Migalhas de Peso

Da solução Cosit 354/17 e da formação do tema repetitivo 1.224 pelo STJ

A solução de consulta 354 – Cosit da Receita Federal sugere que contribuições extraordinárias podem ser tributadas no imposto de renda, enquanto as normais não, datada de 6/7/2017.

20/3/2024

A solução de consulta 354 – COSIT estabeleceu, em questionável conclusão da Receita Federal datada de 6/7/17, a noção de que as contribuições extraordinárias destinadas ao equacionamento do déficit possuíram enquadramento tributário diverso das contribuições normais, motivo pelo qual não seriam – as contribuições normais – tributáveis pelo imposto de renda, ao passo que as contribuições extraordinárias poderiam compor a base de cálculo do imposto de renda, ensejando tributação. Segue a ementa da decisão da Receita:

ASSUNTO: IMPOSTO SOBRE A RENDA DE PESSOA FÍSICA - IRPF EMENTA: CONTRIBUIÇÃO EXTRAORDINÁRIA A PLANO FECHADO DE PREVIDÊNCIA COMPLEMENTAR. INDEDUTIBILIDADE.

As contribuições extraordinárias, ou seja, aquelas que se destinam ao custeio de déficit, serviço passado e outras finalidades não incluídas na contribuição normal, às entidades fechadas de previdência complementar, não são dedutíveis da base de cálculo do imposto sobre a renda de pessoa física. DISPOSITIVOS LEGAIS: Constituição Federal (com a redação dada pela emenda constitucional 3, de 17 de março de 1993), art. 150, § 6º; LC 108, de 29 de maio de 2001, art. 6º; LC 109, de 29 de maio de 2001, arts. 18 a 21, 68 e 69; lei 9.250, de 26 de dezembro de 1995, arts. 4º, inciso V, e, 8º, incisos I e II, alínea e; lei 9.532, de 10 de dezembro de 1997, art. 11; instrução normativa SRF 588, de 21 de dezembro de 2005, art. 6º. ASSUNTO: PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL EMENTA: CONSULTA. INEFICÁCIA PARCIAL. É ineficaz a consulta quando, na hipótese de versar sobre situação determinada ainda não ocorrida, não fique demonstrada a efetiva possibilidade de sua ocorrência e, quando não indique os dispositivos da legislação tributária sobre cuja aplicação haja dúvida. DISPOSITIVOS LEGAIS: instrução normativa RFB 1.396, de 16 de setembro de 2013, arts. 1º, 3º, § 2º, inciso IV, e §8° e 18, incisos I e II

Em verdadeiro leading case, o ministro Benedito Gonçalves, no julgamento monocrático do REsp 1.995.388/RJ, compreendeu que as contribuições extraordinárias deveriam ser deduzidas para fins de imposto de renda, desde que respeitado o teto de 12%. Segue, assim, a ementa da decisão monocrática, proferida em 29/6/22, inclusive com os trechos relevantes do decisum:

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. IRPF. CONTRIBUIÇÃO EXTRAORDINÁRIA A ENTIDADE DE PREVIDÊNCIA PRIVADA. DEDUÇÃO DA BASE DE CÁLCULO. POSSIBILIDADE. LIMITE LEGAL DE 12%. ENTENDIMENTO DO STJ SOBRE O TEMA. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO.

(...)

Os recorrentes sustentam violação do art. 1.022, II, parágrafo único, e 489, § 1º, VI, do CPC/15 alegando que o órgão julgador "deixou de enfrentar a omissão argumentativa na interpretação de diversos dispositivos (em especial o art. 11, da Lei n. 9.532/97, e os arts. 19 e 69, parágrafo 1º, da lei complementar n.109/01), bem como deixou de seguir – aliás, sequer o enfrentou! – o padrão decisório materializado na Tese n. 171, do TNU" (fl. 307). 

Apontam, além de dissídio jurisprudencial, violação dos arts. 11 da lei 9.532/97 e 19 e 69, § 1º, da LC  109/01, ao argumento de que o acórdão fez distinção das contribuições normal e extraordinária em favor da entidade fechada de previdência, para fins de dedução no imposto de renda.

(...)

Isso porque o entendimento do STJ sobre o tema é no sentido de que a base de cálculo do imposto de renda são os rendimentos tributáveis no seu valor bruto, podendo-se reduzir da base de cálculo do imposto de renda as contribuições a entidades de previdência privada, desde que respeitado o limite de 12% dos rendimentos computados na base de cálculo (art. 11 da lei 9.532/97), caso dos autos.

(...)

Ante o exposto, dou parcial provimento ao recurso especial, nos termos da fundamentação, reestabelecendo o dispositivo da sentença de primeiro grau (fls. 127/129), inclusive quanto aos ônus sucumbenciais.”

(grifo mantido do original)

Em setembro de 2023, a 1ª Turma do STJ, em decisão colegiada, reconheceu que as contribuições extraordinárias pagas para equacionar o resultado deficitário nos planos de previdência privada podem ser deduzidas da base de cálculo do imposto de renda, observado o limite de 12% do total dos rendimentos computados na determinação da base de cálculo do imposto, não diferenciando as contribuições normais ou extraordinárias. Vale, assim, transcrever a ementa de relevante precedente do tribunal da cidadania: 

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. IMPOSTO SOBRE A RENDA DAS PESSOAS FÍSICAS (IRPF). BASE DE CÁLCULO. DEDUÇÃO. CONTRIBUIÇÃO AO PLANO DE PREVIDÊNCIA PRIVADA. CONTRIBUIÇÃO EXTRAORDINÁRIA. RECOMPOSIÇÃO DE RESERVA DEFICITÁRIA. POSSIBILIDADE. LIMITE LEGAL DE 12%. OBSERVÂNCIA.

1. Não se configura a nulidade do acórdão recorrido por negativa de prestação jurisdicional quando o tribunal de origem aprecia integralmente a controvérsia, apontando as razões de seu convencimento, mesmo que em sentido contrário ao postulado, circunstância que não se confunde com negativa ou ausência de prestação jurisdicional. 

2. Discute-se, no caso, a possibilidade de o participante de plano de previdência privada deduzir, da base de cálculo do imposto de renda, os valores destinados ao fundo a título de contribuição extraordinária, paga para recompor as reservas financeiras deficitárias. 

3. Da dicção dos arts. 19 e 21 da LC 109/01, extrai-se que todas as contribuições destinadas à constituição de reservas, sejam elas classificadas como contribuição normal ou extraordinária, têm como objetivo final o pagamento dos benefícios de caráter previdenciário, sendo inviável, ainda, concluir que os valores vertidos pelo participante, em razão da constatação de que as reservas financeiras do fundo estão deficitárias e devem ser recompostas, possam ter função outra senão a garantia de que o benefício acordado será devidamente adimplido. 4. Os arts. 8º, II, "e" da lei 9.250/95 e 11 da lei  9.532/99, explicitam regras para dedução das contribuições feitas aos planos de previdência privada da base de cálculo do imposto de renda, as quais são consideradas despesas dedutíveis até o limite de 12% do total dos rendimentos computados da base de incidência do referido tributo, sendo certo que esses dispositivos não trazem qualquer diferenciação entre as espécies de contribuições pagas pelos participantes ao plano de previdência privada – normais ou extraordinárias, sendo que a única exigência legal é de que essas sejam "destinadas a custear benefícios Complementares assemelhados aos da Previdência Social", redação que se revela bastante similar àquela adotada no caput do art. 19 da LC 109/01. 

5. As contribuições extraordinárias pagas para equacionar o resultado deficitário nos planos de previdência privada podem ser deduzidas da base de cálculo do imposto de renda, observado o limite de 12% do total dos rendimentos computados na determinação da base de cálculo do imposto devido na declaração de rendimentos. 

6. Agravo em recurso especial conhecido para negar provimento ao recurso especial.

(AREsp 1.890.367/RJ, rel. ministro Gurgel de Faria, PRIMEIRA TURMA, julgado em 5/9/2023)

De forma totalmente destoante do posicionamento adotado pela 1ª Turma do STJ, a 2ª Turma do STJ, em novembro/2023, decidiu pela impossibilidade de dedução das contribuições extraordinárias à previdência privada da base de cálculo do imposto de renda pessoa física, quando do julgamento do REsp 1.937.545, cuja enorme ementa se colaciona:

TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO EXTRAORDINÁRIA. PLANO DE PREVIDÊNCIA COMPLEMENTAR FECHADA. IMPOSTO DE RENDA. ISENÇÃO. INEXISTÊNCIA. DEDUÇÃO. IMPOSSIBILIDADE.

  1.  Na origem, trata-se de ação declaratória cujo mérito é a declaração de inexistência de obrigação tributária do imposto de renda e limites de dedução que incidem sobre as contribuições extraordinárias destinadas ao equacionamento de déficit de plano de previdência complementar fechada.
  2.  Defende a associação recorrente que as contribuições adicionais destinadas ao equacionamento dos déficits dos planos de previdência complementar fechada não devem compor a base de cálculo do imposto retido na fonte tanto dos participantes, quanto dos assistidos, assim como, em função do disposto no §6º do art. 11 da lei 9.250/95, os valores das contribuições podem ser integralmente dedutíveis das declarações de ajuste, sem o limite de 12%.
  3.  Inicialmente, em relação à alegada violação dos arts. 3º e 1.022 do CPC, suscitada no recurso especial da associação recorrente, cabe apontar que a parte não opôs embargos de declaração contra o acórdão de origem, de modo que não há que se falar em violação dos referidos artigos diante de suposta omissão na análise de questão. Ainda que fosse o caso de oposição de embargos de declaração, a recorrente se limitou a afirmar, em linhas gerais, que o acórdão recorrido incorreu em nulidade ao deixar de se pronunciar adequadamente acerca das questões apresentadas nos embargos de declaração, fazendo-o de forma genérica, sem desenvolver argumentos para demonstrar especificamente a suposta mácula. Nesse panorama, o comando do enunciado sumular 284/STF é atraído para o presente caso, inviabilizando o conhecimento dessa parcela recursal.
  4.  O desconto na fonte das contribuições extraordinárias não descaracteriza a ocorrência do fato gerador do imposto de renda, previsto no art. 43 do CTN, no exato momento em que o participante ou assistido recebe os seus rendimentos. A destinação da parcela não deve ser considerada como impeditivo da sujeição tributária dos rendimentos, mas tão somente mero cumprimento das obrigações do participante ou assistido com recursos advindos de sua remuneração.
  5.  Para além da evidente sujeição tributária dos rendimentos auferidos pelos participantes, a legislação é expressa quanto à tributação dos rendimentos recebidos pelos assistidos das entidades de previdência privada, a título de complementação da aposentadoria, conforme dispõem o art. 33 da lei 9.250/95 e o art. 43, XIV, do decreto 3.000/99, de modo que o caráter previdenciário da verba não afasta a incidência do imposto de renda.
  6.  No que diz respeito à dedutibilidade integral defendida com fundamento no art.  11, §6º, da lei 9.532/97, faz-se necessário esclarecer que a remissão contida no referido dispositivo legal (art. 4º, VII, e art. 8º, II, i, da lei 9.250/96), dispõe sobre as contribuições para entidades fechadas de previdência complementar de que trata o §15º do art. 40 da CF, que abrange tão somente o regime próprio de previdência social dos servidores titulares de cargos efetivos. A entidade de previdência complementar fechada relacionada ao presente caso é a FUNCEF, que tem como patrocinadora a Caixa Econômica Federal, instituição financeira constituída sob a forma de empresa pública, de natureza jurídica de direito privado, não pertencente ao universo do art. 40 da CF.
  7.  Sob a perspectiva da dedutibilidade das contribuições extraordinárias, para a compreensão da discussão, é importante recorrer à distinção feita pelo art. 19 da LC 109/01. O referido artigo conceitua os tipos de contribuições que podem ser realizadas pelos participantes e assistidos, distinguindo-as em “contribuições normais” e "contribuições extraordinárias"
  8.  As contribuições normais feitas pelos beneficiários às entidades de previdência privada, quais sejam, aquelas destinadas a custear os benefícios complementares, podem ser deduzidas da base de cálculo imposto de renda, conforme determinação contida nos arts. 4º e 8º, II, e, da lei 9.250/95, assim como no art. 69 da LC 109/01. 
  9. Os dispositivos legais autorizadores da dedução da base tributável alcançam somente as contribuições direcionadas ao custeio do fundo que complementará a aposentadoria do beneficiário, não se estendendo às contribuições extraordinárias feitas pelos beneficiados com o intuito de equacionar o déficit dos planos de previdência complementar fechada.  Acaso também fosse do interesse do legislador permitir a dedução dos valores revertidos ao custeio de déficit, a norma certamente indicaria apenas o termo “contribuições destinadas aos planos de previdência complementar" ou nomenclatura similar, em vez de citar exclusivamente as contribuições destinadas a custear benefícios complementares.
  10. A interpretação que se faz da legislação ora em estudo não é meramente literal. Existe uma lógica tributária envolvida, que consiste na dedução da contribuição comum ser autorizada porque a incidência do imposto de renda é diferida, ou seja, ocorre no momento em que o participante, já na condição de assistido, recebe o seu benefício, constituído pela parcela investida somada aos rendimentos acumulados durante o período de investimento. A distinção no tratamento tributário entre as espécies de contribuições está amparada no fato de as contribuições extraordinárias não possuírem referibilidade com o benefício individual futuro. Trata-se de um socorro de caixa decorrente da obrigação contratual assumida pelos participantes e assistidos, sujeitos ao pagamento de valores extraordinários nas hipóteses em que a entidade de previdência complementar sofre prejuízos na administração dos recursos angariados.
  11. A dedutibilidade das contribuições normais tem como justificativa a necessidade de evitar a ocorrência de bis in idem, visto que os respectivos valores são direcionados à formação da reserva que dará origem ao benefício previdenciário complementar, o qual estará sujeito à tributação, nos termos do art. 33 da lei 9.250/95. Diante da falta de referibilidade da contribuição extraordinária no benefício a ser futuramente recebido, os valores pagos sob tal rubrica ficariam à margem da tributação, se não sofrerem a incidência de imposto de renda sobre o rendimento.
  12.  A incidência de imposto de renda sobre parcela de rendimento convertida em contribuição extraordinária não significa bis in idem justamente porque os valores em questão não são destinados à engorda da reserva individual dos participantes posteriormente sujeita à tributação quando resgatada, e sim ao custeio do déficit geral do fundo. É dizer: o pagamento da contribuição extraordinária não tem correspondência direta ao custeio do benefício que complementará a aposentadoria do participante, mas à supressão dos rombos financeiros do fundo. 
  13.  O pagamento da contribuição extraordinária faz parte da álea assumida por aquele que decide participar do plano de previdência complementar, de adesão facultativa. É um custo autorizado pela legislação que regulamentam a matéria, que tem por objetivo neutralizar os prejuízos sofridos pela entidade de previdência complementar, não havendo autorização legal para que os desacertos na gestão sejam compartilhados com a sociedade mediante a dedução nas bases tributárias. A dedutibilidade tem suas razões, mas o caráter indesejável de uma contribuição extraordinária não pode ser uma delas, especialmente em um país marcado pela desigualdade social.
  14. Com efeito, permitir que as regras que disponham sobre isenção e dedutibilidade das contribuições normais alcancem as contribuições extraordinárias, como pretende a associação recorrente, representa violação do art. 111 do CTN, o qual exige interpretação literal dos dispositivos que tratam de outorga de favores fiscais.
  15.  Recurso especial da associação recorrente parcialmente conhecido e, nessa parte, improvido. Recurso especial da Fazenda Nacional provido.
    (REsp 1.937.545/PB, rel. ministro Francisco Falcão, SEGUNDA TURMA, julgado em 9/11/2023)

Antes mesmo que o caos jurisprudencial fosse instaurado, considerando a evidente divergência de decisões entre a 1ª Turma e a 2ª Turma do STJ, houve, em 5/12/2023, a afetação pela 1ª Seção da matéria em julgamento nos REsp 2.043.775, 2.050.635 e 2.051367, com a formação do Tema repetitivo 1.224, cuja questão controvertida é a seguinte:

Dedutibilidade, da base de cálculo do IRPF, dos valores correspondentes às contribuições extraordinárias pagas a entidade fechada de previdência complementar, com o fim de saldar déficits, nos termos da LC 109/01 e das leis 9.250/95 e 9.532/97.

Por força do disposto no art. 1.037, II, do CPC, foi determinada a suspensão da tramitação de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a mesma matéria e tramitem em todo o território nacional.

Assim, mais do que nunca, todo o sistema de previdência complementar está na expectativa da formação do tema, pois, com a devida venia da posição da 2ª Turma do STJ e da solução COSIT 354, tributar a contribuição extraordinária de participantes, que se veem obrigados a contribuir com o déficit de plano de previdência, é cruel e viola a própria legislação que autoriza a dedução, independentemente do tipo de contribuição, respeitadas as margens e limites legais (nos exatos termos do art. 11, da lei 9.532/97, e dos arts. 19 e 69, § 1º, da LC 109/01).

Pedro Linhares Della Nina
Advogado e Professor da Universidade Candido Mendes/RJ, mestre em Ciências Jurídicas pela UAL-Lisboa, pós-graduado em Direito Empresarial e em Litigation, ambos pela FGV-Rio de Janeiro.

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