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Desvendando o cancelamento unilateral do plano de saúde coletivo: aspectos fundamentais e direitos dos segurados

Medidas necessárias para tomar quando o plano de saúde é cancelado sem justificativa.

28/3/2024

Notícias como estas estão assustando diversos consumidores de planos de saúde:

Nota: Amil anuncia cancelamento de contratos de adesão

A Amil informa que está reformulando sua grade de produtos com modelos que assegurem qualidade da assistência e sustentabilidade dos contratos. Nesse contexto, a modalidade de planos coletivos por adesão, que era até então amplamente disponibilizada para plataformas denominadas administradoras de benefícios – que efetivam contratos diretamente com as entidades de classe – foi revista1.

No mesmo sentido:

Em crise, planos de saúde rescindem contratos e deixam crianças sem tratamento2.

E mais:

    Unimed cancela planos de saúde coletivos para pequenas empresas3.

O cancelamento unilateral de um plano de saúde ocorre quando a operadora ou a administradora de benefícios decide encerrar o contrato, muitas vezes sem aviso prévio, e sem apresentar uma justificativa adequada para essa ação. Esse é um cenário que tem gerado grande desconforto e preocupação para os beneficiários.

Afinal, ao contratar um plano de saúde, os consumidores esperam contar com um serviço contínuo e de qualidade para cuidar da sua saúde e da de seus familiares. No entanto, em muitos casos, as operadoras optam por rescindir contratos de forma arbitrária, deixando os beneficiários desamparados.

De início, importante pontuar que as regras de cancelamento dos planos de saúde pelas operadoras dependem da modalidade de contratação do plano de saúde:

  1. Individual ou Familiar: são aqueles contratados diretamente por pessoas físicas, individualmente ou com seus dependentes.
  2. Coletivo empresarial a contratação é feita pelo empregador para seus funcionários e dependentes.
  3. Coletivo por adesão a contratação é feita por sindicatos, associações, cooperativas etc. para seus associados e dependentes.

Partindo dessa premissa, o questionamento que surge é acerca da atuação, se legal ou abusiva, por trás da possibilidade de cancelamento unilateral no caso de planos coletivos.

 

Cancelamento unilateral pelas operadoras ou administradora de benefícios

 

Os planos de saúde coletivos, sejam eles empresariais ou por adesão, podem ser cancelados pela operadora de saúde de forma unilateral e sem nenhuma justificativa, desde que isso seja feito após a vigência do contrato e mediante notificação com antecedência de 60 dias.

 

Embora a Lei dos Planos de Saúde não trate expressamente sobre essa questão, existe Resolução da ANS que autoriza o cancelamento unilateral do plano de saúde pela operadora.

 

A Resolução 557, de 2022, da ANS, em seu artigo 23 prevê que as condições de rescisão do contrato ou de suspensão de cobertura, nos planos privados de assistência à saúde coletivos por adesão ou empresarial, devem constar do contrato celebrado entre as partes.

 

A Resolução 509, de 2022, da ANS, estabelece no Anexo I as condições de rescisão pela operadora, sendo que:

  1. A operadora poderá rescindir o contrato desde que haja previsão contratual e que valha para todos os associados.
  2. O beneficiário poderá ser excluído individualmente pela operadora em caso de fraude, perda de vínculo com a pessoa jurídica contratante, ou por não pagamento.
  3. O contrato coletivo somente pode ser rescindido imotivadamente após a vigência do período de doze meses.
  4. A notificação deve ser feita com 60 dias de antecedência.

Por sua vez, o CDC estabelece que são direitos básicos do consumidor a informação adequada e clara, de modo que a transparência e a comunicação eficaz entre as partes são essenciais para proteger os direitos dos consumidores.

 

Ainda, o CDC também estabelece que as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor e que são nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade.

 

Nesse cenário, ao cancelar imotivadamente o plano de saúde coletivo sem justo motivo e sem aviso prévio coloca o consumidor em clara desvantagem, ferindo princípio basilar de qualquer relação contratual - a boa-fé.

 

Por essas razões é que a intenção do cancelamento deve preceder da notificação prévia e o caso ocorra sem comunicação formal torna-se ilegal e gera dever de indenizar, segundo jurisprudência dos tribunais brasileiros.

 

No mais, o art. 1º da Resolução 19/99 do Conselho de Saúde Suplementar determina que se disponibilize ao beneficiário plano ou seguro de assistência à saúde na modalidade individual ou familiar similar, sem necessidade de cumprimento de novos prazos de carência, desde que esse produto seja comercializado pela empresa. 

 

Destaca-se, por oportuno, que segundo entendimento sedimentado no STJ, não pode ser considerada ilegal a atitude da operadora que se nega a comercializar plano individual e assim ofertar a migração modalidade individual ou familiar similar, uma vez que não há nenhuma norma legal que as obrigue a atuar em determinado ramo de plano de saúde.

 

De modo que o fato de não comercializar planos de saúde individuais dispensa a operadora de fornecê-los em substituição ao plano coletivo empresarial rescindido unilateralmente por ela.

 

Acresce ainda que ao cancelar imotivadamente, a operadora de saúde deve oportunizar a migração dos usuários sem cumprimento de carências, permitindo a portabilidade de carências, sob risco de inobservância do que dispõe o art. 1º da Resolução 19/99 do CONSU e a Resolução Normativa 438/18.

 

Condições que tornam o cancelamento unilateral pelas operadoras ou administradora de benefícios ilegal ou abusivo

 

Com dito acima, a Resolução 509, de 2022, da ANS, estabelece no Anexo I as condições de rescisão pela operadora, que somado ao disposto na Resolução 19/99 do Conselho de Saúde Suplementar e Resolução 557, de 2022, da ANS, é possível extrair que o cancelamento unilateral pelas operadoras ou administradora de benefícios é legal, mas pode vir a ser abusivo caso atuem em descumprimento aos normativos e quando colocam os consumidores em risco.

 

Assim, torna o cancelamento abusivo:

  1. cancelamento sem previsão contratual;
  2. cancelamento apenas de parte da categoria, ou seja, cancelamento dos inativos, mantendo os ativos;
  3. a operadora de saúde não oportunizar a portabilidade, com a migração dos usuários sem cumprimento de carências;
  4. a operadora de saúde não ofertar a migração modalidade individual ou familiar similar, caso comercialize;
  5. cancelamento ocorrer enquanto o usuário estiver em tratamento médico
  6. cancelamento que coloca em risco uma categoria hipervulnerável – os idosos ou pessoas com deficiência, por exemplo.

Os dois últimos pontos são os mais preocupantes e, por isso, merece maiores ilações.

 

Cancelamento unilateral enquanto o beneficiário está tratamento de saúde

 

A Segunda Seção do STJ, em 22/6/22, por unanimidade, fixou a seguinte tese jurídica no Tema Repetitivo 1082:

 

"A operadora, mesmo após o exercício regular do direito à rescisão unilateral de plano coletivo, deverá assegurar a continuidade dos cuidados assistenciais prescritos a usuário internado ou em pleno tratamento médico garantidor de sua sobrevivência ou de sua incolumidade física, até a efetiva alta, desde que o titular arque integralmente com a contraprestação devida." (REsp 1.846.123-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 2ª Seção, unanimidade, j. 22/6/22, DJe 01/8/22 - Tema Repetitivo 1082) 

 

Segundo a decisão, a operadora, mesmo após exercer o direito legítimo à rescisão contratual, deve assegurar a continuidade dos cuidados assistenciais até a efetiva alta médica.

 

O entendimento vem fundamentado na interpretação sistemática e teológica do art. 8º, §3º, "b" e art. 35-C, inc. I e II, ambos da Lei 9.656/98, bem como do art. 16 da Resolução Normativa 465/21 da ANS.

 

Nas razões de decisão, o Min. Relator Luis Felipe Salomão, apontou que "além de encontrar previsão nos dispositivos acima citados, essa conclusão também está amparada na boa-fé objetiva, na segurança jurídica, na função social do contrato e no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana".

 

Assim, é assegurado ao beneficiário o direito de se manter no plano de saúde, nas mesmas condições de cobertura assistencial, enquanto perdurar a necessidade de tratamento médico.

 

Importante destacar que se entende por tratamento médico aquele paciente em tratamento continuado, não necessariamente em internação.

 

Portanto, aquele que se encontras sem previsão de alta médica, ou seja, em necessidade de procedimentos terapêuticos e tratamento médico.

 

Segundo o Conselho Regional de Medicina, no Parecer - Consulta nº 116.915/094 alta médica significa:

 

A alta médica consistiria, por sua vez, na finalização do tratamento de um paciente, pressupondo a cura. Continuando a partir do exemplo anterior, seria a liberação do paciente dos medicamentos e retirada do aparelho gessado após a consolidação adequada da fratura, possibilitando o retorno do mesmo às suas atividades habituais.

 

Desta maneira, o cancelamento do plano de saúde jamais pode ocorrer enquanto o beneficiário estiver em pleno tratamento médico garantidor de sua sobrevivência ou de sua incolumidade física, devendo ser mantido até a efetiva alta.

 

Cancelamento unilateral de categoria hipervulnerável – destarte dos idosos

 

A grande maioria desses cancelamentos tem ocorrido em carteiras de beneficiários idosos, de modo que em situações como essa, em que a exclusão de pessoas com idade avançada - implicaria, na prática, em impossibilidade de contratação de novo plano de saúde com as mesmas coberturas.

 

É sabido que o Estatuto do idoso, reza em seu artigo 15, §3º:

 

Art. 15.(...) § 3. É vedada a discriminação do idoso nos planos de saúde

pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade.

 

As leis vigentes hoje no país – como o Estatuto do Idoso, o Código de Defesa do Consumidor, o Código Civil e a própria Lei de Plano de Saúde – já evidenciam uma necessidade de que se confira um tratamento diferenciado e cuidadoso ao beneficiário

idoso.

 

Isso porque, considerando que o consumidor é tratado como vulnerável diante do fornecedor, o consumidor idoso apresenta uma vulnerabilidade potencializada, já que é mais suscetível à doença e, consequentemente, mais dependente dos serviços de assistência à saúde.

 

A Constituição Federal, ao qualificar os serviços de saúde como de relevância pública e tutelar o dever de amparo aos idosos, manifesta preocupação com a saúde na  velhice e confere especial proteção aos contratos de plano de saúde firmados com idosos.

Essa proteção se concretiza com a imposição às operadoras de comportamento que

contribua para o atendimento dos valores sociais buscados pelo legislador, que minimizem a condição de hipervulnerabilidade do idoso.

 

Assim, apesar da resilição unilateral e imotivada do contrato de plano de saúde coletivo ser considerada lícita, é imprescindível que deve ser levada em consideração o descarte do idoso, privilegiando o interesse daqueles há muito contribuíam para o plano.

 

Tanto assim é que o Superior Tribunal de Justiça assim já se manifestou no sentido de que é certo que a pessoa idosa ostenta a condição de hipervulnerável e merece proteção especial, inclusive na Saúde Suplementar:

7. E, em se tratando de dependente idoso, a interpretação das referidas normas há de ser feita sob as luzes do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/03) e sempre considerando a sua peculiar situação de consumidor hipervulnerável . 8. Recurso especial conhecido e desprovido, com majoração de honorários" (Recurso Especial nº 1.871.326/RS, Terceira Turma, Relatora Ministra NANCY ANDRIGHI , data do julgamento: 1º/09/2020, DJe de 09/09/2020, destaques não originais ).

 

4. Hipervulnerabilidade do consumidor idoso no mercado de planos de saúde. Doutrina sobre o tema . 5. Necessidade de se assegurar ao dependente idoso o direito de assumir a titularidade do plano de saúde, em respeito aos princípios da confiança e da dignidade da pessoa humana. Julgados desta Corte Superior . 6. O agravante não impugnou os fundamentos centrais da decisão agravada. 7. Agravo Interno não provido.". ( AgInt no REsp 1780206/DF , Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/09/2020, DJe 24/09/2020, destaques não originais )

 

Dessa maneira, a hipervulnerabilidade do idoso no mercado de planos de saúde e o respeito à dignidade da pessoa idosa atraem a garantia de manutenção nos planos coletivos por adesão, vedando o cancelamento imotivado e unilateral.

 

Conclusão

 

Em conclusão, o cancelamento unilateral dos planos de saúde coletivos por parte das operadoras e/ou administradoras de benefícios sem motivo válido é uma questão que merece atenção e ação imediata por parte das autoridades reguladoras e da sociedade como um todo.

 

Ter um plano de saúde cancelado unilateralmente pela operadora pode ser uma situação estressante, mas entender seus direitos e opções é essencial para tomar as medidas adequadas. 

 

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1 https://cqcs.com.br/noticia/nota-amil-anuncia-cancelamento-de-contratos-de-adesao/#:~:text=S%C3%A3o%20Paulo%2C%20SP%20%E2%80%93%2025%20de%20mar%C3%A7o%20de%202024&text=Como%20desdobramento%2C%20est%C3%A1%20em%20curso,h%C3%A1%20pelo%20menos%20tr%C3%AAs%20anos.

2 https://andi.org.br/infancia_midia/em-crise-planos-de-saude-rescindem-contratos-e-deixam-criancas-sem-tratamento/

3 https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2023/07/5113212-unimed-cancela-planos-de-saude-coletivos-para-pequenas-empresas.html

4 https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Pareceres&dif=a&ficha=1&id=9578&tipo=PARECER&orgao=Conselho%20Regional%20de%20Medicina%20do%20Estado%20de%20S%E3o%20Paulo&numero=116915&situacao=&data=14-09-2010

 

Aline Vasconcelos
Advogada especialista em Saúde Suplementar, com atuação há 15 anos em assessorias de empresas e na defesa de beneficiários em questões relacionadas a planos de saúde.

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