Migalhas de Peso

São Camilo, Antígona e a complexio oppositorum, de Carl Schmitt

Por essa reflexão acadêmica discute-se a legitimidade da recusa da sociedade beneficente São Camilo a colocar DIU em pacientes à luz do Direito Canônico.

26/3/2024

Cá estávamos a ler a obra Antígona, escrita por Sófocles por volta do século 442 a.C. quando, navegando pela internet, deparamo-nos com matéria publicada, em 1/2/24, na seção Migalhas Quentes, que noticiava que o juiz de direito da 10ª Vara da fazenda Pública do foro central da fazenda Pública e acidentes da comarca de São Paulo, apreciando o pedido de liminar deduzido pela bancada feminista do PSOL na ação popular 1.004.717-39.2024.8.26.0053, o indeferiu.

Despertada a argúcia, indo em busca de maiores informações, constatamos que a dita ação popular foi proposta, por PSOL, em face da sociedade beneficente São Camilo que, na qualidade de associação de direito privado confessional católica, havia se recusado a inserir dispositivo intrauterino (DIU) em uma paciente, sob o argumento de violação a uma diretriz institucional da Igreja católica.

Estando a causa de pedir fundamentada na necessidade de sociedade beneficente São Camilo, enquanto instituição privada que participa de forma complementar do SUS e recebe recursos públicos para aplicação em suas atividades estatutárias, observar as normas de direito público consignadas no art. 199 da Constituição Federal e na lei 8.080, de 19/9/90, de chofre nos veio a mente o diálogo estabelecido entre Creonte e Antígona que, sendo pega a infringir a lei que declarava seu irmão Polinices como insepulto, redargui o governante dizendo não pensar que seus decretos “fossem tão fortes a ponto que um mortal pudesse transgredir as inescritas e indeléveis leis divinas” .

Enveredando-se, Antígona, a descumprir uma lei humana para não se expor à justiça divina, apesar de seu caráter secular, a obra de Sófocles guarda certa correspondência com o que se sucedeu com sociedade beneficente São Camilo que, enquanto uma pessoa jurídica eclesiástica2, devendo obediência a uma dupla ordenação, desperta a dúvida de qual ordenança haveria de seguir no caso em concreto.

Colocando lado a lado o direito canônico, como emanação do direito natural, e o direito doméstico brasileiro, enquanto direito positivo, se de acordo com Norberto Bobbio3 um exemplo de relacionamento material entre ordenamentos jurídicos é o ordenamento do Estado com o ordenamento da Igreja Católica Apostólica Romana, sendo a influência da religião na sociedade moderna uma das questões filosóficas mais atuais, o caso de sociedade beneficente São Camilo nos fornece o ambiente propício para discutirmos até que ponto o direito canônico poderá interferir no processo de tomada de decisão, ou se toda a celeuma deverá ser dirimida com base no direito positivo.

Situada, sociedade beneficente São Camilo, na personagem Antígona, e corporificado, Creonte, no Estado brasileiro, assumindo, essa reflexão, a posição de Tirésias, a discussão acerca de qual direito deve prevalecer é potencializada pela Constituição Federal que, fundando um Estado laico, repete o dogma oriundo da Revolução Francesa que separa a Igreja do Estado.

Proibindo, o caráter não confessional da República Federal, que o Estado brasileiro estabeleça cultos religiosos ou igrejas, subvencione-os, impeça-lhes o funcionamento ou mantenha com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público, por estar em voga os limites de eventual ingerência da Igreja Católica Apostólica Romana nos negócios que digam respeito ao Estado, apresentado o prólogo, rumando para o quinto episódio, recordamos que a temática ora abordada não é tão nova, pois, Carl Schmitt já assinalava, na obra "Catolicismo romano e forma política", que ao menos desde o século XVIII, a Igreja católica vem enfrentando uma grande resistência política, pois, inspirado, dentre outros, pelos ideais iluministas, o modo de pensar vai se tornando cada vez mais utilitarista, humanista e superficial.

Dominado pela racionalidade econômica e técnica – herança que recebeu do materialismo marxista – , em conformidade com Martin Heidegger4, o signo característico do modo de pensamento dessa época é o abandono do ente pelo ser e o subsequente esquecimento do ser pelo homem.

Revelando, esse movimento, o caráter redutor do pensar econômico e técnico, que conduz à desumanização das relações intersubjetivas e que o ente se subsuma no que é ôntico, se somente é possível dizer que seja o que é visível e tangente, por estar arraigada a uma realidade material, essa categoria de pensar acaba por desconjurar o princípio da representação, que constitui, segundo Schmitt, a pedra angular da Igreja católica romana, que atua in persona Christi.

Arraigado, o pensamento econômico e técnico, no materialismo histórico-dialético criado por Karl Marx e Friedrich Engels, se esse modo de pensar se opõe ao princípio da representação que, por intermédio de uma realidade concreta e uma racionalidade específica, define a essência da Igreja Católica Apostólica Romana na complexio oppositorum, se essa é uma das três questões fundamentais que Carl Schmitt pretendeu resolver em "Catolicismo romano e forma política", como ponto de partida, essa constatação nos permite desvendar as duas outras indagações, consistentes na situação epocal em que o catolicismo se insere e o papel que a Igreja Católica Apostólica Romana, em sua essência, pode desempenhar num momento histórico com as características contemporâneas.

De grande relevo para nos auxiliar no processo de compreensão da hipótese ora posta, se um texto jurídico não pode se fundamentar única e exclusivamente numa premissa teológica, que denotaria a superioridade do direito natural, que parte da lei natural, escrita por Deus no coração do homem (Rm, 2, 15), se o pensamento moderno predominante renega a posição de Jesus Cristo como a resposta à questão moral e o papel da Igreja católica de evocar algumas verdades fundamentais para reconectar o homem ao divino, formulando argumentos com bases preponderantemente jurídicas, se a tese concernente à legitimidade de invocação do direito canônico para tutelar a recusa de sociedade beneficente São Camilo na introdução de DIU em suas pacientes encontra, na separação entre Estado e Igreja, uma “antítese” 5, pelo modo peculiar de ser da Igreja Católica Apostólica Romana, essa premissa pode ser superada, porque, novamente recorrendo a Schmitt, estando a essência da Igreja Católica Apostólica Romana fundamentada na complexio oppositorum, ou seja, na unidade de opostos, por ser encarregada da realização de mediações, revelando a capacidade que a Igreja católica possui de abarcar contradições, Carl Schmitt, partindo da ideia política do catolicismo, assevera que:

a essência da complexio oppositorum do catolicismo romano reside em uma supremacia especificamente formal sobre a matéria da vida humana, como até agora nenhum império conheceu. Aqui há uma configuração substancial da realidade histórica e social que, apesar de seu carácter formal, permanece na existência concreta, que é algo de vivo e, no entanto, na medida mais elevada, racional6.

Dispondo de um racionalismo que a liga a pessoa de Cristo, tendo no Papa o sucessor do apóstolo Pedro, é essa abertura para o transcendente, para o divino, que fundamenta a Igreja Católica Apostólica Romana.

Sendo a transcendência quem, para Schmitt, retrata com perfeição o princípio da representação, se o modo de pensar contemporâneo está atrelado, em grande parte, ao materialismo histórico-dialético e ao discurso da técnica, impregnando, essa linha ideológica, o direito positivo brasileiro, se a assistência à contracepção prevista nos arts. 3º, parágrafo único, I e 9º da lei 9.263, de 12/1/967, pode ser compreendida como uma manifestação do feminismo marxista, que defende que a “a mulher não poderia ser considerada apenas um organismo sexuado" 8, soa como certo que esse racionalismo técnico e econômico praxista entrará em rota de colisão com o racionalismo católico, pois, estando o primeiro inspirado pela técnica, poderá servir para qualquer fim.

Ilustrado, o pensamento contemporâneo, num racionalismo de meios, que apregoa uma indiferença, uma neutralidade, com relação aos fins, se a racionalidade da Igreja Católica Apostólica Romana, por estar calcada no estabelecimento de distinções com razões, classifica-se como um racionalismo de fins, se a Igreja Católica Apostólica Romana apresenta, em cada instante, o relacionamento histórico da humanidade com o sacrifício de Cristo na cruz, representando “o próprio Cristo pessoalmente, o Deus que se tornou homem na realidade histórica. No representativo assenta a sua supremacia sobre uma época de pensar econômico” 9, emergindo daí a autoridade papal de estabelecer juízos, que convergem em valorações e distinções, se em conformidade com o cân. 113, § 1 do código de direito canônico, “a Igreja católica e a Sé Apostólica têm a natureza de pessoa moral por própria ordenação divina”, no exercício do múnus que recebeu do próprio e verdadeiro Deus, a Igreja se envereda na luta contra o pensamento praxista fundamentado na técnica e no viés puramente econômico, porque, como admoesta Alexandre Franco de Sá, no prefácio a obra Catolicismo religioso e forma política, a Igreja combate:

abertamente um socialismo ateu e explicitamente materialista, para o qual a realidade não é senão o que se encontra no plano da visibilidade, representado sobretudo pelo anarquismo de Bakunine, a Igreja católica romana terá de se esforçar por devolver ao Estado moderno ocidental a capacidade da representação que originariamente lhe pertencia10.

Sendo próprio da Igreja católica perseverar nessa complexio oppositorum, se a luta contra o pensar econômico e técnico lhe é imanente, isso não quer dizer que a Igreja católica pretenda eliminar a esfera política que compete ao Estado, porque, como explicava Schmitt, “ela quer viver com o Estado em comunidade particular, estar diante dele como parceira em duas representações”11.

Atuando em esferas distintas, a Igreja católica não pretende se arvorar na posição de Cronos, que devorava os próprios filhos para que nenhum deles lhe pudesse tirar o trono, mas sim, estabelecendo uma simbiose com o Estado, permitir que os temas sensíveis à existência e ao motu humano, sejam analisados e refletidos com base na fé, como demonstra o cân. 747, § 2, do código de direito canônico, segundo o qual “à Igreja compete anunciar sempre e em toda a parte os princípios morais, mesmo de ordem social, bem como emitir juízo acerca de quaisquer realidades humanas, na medida em que o exijam os direitos fundamentais da pessoa humana ou a salvação das almas”.

Pretendendo, com a complexio oppositorum, valorar finalisticamente as ações humanas com base na razão e na fé, se o direito vanônico, ou seja, o direito ditado por Deus por meio de sua Igreja, não aniquila o direito estatal, a coexistência entre o direito natural e o direito positivo citada por Sófocles, em Antígona, é confirmada por Jesus Cristo que, no Evangelho de Mateus, indagado se é lícito ou não pagar o imposto a César, responde “Dai, pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22,21).

Apesar de incidirem, o direito canônico, com as leis eclesiásticas, e o direito positivo estatal em esferas distintas, ocorrerão situações de concurso entre os ordenamentos, concurso esse que, somente sendo possível diante da singularidade da Igreja católica - que com o nome de Sé Apostólica ou Santa Sé encampa, desde 1957, a dupla representação (tanto da Igreja católica como pessoa moral por própria ordenação divina, quanto pela cidade-Estado do Vaticano12) -, não se resolve com a distinção de John Austin13 fundamentada no conceito de comando. 

Sendo exatamente o que aconteceu com sociedade beneficente São Camilo no caso envolvendo a recusa na implantação do DIU, se o sólio augural de Tirésias não seria capaz, na contemporaneidade, de justificar a prevalência do direito canônico, enquanto manifestação do direito natural, para demover o discurso positivista engendrado pela bancada feminista na ação popular que está a promover, evocando um fundamento extraível do próprio direito legislado, não se limitando, sociedade beneficente São Camilo, a uma associação civil, por dispor de personalidade jurídica eclesiástica, o direito canônico não tem, para ela, caráter puramente prescritivo, como aquele que advém, para os fiéis batizados, do magistério da Igreja e seu ensinamento moral, mas eficácia mandatória, decorrente da hierarquia da Igreja católica.

Imbricada, a prevalência do direito canônico, no direito internacional, por se classificar, sociedade beneficente São Camilo, como uma Instituição Eclesiástica, sob a forma de Instituto de vida consagrada, se nessa condição é parte integrante da estrutura da Igreja católica, vigorando, no país, concordata firmada na cidade do Vaticano, em 13/11/08 e promulgada pelo decreto 7.107, de 11/2/10, reconhecido que a Santa Sé e todas as Instituições Eclesiásticas são regidas pelo direito canônico, que apenas não prevalecerá caso contrarie o sistema constitucional e as leis brasileiras (vide art. 3º, caput), se o Brasil confere à Igreja católica o direito de desempenhar a sua missão apostólica, na situação envolvendo sociedade beneficente São Camilo, identificado que a implantação de DIU ou a adoção de outros métodos contraceptivos artificiais foi condenada, a partir de 1968, pela carta encíclica Humanae Vitae, do Papa Paulo VI, que se faz observar por força do cân. 6º, § 2, sendo as normas dos arts. 3º, parágrafo único, I e 9º da lei 9.263, de 1996 meramente prescritivas e destituídas de sanção14, porquanto não utilizam os modais deônticos obrigatório e proibido, se a recusa na oferta dos métodos e técnicas de contracepção não é proibida pelo ordenamento jurídico, nem pelo sistema constitucional brasileiro, quiçá sendo obrigatória a sua implantação15, mandando aplicar, às instituições eclesiásticas, no que não contravier o ordenamento jurídico positivo, o direito canônico, a negativa ombreada nas diretrizes institucionais da Igreja católica, corporificadas no direito canônico, diante da omissão do direito positivo brasileiro, devem ser observadas, visto que o direito canônico se torna aplicável, por força da teoria do envio.

Antígona teve razão frente a Creonte, pois, ao invocar em seu benefício a justiça dos deuses de baixo, demonstrou que em função de sua sede de poder, ao baixar o decreto que penalizou o jovem insepulto Polinices, Creonte abusou arbitrariamente da lei humana. Se argumento semelhante não parece ser adequado, à luz do racionalismo econômico e técnico, a demonstrar a afronta a um impulso natural, circundado pelo princípio biológico da perpetuação das espécies, que a utilização dos métodos contraceptivos artificiais pode gerar a própria subsistência da raça humana, com base na argumentação jurídica, na situação experenciada por sociedade beneficente São Camilo, é o direito canônico quem deve prevalecer, sob as razões acima expostas.

Por isso que, ultrapassando a liberdade de crença e a escusa de consciência, que teriam aplicabilidade duvidosa em se tratando de um titular enquadrado como pessoa jurídica, a análise do tema sob os auspícios do direito internacional concede uma argumentação que reputamos adequada para demonstrar que, salvados os casos de contradição direta ao ordenamento jurídico brasileiro, por força da concordata relativa ao estatuto jurídico da Igreja Católica no Brasil, celebrada em 13/11/08, é o direito canônico quem irá reger a Igreja Católica e todas as demais instituições eclesiásticas situadas no país.

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1. SÓFOCLES. Antígona. São Paulo: Penguin-Companhia das Letras, 2022, p. 76.

2. De acordo com o art. 6º, § 1º do Estatuto Social, sociedade beneficente São Camilo (SBSC), é constituída por pessoas físicas que possuam a condição de religiosos professos perpétuos da Ordem dos ministros dos enfermos, classificados como um Instituto de vida consagrada, o que lhe atribuiu, nos termos do cân. 116, § 1, do código de direito canónico, personalidade jurídica eclesiástica.

3.  BOBBIO, N. Teoria do ordenamento jurídico. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2014.

4.  HEIDEGGER, M. Contribuições à filosofia: do acontecimento apropriador. 2. ed. Rio de Janeiro: Viaverita, 2014.

5.  Usamos antítese entre aspas para ressaltarmos que o papel da Igreja Católica Apostólica Romana não se desenvolve dentro da dialética hegeliana.

6. SCHMITT, C. Catolicismo romano e forma política. Lisboa: Hugin, 1998, p. 24.

7. Fundamento não invocado pela bancada feminista de PSOL na ação popular, mas considerado, para nós, como pertinente.

8. BEAUVOIR, S. O segundo sexo. v.1. Nova Fronteira, 2019, p. 83.

9. Op. cit. ant., p. 33.

10. Op. cit. ant., p. 15.

11. Op. cit. ant., p. 15.

12. Essa última tributária de personalidade jurídica de direito internacional, conforme Tratado de Latrão, ou seja, sujeito de direito internacional público.

13. AUSTIN, J. The province of jurisprudence determined and the uses of the study of jurisprudence. Indianapolis: Hackett, 1954.

14. O que e reafirmado pelo projeto de lei 2.889/21, da senadora Nilda Gondim (MDB/PB), que altera a lei 9.263, de 12/1/96, que regula o § 7º do art. 226 da Constituição Federal, que trata do planejamento familiar, estabelece penalidades e dá outras providências, para dispor sobre regras que garantam a autonomia de escolha do método contraceptivo.

15. Sobre a facultatividade invocamos o art. 37-A, do anexo XXVIII da portaria de consolidação 2, de 28/9/17.

César A. Carra
Advogado. MBA em Direito Empresarial pela FGV/SP. Mestre em Direito pela ITE/Bauru. Pós-graduando em Ciências Criminais FDRP/USP. Doutorando em Direito pela ITE/Bauru.

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