Migalhas de Peso

Prescrição penal, o STF e Lucas 23:34

A ideia de que o STF seria uma Corte de pacificação e uniformização da jurisprudência é tão linda quanto irreal.

30/3/2024

O tema da prescrição penal não deveria ser algo tão complexo ou difícil de se entender (e de se aplicar!). Qualquer profissional do direito que tiver arraigado os conceitos básicos de direito penal e for minimamente hábil em contas simples, a prescrição penal torna-se algo quase que de caráter objetivo, matemático.

Ao mesmo tempo, uma decisão da Suprema Corte, em especial tomada pelo plenário, em sua composição completa, deveria pacificar a jurisprudência e vincular o entendimento, qualquer que seja o grau e órgão judicante. Independentemente da ação em que tomada a decisão, mesmo que em um habeas corpus.

Ou seja, ainda que não houvesse uma vinculação formal, porque não tomada em processo de controle abstrato de normas, a linha e os fundamentos usados em uma decisão proferida pelo plenário do STF deveriam vincular material, ética e filosoficamente os tribunais. Igualmente, o próprio STF. Em especial sobre questões de caráter objetivo. Deveria.

No ano de 2021 foi finalizado o julgamento do AgRg no AI 794.971/RJ, iniciado sete anos antes, em 2014. Ali, por maioria, fixou-se importante tese sobre o tema da prescrição da pretensão punitiva estatal. A ação ficou conhecida como “o caso Edmundo” e julgou recurso do ex-futebolista que havia sido condenado por três homicídios culposos.

Segundo o acórdão, aos fatos praticados antes da vigência da lei 13.967/19, a pretensão punitiva somente se consolida após o trânsito em julgado, de modo que a prescrição corre mesmo na pendência de julgamento de recursos excepcionais inadmissíveis1.

Conforme argumentou o Ministro Marco Aurélio, relator para o acórdão, “De duas, uma: ou dá-se eficácia à interposição do recurso especial para o Superior Tribunal de Justiça e do recurso extraordinário para o Supremo, embora incabíveis, quer quanto à pretensão punitiva, quer em relação à prescrição da pretensão executória do Estado, ou não”.

De acordo com o que expressamente constou de seu voto, aprovado pela maioria do Tribunal Pleno: a causa impeditiva da prescrição do 116, III, do CP não se aplica a fatos pretéritos à lei 13.967/19. Assim, a prescrição punitiva corre até o início da pretensão executória, ou seja, até o efetivo trânsito em julgado – e aqui vem a parte mais importante do voto vencedor! –, que não retroage para o prazo do recurso inadmissível.

Com isto, foi declarada extinta a pena do ex-jogador Edmundo, o que virou notícia em todo o mundo, bem como no próprio site do STF2.

De lá pra cá, todavia, milhares de outros jurisdicionados não tiveram a mesma sorte. Na verdade, a grande maioria das decisões vai exatamente em sentido contrário ao julgado e aplicado no “caso Edmundo”, em um malabarismo jurídico inexplicável, negando a ocorrência da prescrição da pretensão punitiva quando da inadmissibilidade dos recursos extraordinários, fazendo virtualmente retroagir a data do trânsito em julgado do processo, extirpando o inciso LVII do art. 5º de nossa Constituição Federal. O que é pior: mesmo aos casos anteriores à mudança legislativa promovida pela lei 13.967/19.

O STF e os Tribunais inferiores ignoram a decisão do pleno, seus fundamentos, e retomam jurisprudências de 2005, 2007, 2017, sob outra perspectiva legal, doutrinária e jurisprudencial para, a ferro e fogo, executar decisões evidentemente prescritas. Ignora-se a norma e os precedentes para efetivar execução de pena. É um hábito utilitarista e afastado da dogmática que a Suprema Corte vem adotando quando o assunto é prescrição.

Está em curso, hoje, mais um julgamento (virtual, claro) de mais um AgRg em HC3, com votação, até o momento unânime, para o desprovimento do recurso e consequente denegação da ordem.

É mais um entre milhares de réus que não tiveram a mesma sorte do ex-jogador. A expressão que releva a necessidade de igualdade e isonomia precisa ser atualizada: “Pau que dá em Chico, aparentemente não dá em Francisco”.

A ideia de que o STF seria uma Corte de pacificação e uniformização da jurisprudência é tão linda quanto irreal4. A estabilidade da jurisprudência de um tribunal depende também da observância de seus próprios precedentes, inclusive por seus órgãos fracionários.

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1 AI 794.971 AgR, rel. min. Roberto Barroso, rel. p/ acórdão min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, Dje 28/06/2021.

2 https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=464409&ori=1 (acessado em 27/3/2024).

3 HC 234.823/RJ.

4 As questões sobre o “foro privilegiado” que o diga. https://www.estadao.com.br/opiniao/supremo-a-la-carte/.

Pedro Machado de Almeida Castro
Advogado criminalista em Machado de Almeida Castro & Orzari Advogados, mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo - USP e presidente do Instituto da Advocacia Social - INAS.

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