar diretamente com a questão, um constante do Código Civil e outro do Código de Processo: o art. 395, parágrafo único, do CC/02; e o art. 499 do CPC/15.
Cada um contendo regra aparentemente conflitante entre si: o Diploma Civil parecia colocar um requisito sine qua non para a conversão em perdas e danos: o desaparecimento da utilidade da prestação para o credor.2
Por outro lado, o CPC parecia dar ampla liberdade ao credor, simplesmente asseverando que a obrigação seria convertida em perdas e danos se o autor o requeresse — sem menção a qualquer requisito objetivo ou subjetivo a ser exigido para arrazoar tal pedido de conversão.
Contudo, conforme defendemos em ensaio sobre o tema3, a interpretação mais adequada parece sugerir o seguinte: o artigo 499, seja pelo Diploma em que está inserto, por sua posição topográfica no Código e até por seus antecedentes históricos, não conferia, como sua redação superficialmente poderia indicar, um poder irrestrito do credor, cuja mera opção de converter a obrigação pudesse submeter, discricionariamente, o devedor a prestar algo diverso daquilo que constava da obrigação originária, sob pena de realizar uma novação objetiva4 da avença por meio do processo.
Conforme defendemos no texto mencionado alhures, o art. 499, embora bifronte, deve ser entendido de forma compatível com o Código Civil, para conferir ao credor a possibilidade de converter a obrigação específica em perdas e danos, apenas se o devedor descumprisse a tutela já conferida em sentença. É preciso dizer que, antes da sentença, ainda não se sabe em favor de quem será revelado o direito, e, se de um lado existe um direito de exigir a prestação inadimplida, de outro, também existe o direito de negar a imputação do inadimplemento e até de, caso seja vencido, prestar a tutela específica nos termos em que foi pactuado.
Assim, proferida a sentença de procedência concedendo a tutela específica requerida na inicial; e, depois, descumprido o seu comando; somente a partir daí, poderia o credor optar, discricionariamente, pela conversão obrigação específica em perdas e danos pedido (claro, se ele não preferir insistir no cumprimento da obrigação específica).
É diante dessa conjuntura, aqui brevemente resumida, que foi inserido o parágrafo único ao art. 499 do CPC, o qual, como já transcrito, asseverou que “Nas hipóteses de responsabilidade contratual previstas nos arts. 441, 618 e 757 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e de responsabilidade subsidiária e solidária, se requerida a conversão da obrigação em perdas e danos, o juiz concederá, primeiramente, a faculdade para o cumprimento da tutela específica.”
Parece-nos que o parágrafo único deixa implícito o seguinte:
(a) há certos casos em que o poder do autor de converter a obrigação em perdas e danos é restrito, na exata medida em que é uma faculdade do devedor o cumprimento da tutela específica tal qual originariamente pactuada (fazer, não fazer, entrega de coisa);
(b) não se tratando desses casos específicos previstos no parágrafo único, o autor poderia, livremente, decidir pela conversão.
Dito de outra forma, o parágrafo único parece criar uma proteção ao devedor, que terá, em certas hipóteses, assegurada a possibilidade de prestar a obrigação tal qual originariamente pactuada, antes que a obrigação seja convertida em perdas e danos a pedido do autor.
Até aqui tudo parece fluir com certa tranquilidade. O problema surge, com o parágrafo único, e consiste em saber em que momento o autor pode requerer a conversão em perdas e danos e em que momento essa objeção pode ser utilizada pelo devedor.
Se adotarmos uma posição de que este dispositivo deve ser lido sob o prisma processual e no contexto em que ele está inserido (do julgamento das ações de obrigações específicas), então, seguindo a linha do que já dissemos, o direito do devedor que foi condenado de cumprir a sentença na forma específica seria pressuposto do pedido de conversão em perdas e danos, mantendo incólume o art. 395, parágrafo único do CCB.
Por outro lado, se entendermos que o conteúdo do parágrafo único do art. 499 CPC seja de direito material e, nos casos que ele menciona, tenha criado uma restrição de direito material ao direito do credor descrito no artigo 395, parágrafo único do CCB, então este limite traria duas consequências imediatas:
(i) o direito de converter a obrigação em perdas e danos nas hipóteses do parágrafo único do art. 499 do CPC teria um novo suporte fático: inutilidade da prestação + oportunização de cumprimento da obrigação na forma específica;
(ii) o caput do art. 499 do CPC também seria de direito material e nele não há nenhuma objeção para a conversão discricionária por parte do credor, que nem sequer precisaria demonstrar, nos casos que escapam do parágrafo único, a inutilidade prevista no art. 395, parágrafo único do CCB.
Imaginemos uma situação hipotética.
Havendo inadimplemento relativo, e, portanto, sendo possível realizar a prestação, mesmo assim o credor, valendo-se do artigo 395, parágrafo único do CCB, decide promover a demanda indenizatória sob fundamento da inutilidade da prestação5. Assim, considerando estar a hipótese demandada dentro do rol das situações previstas no parágrafo único do art. 499 do CPC, poderia o devedor alegar em contestação a inépcia da demanda ajuizada porque faltaria no suporte fático do direito pretendido pelo autor o pedido principal de adimplemento específico e apenas subsidiariamente – caso não houvesse o cumprimento pelo devedor – o pedido de perdas e danos?
Nada obstante a redação do dispositivo ter um colorido de direito material, parece-nos que há inúmeras razões que indicam ser mais adequado dar uma interpretação processual ao parágrafo único tal qual já havíamos defendido para o caput do art. 499, isto é, o devedor pode invocar o parágrafo único a seu favor, naquelas hipóteses, apenas após a sentença.
Uma de duas: ou ambos os dispositivos são processuais (caput e parágrafo único) ou ambos são materiais, caso em que o art. 395, parágrafo único estaria derrogado.
Para quem acha que os problemas de interpretação trazidos parágrafo único do artigo 499 do CPC terminariam aí não imagina o quanto ainda por ser confusa a sua compreensão se tentarmos fazer uma análise das tais hipóteses nele contempladas.
O texto diz: “Nas hipóteses de responsabilidade contratual previstas nos arts. 441, 618 e 757 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e de responsabilidade subsidiária e solidária, se requerida a conversão da obrigação em perdas e danos, o juiz concederá, primeiramente, a faculdade para o cumprimento da tutela específica.”
Muito bem.
Apenas para apimentar o debate, indaga-se: qual o sentido de o texto mencionar que é direito/faculdade do devedor prestar a tutela específica antes da conversão em perdas e danos se a hipótese contemplada pelo 441 do CCB não enseja tutela material específica?6
Ainda na “fumaça da pólvora” para usar clássica expressão do querido e insuperável professor Jose Carlos Barbosa Moreira há muito que se pesquisar, refletir e debater sobre o novel dispositivo e até conhecer as razões legislativas de sua invenção. Talvez isso ajude a dele retirar o que há de melhor e que ainda esteja oculto, ou, por outro lado servirá para desgraçá-lo de uma vez. Todavia, enquanto isso, valendo-nos da celebre frase de Abelardo Barbosa, velho guerreiro, sobre o novel parágrafo único do art. 499 do CPC pode-se dizer que não vim aqui para explicar, vim aqui para confundir.
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1 Não desconhecemos que o caso de inutilidade da prestação é equiparado, por certos autores, ao inadimplemento absoluto; contudo, aqui utilizamos a expressão inadimplemento relativo com significado amplo, para nos referirmos ao caso em que a prestação ainda é materialmente possível de ser cumprida.
2 E, não seria diferente, uma vez que há diversas teorias que buscam explicar o que significa “perda da utilidade” da prestação e como aferi-la, desde aquelas que entendem ser uma opção livre do credor até aquelas que enxergam em tal regra um requisito objetivo, passível de ser submetido ao controle do juiz.
3 RODRIGUES, Guilherme Abelha; RODRIGUES, Marcelo Abelha. “Notas para uma compreensão da frase “a obrigação somente será convertida em perdas e danos se o autor o requerer” contida no art. 499 do Código de Processo Civil”, in Processo de Execução e Cumprimento de Sentença. Coordenação de Araken de Assis e Gilberto Bruschi. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, p. 101-115.
4 Expressão certeira de MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; e MITIDIERO, Daniel; Código de Processo Civil Comentado. 7.ª ed, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, comentário ao art. 499, item 1, verbis: “Poder-se-ia imaginar que o credor tem a livre opção em optar pelo equivalente em dinheiro ao valor da prestação não cumprida constituindo tal opção uma espécie de direito potestativo reconhecido ao credor. Porém, exame mais acurado da questão indica outra solução. Na verdade, o devedor tem o direito de cumprir a prestação tal como contratada, não sendo possível ao credor exigir dinheiro no lugar da prestação objeto do contrato, sob pena de se aceitar uma novação objetiva unilateral. Caso o credor pudesse pedir tutela pelo equivalente em dinheiro diante do não cumprimento da obrigação contratual, ele teria o poder de transformar a obrigação pactuada, o que violaria o sistema das obrigações e o princípio da autonomia de vontade, tornando legítima a novação unilateral da prestação contratada.”
5 Utilizamos a expressão inadimplemento relativo, sem desconhecer que a inutilidade da prestação, conforme caracterizada por alguns, se equipara ao inadimplemento absoluto.
6 Se ao menos o dispositivo (parágrafo único do art. 499 do CPC) se referisse aos casos de vícios redibitórios do CDC, onde é possível a tutela específica (art. 18, §1º, I), mas não é o caso pois o texto foi expresso ao mencionar o art. 441 do CCB.