Hodiernamente inúmeras pessoas, sem qualquer formação jurídica, sem ter lido um único livro de direito penal ou de processo penal e sem saber diferenciar o Código Penal do Código de Processo Penal, palpitam em relação a todo e qualquer assunto envolvendo a matéria. Não resta dúvida que o direito penal se faz presente na vida cotidiana já que trata de crimes e penas.
Trata-se, inegavelmente, de assuntos pulsantes que despertam interesse da sociedade e da mídia. Assim, toda vez que ocorre em tese um crime os palpiteiros de plantão logo se manifestam, notadamente, para rogar por punição.
Assuntos como pena de morte, prisão perpétua, tortura, redução da “maioridade penal” e, mais recentemente, sobre a descriminalização das drogas, descriminalização do aborto e as saídas temporárias, vulgarmente chamada de “saidinhas”, são discutidos até mesmo nas mesas dos bares entre uma cerveja e outra.
Recentemente, tomou conta do noticiário nacional e internacional o julgamento e a condenação do ex-jogador Daniel Alves, na Espanha, a pena de quatro anos e seis meses pelo crime de “agressão sexual”, crime equivalente ao estupro no Brasil. De igual repercussão foi a homologação pelo STJ da sentença proferida na Itália que condenou o ex-jogador Robinho a pena de nove anos de prisão, também, pelo crime de estupro praticado em Milão.
Enquanto em relação ao caso Daniel Alves – que teve a liberdade provisória concedida para aguardar o julgamento do recurso interposto pela defesa em liberdade depois de pagar uma fiança estipulada em 1 milhão de euros (cerca de R$ 5,4 milhões) e após 14 meses na prisão – a imprensa e os palpiteiros se rebelaram, protestando veementemente contra a soltura do jogador, no caso do ex-jogador Robinho ocorreu uma verdadeira celebração em razão da sua prisão imediata determinada pelo STJ.
Sem adentrar no mérito das respectivas condenações, não resta dúvidas de que o crime de estupro é grave e abjeto. Sendo necessário destacar que o Brasil registra um estupro a cada oito minutos, segundo dados divulgados no relatório "Violência contra meninas e mulheres" no 1º semestre de 2023, feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
O 1º semestre de 2023 registrou 34 mil casos de estupro de meninas e mulheres. Esses dados correspondem aos registros de boletins de ocorrência em delegacias da poícia civil de todo o país, número que está subnotificado, já que de acordo com o Ipea apenas 8,5% dos casos de estupro que ocorreram no país são registrados na polícia. Considerando esse fator, o número de estupros no 1º semestre de 2023 pode ser de aproximadamente 425 mil casos.
Assim, é evidente que casos de estupro gerem grande indignação, especialmente quando os envolvidos são pessoas famosas e, até mesmo, idolatradas por muitos. Contudo, é necessária prudência quando da análise dos casos feitas, muitas das vezes de forma atabalhoada, por quem não é especialista na área e sem o mínimo de conhecimento de direito.
É indubitável que a mídia contribui sobremaneira repercutindo os fatos. Não foi sem razão que o sociólogo Niklas Luhmann1 afirmou que “aquilo que sabemos sobre nossa sociedade, ou mesmo sobre o mundo no qual vivemos, o sabemos pelos meios de comunicação”.
Lado outro, imperioso salientar que no Estado democrático de direito não se pode prescindir da liberdade de expressão e da liberdade de informação, tanto um quanto outro deve ser assegurado. Entretanto, nem um e nem outro é um direito absoluto que pode suplantar os demais, principalmente, os que dizem respeito à dignidade da pessoa humana. Daí, porque, por mais relevantes que sejam, em hipótese alguma, as liberdades de expressão e informação podem afrontar as liberdades e garantias fundamentais.
Na seara do processo penal voltado para o espetáculo, como bem já salientou o magistrado e professor Rubens Casara2,
“não há espaço para garantir direitos fundamentais. O espetáculo não deseja chegar a nada, nem respeitar qualquer valor, que não seja ele mesmo. A dimensão de garantia, inerente ao processo penal no Estado democrático de direito (marcado por limites ao exercício do poder), desaparece para ceder lugar à dimensão de entretenimento... No processo espetacular desaparece o diálogo, a construção dialética da solução do caso penal a partir da atividade das partes, substituído pelo discurso dirigido pelo juiz: um discurso construído para agradar às maiorias de ocasião, forjadas pelos meios de comunicação de massa em detrimento da função contramajoritária de concretizar os direitos fundamentais... O caso penal passa a ser tratado como uma mercadoria que deve ser atrativa para ser consumida. A consequência mais gritante desse fenômeno passa a ser a vulnerabilidade a que fica sujeito o vilão escolhido para o espetáculo.”
Por fim, embora reconhecendo, como já foi dito, a atração despertada pelos temas de Direito Penal – não é sem razão que filmes e séries sobre crimes e julgamentos são fórmulas para o sucesso – e que nada impeça qualquer pessoa de emitir suas opiniões ou palpites sobre determinados assuntos, quando não forem feitas por especialistas, devem ser vistas com inúmeras ressalvas.
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LUHMANN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. São Paulo: Paulus, 2005. P 15.
CASARA, R. R. Rubens. Processo penal do espetáculo: ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.