O Tribunal do Júri possui uma história que se estende ao longo do tempo no país. Reconhecido como o tribunal representativo do povo, foi estabelecido no Brasil em 1822. Sua incorporação ao Poder Judiciário foi formalizada na primeira constituição brasileira, a Constituição Política do Império, promulgada em 1824. Desde então, todas as constituições subsequentes dedicaram um capítulo específico a essa importante instituição.
Em sua origem, o Tribunal do Júri era responsável pelo julgamento de delitos relacionados ao abuso da liberdade de imprensa. A partir da promulgação da Constituição de 1824, suas competências foram expandidas para incluir julgamentos de causas tanto cíveis quanto criminais. A Constituição republicana de 1891 não apenas preservou este tribunal, mas também o reconheceu como uma garantia individual. Embora a Carta de 1937 tenha omitido menção ao Tribunal do Júri, o decreto-lei 167/38, regulamentou sua estrutura, impondo limites à soberania dos veredictos. Com o processo de redemocratização, a Constituição de 1946 restabeleceu a soberania do Júri e o incluiu no rol dos direitos e garantias individuais. Mesmo durante os períodos de regimes militares, embora tenham ocorrido modificações em algumas de suas atribuições, a posição do Tribunal do Júri como um dos pilares dos direitos e garantias individuais permaneceu inalterada nos textos constitucionais.
Atualmente, a Constituição reconhece o Tribunal do Júri, endossando os princípios da ampla defesa, votações secretas, soberania dos veredictos e competência exclusiva para julgar crimes dolosos contra a vida, conforme delineado no art. 5º, inciso XXXVIII. Esta instituição é dotada das características de cláusula pétrea e garantia constitucional, integrando o conjunto de direitos e garantias individuais e fundamentais. A plena autonomia dos veredictos é explicitamente assegurada, sendo vedada qualquer interferência por parte do juiz ou mesmo do Tribunal que venha a revisar um eventual recurso.
Cumpre destacar que o Tribunal do Júri é um órgão singular no âmbito do Poder Judiciário de primeira instância, inserido na estrutura da Justiça comum, com a missão específica de julgar crimes dolosos contra a vida. Suas competências fundamentais incluem a garantia da plenitude do direito de defesa, a condução de votações em sigilo e o respeito absoluto à soberania dos veredictos. É composto por um juiz togado e vinte e cinco cidadãos, dos quais sete são selecionados por sorteio para compor o Conselho de Sentença. Este grupo tem a responsabilidade de determinar se o crime em questão ocorreu e se o réu é culpado ou inocente, comprometendo-se a analisar o caso com imparcialidade e de acordo com sua própria consciência e os princípios de justiça. O juiz, por sua vez, decide em conformidade com as deliberações do colegiado, pronunciando a sentença e estabelecendo a pena, caso haja condenação.
Contudo, cumpre informar que até mesmo a soberania dos veredictos imputado ao instituto do Tribunal do Júri foi recentemente relativizada. No dia 19/2/24, a 2ª turma do STF, no RHC 229.558 AgR, afastou a absolvição para crime hediondo, o qual seria insuscetível de graça ou anistia, decidindo que um novo julgamento deveria ser realizado no Tribunal do Júri. Senão vejamos:
Ementa: PROCESSUAL PENAL E CONSTITUCIONAL. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. TRIBUNAL DO JÚRI. QUESITO GENÉRICO. ABSOLVIÇÃO. CLEMÊNCIA. RECORRIBILIDADE. CRIME HEDIONDO. FEMINICÍDIO. INSUSCETIBILIDADE DE GRAÇA OU ANISTIA. SUBMISSÃO NOVO JULGAMENTO. 1. Se, de um lado, é admissível a utilização de critérios extralegais de exculpação, de outro, não é possível tornar irrecorrível a decisão do júri por mera aplicação do quesito genérico. 2. Não cabe, no âmbito do Tribunal do Júri, investigar a fundamentação acolhida pelos jurados, já que não possuem a obrigação de justificar seus votos. No entanto, nada há no ordenamento jurídico que vede a investigação sobre a racionalidade mínima que deve guardar toda e qualquer decisão. 3. A existência de diversas novas hipóteses de absolvição diante da previsão do quesito genérico, não significa que elas sejam indetermináveis, nem ilimitadas. 4. Ainda que fundada em eventual clemência, a decisão do júri não pode implicar a concessão de perdão a crimes que nem mesmo o Congresso Nacional teria competência para perdoar. 5. Não se podendo identificar a causa de exculpação ou então não havendo qualquer indício probatório que justifique plausivelmente uma das possibilidades de absolvição, ou ainda sendo aplicada a clemência a um caso insuscetível de graça ou anistia, pode o Tribunal ad quem, provendo o recurso da acusação, determinar a realização de novo júri. 6. In casu, tendo o recorrido praticado, em tese, o crime hediondo de feminicídio, para o qual não cabe a concessão de clemência, tal hipótese sequer deve ser considerada, a fim de que possa justificar o não cabimento do recurso de apelação interposto contra a decisão absolutória do Tribunal do Júri. 7. Agravo regimental provido para o fim de manter a decisão do Tribunal de Justiça exarada para determinar a realização de novo julgamento. (RHC 229.558 AgR, relator(a): NUNES MARQUES, relator(a) p/ Acórdão: EDSON FACHIN, 2º turma, julgado em 21-11-23, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 15-02-2024 PUBLIC 16-02-2024 REPUBLICAÇÃO: DJe-s/n DIVULG 16-02-2024 PUBLIC 19-2-24
No contexto contemporâneo, observa-se que o Tribunal do Júri é uma fonte constante de questões e debates jurídico-processuais em constante evolução. No âmbito jurídico, é comum surgir questionamentos sobre a constitucionalidade do Tribunal do Júri e os prós e contras de sua aplicação no sistema legal. Agora, exploraremos algumas controvérsias relacionadas a esse instituto, sem a intenção de esgotar o assunto, mas sim de incentivar a reflexão entre aqueles interessados na temática.
1. Conformidade constitucional do Tribunal do Júri
O Tribunal do Júri é uma instituição de longa data no sistema jurídico brasileiro. Originado como lei em 1822 e posteriormente reconhecido constitucionalmente pela Constituição do Império de 1824, o Júri inicialmente tinha competência para julgar tanto questões penais quanto civis. Somente com a promulgação da Constituição de 1891 é que este Tribunal foi elevado ao status de garantia individual. A atual Constituição não apenas o preserva como um dos pilares das garantias fundamentais, mas também o protege de alterações ao conceder-lhe o status de cláusula pétrea.
Portanto, a Constituição de 1988 reconhece o Tribunal do Júri, conferindo-lhe os princípios da ampla defesa, votações secretas, soberania dos veredictos e competência para julgar os crimes dolosos contra a vida.
Ainda, conforme estabelecido no art. 60, §4° IV da Constituição Federal, “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais". A Constituição explicitamente restringe a capacidade de alterar esse instituto que é parte integrante dos direitos e garantias individuais. O legislador constituinte originário reconheceu a importância do Tribunal do Júri ao impor limites à sua possível extinção pelo poder de reforma derivado. Qualquer tentativa de abolir o Tribunal do Júri só poderá ser considerada por meio de uma nova constituinte que promulgue uma nova constituição. Além da limitação explícita contida no artigo 60, há também uma limitação implícita ao poder de reforma. Portanto, o poder derivado da Constituição não pode usar a abolição desse artigo como um artifício para abrir caminho para propostas de emendas que afetem as cláusulas pétreas.
Em outro ponto de constitucionalidade, vale dizer que a CF/88, ao mencionar a plenitude de defesa, está implicitamente abrangendo o direito à formação diversificada do Conselho de Sentença. A importância de ter um júri composto por membros que representem diferentes setores da sociedade brasileira justifica a inclusão de normas na legislação ordinária que permitam às partes recusar jurados sem a necessidade de justificativa (conforme previsto no art. 459, §2º do Código de Processo Penal). Ora, se a intenção do legislador constituinte original era conceder ao povo a oportunidade de julgar seus semelhantes, seria razoável que as partes tivessem o direito de influenciar a seleção dos jurados para evitar distorções, como o sorteio de um júri composto exclusivamente por indivíduos negros em um caso envolvendo uma vítima também negra. Permitir que a defesa e a acusação exerçam influência na formação do Conselho proporcionaria às partes a garantia de que os julgadores não são suscetíveis a preconceitos que possam prejudicar o direito à ampla defesa.
Os críticos do Tribunal do Júri apontam a falta de preparo técnico dos jurados como razão para questionar sua legitimidade. Essa falta de preparo implica que o réu pode não receber um julgamento justo e adequado. No entanto, é importante ressaltar que o fato de o juiz possuir conhecimento técnico não garante automaticamente decisões justas. O grande número de sentenças que são revistas em instâncias superiores é prova suficiente de que os juízes togados também podem proferir decisões equivocadas, por vezes absurdas.
Devido à sua formação acadêmica, o magistrado tende a dar grande importância aos aspectos formais do crime em questão. A gravidade do ato cometido pelo criminoso muitas vezes fica em segundo plano, pois sua preocupação principal é evitar a possibilidade de ter sua sentença contestada com base em argumentos técnicos. Por outro lado, o Tribunal do Júri examina o crime sob a perspectiva da sociedade, que, em última instância, será responsável por lidar com o indivíduo caso seja absolvido. A negação do direito do povo de julgar seus pares sugere que, para alguns, o cidadão comum não possui capacidade intelectual para discernir entre o certo e o errado.
2. Inconstitucionalidades no instituto do Tribunal do Júri
Evidentes os argumentos em prol da constitucionalidade do Tribunal do Júri, faz-se necessário tecer argumentos os quais sustentam posição deste, de modo que a constitucionalidade do art. 5°, inciso XXXVIII da Constituição Federal, o dispositivo normativo que prevê a competência do Tribunal do Júri, assim consagrado como Direito Fundamental, deve estar em compasso com os demais princípios constitucionais, sob o prejuízo de uma precária aplicação das normas constitucionais.
Temos como base de nosso ordenamento jurídico, notadamente nos aspectos processuais, princípios norteadores, os quais efetivam a tutela jurisdicional, como por exemplo o princípio da fundamentação ou exigência de motivação das decisões judiciais, consagrado no artigo 93,inciso IX da Constituição Federal, este garantindo a todos os cidadãos o Direito de terem seus julgamentos de forma fundamentada. Busca-se com este princípio alcançar de forma exemplar o princípio do contraditório, confirmando a ideia de que todas as formas de prova de inocência foram supridas por argumentos contrários (LOPES JR, 2014).
Em contrapartida às decisões proferidas pelo Tribunal do Júri, ora os vinte e cinco jurados, estes sorteados para compor o Conselho de Sentença, os responsáveis por afirmar ou negar a existência do fato criminoso, cidadãos Brasileiros de notório idoneidade e maiores de 18 anos, leigos, não necessitam fundamentar sua decisão, na medida em que não dispõem de notório saber jurídico, ademais não possuem especialização na área, restando assim em descompasso com o princípio supramencionado.
Não obstante, far-se-á necessário observar o que prevê o Princípio do Juiz Natural, consagrado no art. 5°, inciso XXXVII da CRFB/88, “Não haverá juízo ou Tribunal de Exceção”, também previsto no rol de garantias fundamentais, assim vedado a criação de tribunais extraordinários, evitando a criação de tribunais para o julgamento de questões específicas, assegurando uma maior efetivação da imparcialidade dos magistrados.
Nestes termos, percebe-se que segue em sentido contrário ao previsto no instituto do Tribunal do Júri, na medida em que contraria a ideia da competência previamente fixada (conforme o dispositivo aludido), de modo que é vedado à instituição do juízo posterior ao fato de investigação. Assim percebe-se que o próprio Tribunal do Júri, apesar de que consagrado no rol de Direitos Fundamentais, possui controvérsias acerca de sua aplicação. Sendo assim, há espaço para reformulação de aspectos formais, os quais envolvem sua aplicação em conformidade com os princípios aqui expostos.
Há de ressaltar que este artigo não busca que seja asseverada a constitucionalidade deste dispositivo (pois já é um dogma em nossa sociedade), ou sua inconstitucionalidade (por não ser cabível, dado o status de cláusula pétrea), e sim contribuir com o estudo acerca do Tribunal do Júri, visto ser o papel fundamental da ciência.
3. Conclusão
Por todo o exposto, é crucial que a sociedade, além de desafiar a influência excessiva da manipulação cultural promovida pelos meios de comunicação de massa, também se empenhe em preservar o direito, buscando promover cada vez mais julgamentos justos através do Poder Judiciário. A instituição do Júri sempre será controversa - admirada por alguns, repudiada por outros. O que nos preocupa é a falta de discussão na doutrina sobre a decisão do Poder Constituinte de conferir-lhe status de garantia fundamental. A maioria das obras de Direito Constitucional não aborda detalhadamente a inclusão do Tribunal Popular no rol do art. 5º da Constituição, enquanto os estudos de Direito Processual Penal tendem a focar apenas no exame do procedimento.
Acreditamos que o reconhecimento dado pelo Constituição ao Tribunal do Júri demanda uma reavaliação imediata da legislação ordinária, garantindo que essa prerrogativa não se torne uma formalidade vazia, limitada apenas à competência, mas sim que se preserve o direito do réu de escolher, de acordo com a estratégia de sua defesa, entre ser julgado por seus iguais ou por um juiz togado. Se o Tribunal do Júri foi incluído entre as garantias consideradas fundamentais, é necessário examinar a razão que justifica a importância atribuída à possibilidade de julgamento por esse órgão. Conscientes de que a maior parte das críticas ao Júri se baseia na percepção de que, em geral, ele representa uma redução das garantias concedidas às partes em comparação com os julgamentos conduzidos pelos órgãos tradicionais do Poder Judiciário (julgamento técnico, imparcial, com análise das provas em uma sentença fundamentada), impor o julgamento pelo Júri para crimes dolosos contra a vida (e outros determinados por lei ordinária) não constitui um direito ou garantia para o indivíduo, mas sim uma regra de competência.
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