A morte é um relevante fato jurídico, produzindo diversos efeitos em campos mais variados. Seguindo a clássica distinção, a morte poderá ser natural (decorrente do fim da vida efetivo do indivíduo), presumida (ante a presunção relativa ocasionada por fatos extraordinários, tais como um desaparecimento ou um desastre sem a localização de corpos [acidente de avião por exemplo]), ou pode ser civil (quando o ordenamento jurídico dá tratamento de morto a quem está vivo, como se depreende das hipóteses de exclusão de herança por força da indignidade e deserdação).
Em qualquer das hipóteses, o ponto do presente trabalho é abordar as consequências patrimoniais decorrentes da transferência patrimonial quando da abertura da sucessão do de cujus aos seus herdeiros.
O Código Civil Brasileiro têm como origem o direito romano, mas foi o direito medieval/feudal, assentado no direito costumeiro parisiense1, que proporcionou o mais relevante princípio do direito sucessório: o droit de saisine2.
Caio Mario da Silva Pereira, enfrentando a origem histórica do instituto, é categórico ao asseverar que:
"Não foi, porém, uma peculiaridade do antigo direito francês. Sua origem germânica é proclamada, ou ao menos admitida, pois que fórmula idêntica era ali enunciada com a mesma finalidade: Der Tote erbt den Lebenden."3
Curiosamente a expressão utilizada por Caio Mario (der tote erbt den Lebenden), como explica Flávio Tartuce4, é confusa e curiosa, sem que o exato sentido fosse claro ou lógico. A melhor tradução nunca é a de isolamento de cada palavra, especialmente na língua tedesca, mas o resultado da interpretação é, no mínimo, inusitado:
Der Tote (o morto) erbt (herda) den Lebenden (do vivo).
Vê-se o equívoco: é o vivo o herdeiro do finado e não o contrário.
Silvio Rodrigues5, por sua vez, citando Planiol e Demolombe, atesta que Saisine quer dizer posse, enquanto Saisine héréditaire significa que os parentes de uma pessoa falecida tinham o direito de tomar posse de seus bens sem qualquer formalidade, sendo que o thema foi transformado no brocardo "le mort saisit le vif", consignado no art. 724, do Código Civil Francês, que é a primeira grande positivação sobre o thema.
Ultrapassada a questão histórica, há um dado relevante no princípio da Saisina: trabalha-se, assim, com uma ficção, uma presunção extremamente importante, pois, com a abertura da sucessão (a ocorrência da morte do de cujus), a herança (ativos e passivos do inventariado) será automaticamente transferida aos herdeiros, sendo que cada um terá que aceitar a sua qualidade de herdeiro individualmente ou, quiçá, renunciar, em pleno exercício de direito potestativo. Seguem as disposições normativas do Código Civil:
Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.
Art. 1.804. Aceita a herança, torna-se definitiva a sua transmissão ao herdeiro, desde a abertura da sucessão.
Por fim, convém destacar que a Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil, ao menos no projeto inicial apresentado (mas ainda não aprovado), não tencionam alterar a estrutura lógica e jurídica do Princípio da Saisina, o que é uma excelente notícia.
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1 SILVA, Rodrigo Alves da – Princípio da Saisine nas Sucessões. Revista Jus Navigandi [Em linha]. Teresina, ano 17, n.o 3443 (Dez.2012). [Consult. 12 Jan. 2024]. Disponível em http://jus.com.br/artigos/23156.
2 Esse é o motivo que se popularizou a expressão “Princípio da Saisine” em francês e não a expressão “Princípio da Saisina” utilizada por Pontes de Miranda em seu Tratado de Direito Privado.
3 PEREIRA, Caio Mario da Silva – Instituições de Direito Civil Volume VI – Direito das Sucessões. 2a ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1976, pag. 22
4 TARTUCE, Flávio – “Der tote erbt den lebenden” e o estrangeirismo indesejável. Revista JusBrasil [Em linha]. [Consult. 19 Jan de 2024]. Disponível em https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/121822473/der-tote-erbt-den-lebenden-e-o-estrangeirismo-indesejavel
5 RODRIGUES, Silvio – Direito Civil Volume VI – Direito das Sucessões. 24a ed. Rio de Janeiro: Editora Saraiva, 2000, pag. 14.