“A animada impermeabilidade do homem a tudo aquilo que não fosse si mesmo... A grande alienação da esfera social superior em relação às demais classes.”
Como fica o juízo de cidadãos e cidadãs mais comuns diante da percepção de que a atuação da Polícia, do Ministério Público e do Poder Judiciário – do Estado, portanto - segue dois pesos e duas medidas? Sabem que o “8 de janeiro de 2023” tem executores - uma imensa massa de pessoas raivosas querendo tomar e destruir tudo - e arquitetos, insufladores, financiadores e mandantes – agentes públicos civis e militares, civis influenciadores e empresários. Os primeiros estão presos, sofrem processos, alguns condenados a penas pesadas de prisão e multa, outros, aguardando julgamento. Os demais, finalmente investigados, mas tratados com cautela, pretensamente política: nenhuma prisão, apenas medidas fragmentárias de proibição de sair do País, conversar entre si. A grande imprensa dá conta de opiniões de bastidores, inclusive de Ministros do STF, afirma, e outros membros do que chamo de mainstream jurídico (não digo “elite jurídica”, uma vez que nenhum deles recebeu mandato por meio de eleições), que afirmariam ser necessário esperar por momento adequado, tendo em vista a possível reação corporativista e correlegionária a uma ordem de prisão cautelar.
Essa percepção do senso comum decorre, claro, da apreciação da superfície dos eventos, daquilo que é notícia. Muito embora acompanhe os comentários de jornalistas e editores da grande mídia, e ouça a opinião de especialistas do direito, sabe muito bem discernir que algo não está certo na aparente diferença de tratamento. Por que o ex-presidente Bolsonaro, os militares e ex-ministros Heleno e Braga Netto, o militar Garnier, por exemplo, não foram ainda indiciados, denunciados e processados? Por que não estão presos como os que participaram da destruição do patrimônio público no “8 de janeiro”? Eles só devem ser presos após condenação? Podem ter vida política e civil normais, apesar de serem apontados, em depoimentos prestados à Polícia Federal, como responsáveis pela destruição da democracia, patrimônio público que se considera mais valioso do que o mobiliário dos palácios brasilienses? Só devem ser processados coletivamente? Vamos assistir a um novo espetáculo de julgamento penal pelo Supremo Tribunal Federal, com dezenas de acusados, advogados e uma só sentença para todos? Ou haverá uma lógica individual de acusação, com processos menos espetaculares e decisões mais simples, compreensíveis e objetivas?
São dúvidas legítimas de qualquer um do povo, que merecem respostas a um tempo objetivas, diretas e claras, e fiéis ao que determina a Constituição e as demais Leis brasileiras. O que dizem essas normas é o que procurarei definir aqui.
Estado Democrático de Direito é o regime constitucional do Brasil. Em termos simples, significa que a vida de todas as pessoas que vivem no País é regida pelas leis, não havendo vontade de ninguém, nem das pessoas mais poderosas política, social, civil, militar, economicamente, que se sobreponha às leis; e que essas leis são o resultado da elaboração do próprio povo, na maioria esmagadora das vezes, por meio da ação de representantes eleitos. Dois dispositivos constitucionais, entre muitos outros, resumem isso: “ninguém é obrigado a fazer ou a deixar de fazer a não ser em virtude de lei” e “todo poder pertence ao povo, que o exerce por meio de representantes eleitos” - império da lei (Estado de Direito) e poder do povo (Estado Democrático).
É esse o bem protegido pelo Código Penal, quando fala dos crimes praticados contra o Estado Democrático de Direito e das penas aplicáveis a quem os comete. Entre tais crimes está o de tentativa de golpe de estado, isto é, de acabar com o regime constitucional, passando por cima das leis e do poder do povo, que se expressam na “Constituição Cidadã” (uma expressão muito feliz do político, já falecido, que presidiu o Congresso Constituinte de 1987/88, Ulysses Guimarães.
Quando há evidências de que esse crime foi praticado, além de investigar para identificar provas de sua materialidade – abundantes, no “8 de Janeiro”: acampamentos em torno de quartéis, sem reação das autoridades, pedindo intervenção militar, contestação do caráter eletrônico da votação, inclusive em reunião com representantes estrangeiros, falta de reconhecimento do resultado eleitoral, incentivo a sua desobediência, minuta de decreto inconstitucional de estado de sítio ou emergência, convite a comandantes militares e a subordinados, convocando à participação de atos golpistas, bloqueio de estradas, ataque a sede policial, incêndio de ônibus, tentativa de ataque terrorista na proximidade de aeroporto, trocas de mensagens em redes sociais, encontros e reuniões públicas e privadas, inclusive na sede de Governo federal, falsificação de certificados de vacinas, inclusive de menor, saída do País de presidente e assessores, inclusive ex-ministro, na função de guardar a segurança do espaço em que ocorreu a invasão e destruição do dia oito de janeiro, entre outros fatos demonstrados – e de sua autoria – além daquelas pessoas que participaram de todos esses atos, as que redigiram, corrigiram e debateram a minuta golpista, seriam beneficiárias da eventual consecução do golpe, trocaram mensagens, determinaram atos e comunicações, seriam responsáveis pela falsificação de certificado de vacina e responsáveis por menor que teve o certificado falsificado - , além dessa identificação, o indiciamento, a denúncia e o processo contra essas pessoas, respeitado o direito de defesa e todas as garantias processuais previstas na Constituição, para ao final ser proferido julgamento de condenação ou absolvição.
Esses deveres estão submetidos a regras e a valores também constitucionais, dentre os quais está o princípio da igualdade de tratamento a todas as pessoas submetidas à mesma situação jurídica. Quer dizer, a igualdade deve preencher a interpretação e a aplicação das leis que falam do crime contra o Estado Democrático de Direito. E ela exige que o mesmo espírito de proteção desse bem jurídico – talvez o mais importante da vida política – seja posto em ação em relação a todas as pessoas envolvidas.
Nesse caso, como em todos os casos, a interpretação da necessidade de prisão determina um dever de decidir. Não há uma opção hamletiana de quem julga: prender ou não prender, eis a questão. A lei especifica as condições e determina que se perfaça a ordem, quando estiverem preenchidas. Essas condições são especificadas no Código de Processo Penal, a lei que regula o procedimento que deve ser adotado por todos os envolvidos na aplicação da lei, no caso de cometimento de um crime.
Muito bem, essa lei diz que qualquer medida cautelar, durante a apuração do crime (inquérito policial) ou no curso da ação penal, propriamente dita (após a apresentação da denúncia pelo Ministério Público e seu recebimento pelo Juiz da causa), deve respeitar as garantias constitucionais e ser proporcional em relação à gravidade do crime – assim do bem jurídico protegido pela norma penal -, às condições da pessoa acusada e ao objetivo de resguardar a aplicação efetiva e justa da lei penal. Esses são os cuidados jurídicos que devem ser observados na decisão de decretar a prisão preventiva.
A prisão preventiva é, então, modo de assegurar a eficácia do processo, resguardar a instrução da ação pena e proteger as pessoas que são chamadas a colaborar para que essa instrução se realize de modo eficiente e justo, sobretudo a vítima e as testemunhas, e proteger a ordem pública e a ordem econômica.
Diante das condições e com os cuidados previstos em lei, surge um dever à pessoa que julga a causa ou preside sua instrução, que é a de decretar a prisão – satisfeitas a primeiras e observados os últimos – ou de deixar de decretar – se não preenchidas as condições ou não respeitados os cuidados. Não há discrição nem opção. As condições e os cuidados determinam prender ou não prender, não a vontade política ou a conveniência de quem instrui ou julga o processo. Num caso e noutro, há necessidade de justificar a decisão, expor com clareza as razões da decisão tomada, assim permitindo o controle das partes de acusação e de defesa, e à fiscalização da sociedade, bem como possibilitando o manejo de recursos, para reformar ou revogar a decisão.
Quando se fala em proteção da ordem pública, refere-se a ordem pública constitucional, seus valores, regras, direitos e deveres, enfim, aos bens materiais e imateriais que alça a objetivos da vida comum, protege e realiza. Dentre esses, está o de proibição de tratamento discriminatório, implícito na regra da igualdade e decorrente dos tratados e convenções internacionais adotados no Brasil, com força constitucional – dentre eles, a Convenção Americana contra toda forma de Discriminação, aliás.
Aqui, em conclusão, estamos diante de fortes evidências de materialidade e de autoria, diante da necessidade de assegurar a instrução, de defender a ordem pública constitucional, diante da gravidade do crime, diante, enfim, do comportamento do ex-presidente, que, mesmo condenado à inelegibilidade, por exemplo, continua a buscar atuar ativamente no universo da política, influenciar resultado eleitoral, por em dúvida a autoridade das instituições constitucionais, tentando desvalorizar atos graves de execução da tentativa de golpe de estado, como minuta encontrada em duas versões, inclusive em seu gabinete partidário, em sede de partido multado pela Justiça Eleitoral pela tentativa de por em dúvida o resultado de eleição, e cujo líder também é investigado por participação no mesmo crime.
Essas as condições, sendo os cuidados igualmente preenchidos ou observados, na forma de atender às regras da igualdade e da proporcionalidade. Quem teria participação maior no cometimento de um crime? O que o ordena ou aquele que meramente executa a ordem?
Claro que tudo isso está sob o crivo do contraditório e se apresenta, como bem expressa a linguagem jurídica e jornalística norte-americana, não como cometimento de crime, mas como alegações de cometimento de crime.
Minha opinião, contudo, é a de que a decretação de prisão se apresenta como dever jurídico. Nesse aspecto, o senso comum, de quem experimenta os sofrimentos da vida cotidiana, supera a presunção de superioridade dos que manejam os instrumentos do poder e a impermeabilidade dos que se alienam apenas no saber de si mesmos, esquecidos de que a vida política exige o reconhecimento da pluralidade, ou seja, da presença efetiva do povo, na expressão de seu desejo de Constituição e de sua preservação. Nós, o povo, que falamos múltiplas línguas e não a empolada e distante linguagem da conveniência dos que pensam ter o poder em suas mãos, ao ponto de acharem praticável destruir impunemente nosso laços de comunhão democrática.