DEVER DE PRESTAR CONTAS DO AGENTE PÚBLICO E INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA
Conforme bem apontado no acórdão: 11.161/20 – TCU – 2ª câmara, de relatoria do min. Raimundo Carreiro, a obrigatoriedade de demonstrar a boa e regular aplicação dos recursos públicos – imposta por determinação constitucional1 a qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos –, acarreta o dever do gestor público de prestar contas às autoridades administrativas competentes acerca da aplicação dos recursos públicos sob a sua responsabilidade.
A obrigatoriedade de prestar contas imposta ao administrador público tem como objetivo mitigar o conflito principal-agente, existente entre a sociedade (principal), detentora original de todos os direitos e poderes, e os gestores públicos (agentes), que se encontram, necessariamente, a serviço da coletividade2.
Nesse sentido, a prestação de contas possibilita o controle dos atos praticados pelo gestor público, por meio da análise de documentos e de demonstrativos específicos capazes de evidenciar a boa e regular aplicação dos recursos públicos3, bem como a observância aos dispositivos legais e regulamentares aplicáveis, visando garantir o interesse de toda a sociedade na regular aplicação de recursos públicos, de maneira ética, eficiente, econômica e transparente.
Importante destacar que a obrigatoriedade de prestar de contas pelo gestor público em nada se confunde com o ônus da prova. Pela interpretação do instituto, à luz do CPC verifica-se que o ônus da prova, em regra, incumbe a quem alega fato impeditivo, constitutivo, modificativo ou extintivo de direito4.
No momento inicial da prestação de contas, não existe qualquer alegação por parte da administração pública controladora a respeito do mérito das contas. Em outras palavras, não existe presunção de ilegalidade das contas5. Sob esse prisma, a prestação de contas se aproxima da ideia de boa-fé objetiva, relacionada com a conduta esperada do gestor público por toda a sociedade, que demanda um dever proteção, de esclarecimento e de lealdade6 por parte do agente público, com a finalidade de manter a confiança e as legítimas expectativas na relação entre a sociedade e o agente público.
No entanto, em decorrência da obrigatória observância da regra constitucional de prestação de contas, eventual omissão no dever de prestar contas possui duas relevantes consequências: i) por um lado, impõe à autoridade administrativa competente, sob pena de responsabilidade solidária, o dever de instaurar processo de tomada de contas especial para apuração dos fatos, identificação dos responsáveis e quantificação do dano7; e, por outro, ii) autoriza o TCU a julgar as contas dos responsáveis como irregulares8, além de permitir a condenação do gestor público em débito, obrigando o gestor omisso a restituir a integralidade dos valores repassados pelo erário público, por existir, nesses casos específicos, presunção de dano ao erário9.
Portanto, as consequências da não prestação de contas por parte do administrador público são graves, e seus efeitos somente podem ser afastados caso o gestor público comprove que as contas são iliquidáveis10, seja por motivo de caso fortuito ou de força maior, comprovadamente alheio a sua vontade.
Obviamente, quando o gestor público omisso alegar a impossibilidade de prestar contas, por motivo de caso fortuito ou de força maior, deve comprovar sua afirmação, não havendo, mesmo nesse caso, qualquer inversão de ônus da prova, pois o ônus da prova incumbe ao responsável que alega a existência de fato impeditivo do dever de prestar contas, com fundamento no art. 373, inciso II, do CPC11.
Portanto, no âmbito das tomadas de contas especiais não existe inversão do ônus da prova relacionado ao dever de prestar contas. Ao contrário, o dever de prestar contas decorre de mandamento constitucional, legitimado pela autêntica expectativa da sociedade em relação ao comportamento dos agentes públicos, que demanda a observância do dever de proteção da coisa pública, de esclarecimento dos atos de gestão praticados e de lealdade para com a coletividade.
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1 De acordo com o art. 70, parágrafo único, da Constituição Federal de 1988, “prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária”.
2 UNIÃO, Tribunal de Contas. Referencial básico de governança organizacional para organizações públicas e outros entres jurisdicionados ao TCU. p. 38.
3 Segundo dispõe o art. 194, do Regimento Interno do Tribunal de Contas da União (RITCU), os processos de tomada ou prestação de contas ordinária conterão os elementos e demonstrativos especificados em ato normativo, que evidenciem a boa e regular aplicação dos recursos públicos e, ainda, a observância aos dispositivos legais e regulamentares aplicáveis.
4 CPC. Art. 373. O ônus da prova incumbe: I – ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito; e II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. § 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.
5 Conforme abordado a seguir, caso o gestor público não preste contas no prazo determinado, poderá ser considerado omisso e suas contas podem ser julgadas irregulares em decorrência da omissão no dever de prestar contas.
6 Cristiano Farias e Nelson Rosenvald afirmam que os deveres de conduta, decorrentes da boa-fé objetiva, se desdobram em deveres de proteção, de esclarecimento e de lealdade (p. 197). Apesar de os referidos autores tratarem dessas dimensões no âmbito das relações contratuais, entendemos que os mesmos deveres se encontram presentes na relação de sujeição especial existente entre administração pública e as pessoas obrigadas a prestar contas.
7 A Lei Orgânica do Tribunal (LOTCU), estabelece, no art. 8°, que “diante da omissão no dever de prestar contas, da não comprovação da aplicação dos recursos repassados pela União, na forma prevista no inciso VII do art. 5º desta Lei, da ocorrência de desfalque ou desvio de dinheiros, bens ou valores públicos, ou, ainda, da prática de qualquer ato ilegal, ilegítimo ou antieconômico de que resulte dano ao Erário, a autoridade administrativa competente, sob pena de responsabilidade solidária, deverá imediatamente adotar providências com vistas à instauração de tomada de contas especial para apuração dos fatos, identificação dos responsáveis e quantificação do dano”.
8 LOTCU, art. 16. As contas serão julgadas: III – irregulares, quando comprovada qualquer das seguintes ocorrências: a) omissão no dever de prestar contas.
9 A não comprovação da boa e regular aplicação de recursos federais em face da omissão no dever de prestar contas, além de obrigar o gestor omisso a restituir os valores aos cofres públicos por presunção de dano, constitui grave inobservância do dever de cuidado no trato com a coisa pública, revelando a existência de culpa grave, passível de aplicação de penalidade, uma vez que se distancia do que seria esperado de um administrador minimamente diligente, o que caracteriza erro grosseiro a que alude o art. 28 do Decreto-lei 4.657/1942 (Lindb), incluído pela Lei 13.655/2018. Precedentes. Acórdão 6463/2023-Segunda Câmara, Relator Min. Marcos Bemquerer. Acórdão 1643/2022-Segunda Câmara, Relator Min. Bruno Dantas.
10 LOTCU. Art. 20. “As contas são consideradas iliquidáveis quando caso fortuito ou de força maior, comprovadamente alheio à vontade do responsável, tornar materialmente impossível o julgamento de mérito a que se refere o art. 16 desta Lei” (grifos nossos).
11 CPC. Art. 373. O ônus da prova incumbe: II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
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BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 25 de março de 2024.
________. Presidência da República. Lei 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em 25 de março de 2024.
________. Presidência da República. Lei 8.443, de 16 de julho de 1992 – Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União (LOTCU). Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8443.htm. Acesso em 25 de março de 2024.
ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves. Curso de Direito Civil: Contratos, Teoria Geral e Contratos em Espécie. 9ª edição ed. [s.l.] Editora Juspodivm, 2019.
UNIÃO, Tribunal de Contas. Referencial básico de governança organizacional para organizações públicas e outros entres jurisdicionados ao TCU. Disponível em https://www.tcu.gov.br. Acesso em 25 de março de 2024.
________, Tribunal de Contas. Regimento Interno do Tribunal de Contas da União (RITCU). Disponível em https://www.tcu.gov.br. Acesso em 25 de março de 2024.
________, Tribunal de Contas. Acórdão 6463/2023 – Segunda Câmara, Relator Min. Marcos Bemquerer. Disponível em https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/redireciona/jurisprudencia-selecionada/JURISPRUDENCIA-SELECIONADA-154543. Acesso em 25 de março de 2024.
________, Tribunal de Contas. Acórdão 1643/2022 – Segunda Câmara, Relator Min. Bruno Dantas. Disponível em https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/redireciona/jurisprudencia-selecionada/JURISPRUDENCIA-SELECIONADA-130464. Acesso em 25 de março de 2024.