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A embriaguez preordenada e o agravamento da sanção corporal

Quando a embriaguez voluntária é apenas uma etapa para a prática de outras infrações penais, ou seja, o sujeito se embriaga antecipadamente para praticar o crime subsequente, o Código Penal considera que esse fato deve ser agravado, na medida em que o infrator se valeu antecipadamente da embriaguez para praticar o crime que seria executado de qualquer forma.

20/3/2024

O simples fato de estar voluntariamente embriagado em público, causando escândalo ou provocando perigo à segurança própria ou alheia é crime previsto no art. 62 da lei das contravenções penais: 

“Art. 62. Apresentar-se publicamente em estado de embriaguez, de modo que cause escândalo ou ponha em perigo a segurança própria ou alheia:

Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.”

Quando a embriaguez voluntária é apenas uma etapa para a prática de outras infrações penais, ou seja, o sujeito se embriaga antecipadadamente para praticar o crime subsequente, o Código Penal considera que esse fato deve ser agravado, na medida em que o infrator se valeu antecipadamente da embriaguez para praticar o crime que seria executado de qualquer forma. Essa forma de embriaguez pretérita e voluntária é conceitualmente conhecida como embriaguez preordenda, conforme disposto no art. 61 do Estatuto Repressivo: 

“Art. 61 - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime:(Redação dada pela lei 7.209, de 11.7.84)

  1. em estado de embriaguez preordenada.”

Com efeito, quando a infração penal subsequente é decorrente de embriaguez voluntária, mas sem preordenação, ainda que o sujeito, no momento da ação ou da omissão, não consiga compreender o caráter ilícito da conduta, responderá, na forma do art. 28, II, do Código Penal, como se não estivesse embriagado: 

“Art. 28 - Não excluem a imputabilidade penal: (Redação dada pela lei 7.209, de 11.7.84)

II - a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos. (Redação dada pela lei 7.209, de 11.7.84)”

Portanto, quando há voluntariedade na embriaguez, não haverá exclusão de punibilidade. Isto é, o agravamento da sanção corporal dependerá da comprovação de que o sujeito se valeu da embriaguez preordenada para praticar a infração penal subsequente.

De modo diverso, quando a embriaguez é involuntária e ocorre a prática de infração penal subsequente, se o sujeito era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato, não haverá punibilidade criminal. Se a embriaguez involuntária não era plena, ou seja, era parcial, haverá redução da sanção corporal, conforme disposto nos parágrafos 1º e 2º do art. 28 do Código Penal: 

“§ 1º - É isento de pena o agente que, por embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. (Redação dada pela lei 7.209, de 11.7.84)

§ 2º - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, por embriaguez, proveniente de caso fortuito ou força maior, não possuía, ao tempo da ação ou da omissão, a plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. (Redação dada pela lei 7.209, de 11.7.84)”

No julgamento do REsp 908.396/MG, relator ministro Arnaldo Esteves Lima, 5ª turma, julgado em 3/3/09, DJe de 30/3/09, onde se buscava o afastamento de responsabilidade penal pela embriaguez voluntária, o eminente relator do caso rechaçou a tese defensiva, pois entendeu que a isenção de sanção corporal só é cabível para os casos onde o crime subsequente é decorrente de embriaguez é involuntária. Confira trechos da ementa desse julgado: 

“Pela adoção da teoria da actio libera in causa (embriaguez preordenada), somente nas hipóteses de ebriez decorrente de "caso fortuito" ou "forma maior" é que haverá a possibilidade de redução da responsabilidade penal do agente (culpabilidade), nos termos dos §§ 1º e 2º do art. 28 do Código Penal.

Em que pese o estado de embriaguez possa, em tese, reduzir ou eliminar a capacidade do autor de entender o caráter ilícito ou determinar-se de acordo com esse entendimento, tal circunstância não afasta o reconhecimento da eventual futilidade de sua conduta.”

Em outro caso analisado pelo STJ, onde se buscava a desclassificação do homicídio doloso na direção de veículo automotor decorrente de embriaguez voluntária para o crime de homicídio culposo, uma vez que, na visão da defesa, não restou comprovado que o sujeito tenha agido com dolo eventual, o eminente relator do processo, ministro Rogerio Schietti Cruz, deu provimento ao recurso, pois entendeu que a mera conjugação da embriaguez com o excesso de velocidade, sem o acréscimo de outras peculiaridades que ultrapassem a violação do dever de cuidado objetivo, inerente ao tipo culposo, não autoriza a conclusão pela existência de dolo eventual. (HC 702.667/RS, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª turma, julgado em 2/8/22, DJe de 15/8/22.)

Essa interpretação dada pelo STJ no precedente acima indicado converge com o entendimento do STF no julgamento do HC 107.801/SP, onde foi definido que a embriaguez preordenada é a única capaz de conduzir ao enquadramento do homicídio doloso: 

“O homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB) prevalece se a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção ante a embriaguez alcoólica eventual. 

A embriaguez alcoólica que conduz à responsabilização a título doloso é apenas a preordenada, comprovando-se que o agente se embebedou para praticar o ilícito ou assumir o risco de produzi-lo. (HC 107801, relator(a): CÁRMEN LÚCIA, relator(a) p/ Acórdão: LUIZ FUX, 1ª turma, julgado em 6-9-11, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-196 DIVULG 11-10-2011 PUBLIC 13-10-2011 RTJ VOL-00226-01 PP-00573 RJTJRS v. 47, n. 283, 2012, p. 29-44)”

Por fim, como o tipo previsto no art. 62 da lei de contravenções penais constitui meio de execução para a consumação de infrações penais subsequentes decorrentes da embriaguez voluntária, é possível a aplicação do princípio da consunção, uma vez que o crime-fim será absorvido crime-meio, de modo que o sujeito deverá ser responsabilizado apenas pela conduta mais grave, excluindo-se, assim, o crime de embriaguez pública previsto no decreto-lei 3.688, de e de outubro/41. 

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Decreto-Lei nº. 3.689, de 3 de outubro de 1941. 

Decreto-Lei nº. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. 

Decreto-Lei nº. 3.688, de e de outubro de 1941

REsp n. 908.396/MG, relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, julgado em 3/3/2009, DJe de 30/3/2009.

HC n. 702.667/RS, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 2/8/2022, DJe de 15/8/2022.

HC 107801, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Relator(a) p/ Acórdão: LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 06-09-2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-196 DIVULG 11-10-2011 PUBLIC 13-10-2011 RTJ VOL-00226-01 PP-00573 RJTJRS v. 47, n. 283, 2012, p. 29-44.

Ricardo Henrique Araujo Pinheiro
Advogado especialista em Direito Penal. Sócio no Araújo Pinheiro Advocacia.

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