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Cláusula de não concorrência em contratos de franquia: Validade e preservação dos contratos

Recentes decisões judiciais sobre cláusulas de não-concorrência em contratos de franquia desafiam práticas habituais, impactando o sistema brasileiro de franquias.

18/3/2024

Nos últimos tempos, temos testemunhado uma série de precedentes judiciais tratando da cláusula de não-concorrência em contratos de franquia em sentido diverso daquilo que vinha ordinariamente ocorrendo. O objetivo deste artigo é discutir esses precedentes e como isso pode afetar todo o sistema de franquia brasileiro.

Basicamente, uma cláusula de não-concorrência em contratos desta natureza tem por finalidade:

  1. Proteger o know-how da Franqueadora;
  2. Evitar que qualquer franqueado, no curso ou findo o contrato, simplesmente se aproprie de todas as técnicas da Franqueadora e passe a concorrer diretamente com ela, operando sob uma nova “bandeira”;
  3. Impede que este franqueado também se torne um novo franqueador e tente captar indevidamente outros franqueados da rede em que atuava ou até terceiros que inicialmente poderiam tornar-se franqueados de sua rede anterior; e
  4. Protege os próprios franqueados daquela rede anterior, na medida em que evita a concorrência predatória (o ex-franqueado, ora concorrente, continuará atuando no seguimento, mas diferente dos demais, não mais pagará royalties).

Trata-se, portanto, de um mecanismo legítimo de defesa de um modelo econômico que merece ser protegido e que muito tem contribuído para o empreendedorismo, para o primeiro emprego, para o emprego da economia prateada, para o treinamento e qualificação da mão-de-obra em nosso País e para a economia em geral. Segundo dados da ABF, o franchising faturou R$211 bilhões em 2022, possui atualmente 3077 marcas, 184 mil unidades franqueadas, gerando 1,8 milhões de empregos diretos e 5 milhões de empregos indiretos1.

Claro que uma cláusula de não-concorrência é uma cláusula limitadora de direitos e, por isso mesmo, deve ser sempre interpretada de forma restritiva para evitar prejuízo ao sistema da concorrência e ao mercado com um todo, até porque no Brasil, como se sabe, vigora o princípio da livre iniciativa (art. 170 da CF/88). Mas isso não pode significar que este tipo de cláusula deva ser desconsiderada e/ou reduzida pelos intérpretes judiciais já que, como visto, também é protetora de todo o sistema de franquia no Brasil.

Pois bem, existem 3 pontos fundamentais que devem ser observados para a correta interpretação e validade da cláusula de não-concorrência:

  1. Tempo de limitação
  2. Área de atuação
  3. Território.

Em que pese haver julgados recentes afastando a validade da cláusula de não concorrência por falta de apenas um dos requisitos2, a doutrina brasileira3 sempre entendeu que a cláusula seria válida possuindo apenas 2 destes 3 elementos. Uma vez definida a área de atuação em que a concorrência não seria possível, deveria haver, ainda, uma limitação especial ou temporal.

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1 Dados divulgados em janeiro de 2023 relativos ao desempenho do segmento em 2022 divulgados pela ABF Associação Brasileira de Franquias.

2 Acórdão proferido em sede de Agravo de Instrumento que manteve o entendimento de que a cláusula que não estipula o território seria abusiva. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Agravo de Instrumento de nº2298166-83.2022.8.26.0000, Primeira Câmara Reservada de Direito Empresarial, Relatora Jane Franco Martins.

3 Um dos maiores juristas do Brasil, FÁBIO KONDER COMPARATO, em estudo sobre a matéria, publicado na Revista de Direito Mercantil afirma:

“Nas hipóteses de restrições convencionais de concorrência, a jurisprudência, tanto aqui como alhures, firmou-se no sentido de enquadrar a licitude de tais estipulações dentro de limites precisos de objeto, de tempo e de espaço, tendo em vista o princípio da liberdade de concorrência, que entre nós, como sabido, tem assento constitucional (CF, art. 170). “É preciso, com efeito, que a obrigação de não concorrência defina o tipo de atividade sobre a qual incide (...). “Não basta, porém, que se defina o objeto dessa obrigação de não-concorrer. Importa, ainda, que ela seja limitada no tempo, ou no espaço. Estas duas últimas restrições podem ser cumuladas, mas é indispensável que exista pelo menos uma. Quando a causa da interdição de concorrência prende-se, sobretudo, à pessoa do empresário, é normal que se estabeleça uma limitação no tempo, pois a clientela pessoal tende a se dispersar no curso dos anos. Mas se a razão de ser da estipulação é a concorrência espacial entre estabelecimentos, o que importa é a fixação de uma distância mínima de separação entre eles, a prevalecer sem limitação de tempo”. (g.n.). (As Cláusulas de Não-Concorrência, in RDM n.º 97, pp. 27 e 28).

No mesmo sentido:

“As cláusulas contratuais de disciplina da concorrência podem ou não ser válidas, de acordo comum a série de fatores, a serem especificamente analisados. Para a análise, o critério mais relevante é o da preservação do livre mercado. Ou seja, as partes podem disciplinar o exercício da concorrência entre elas, desde que não a eliminem por completo. Em outros termos, a validade da disciplina contratual da concorrência depende da preservação de margem para a competição (ainda que futura) entre os contratantes; ou seja, da definição de limites materiais, temporais e espaciais. Em concreto, a vedação não pode dizer respeito a todas as atividades econômicas, nem deixar de possuir delimitações no tempo ou no espaço. 

Em relação aos limites materiais, observa-se que a cláusula disciplinando a concorrência é inválida, se impede o contratante de explorar qualquer atividade econômica. A restrição deve necessariamente se circunscrever a determinados ramos de comércio, indústria ou serviços. Para as demais atividades, as partes ficam livres de qualquer obrigação (de não fazer). A propósito da restrição material, deve-se também considerar inválida a cláusula que impeça o contratante, pessoa física, de exercer a sua profissão. Por exemplo, o sócio que se desliga de sociedade de engenheiros pode, no instrumento de cessão de cotas, ficar impedido de competir com a sociedade, desde que os termos contratados não alcancem todas as atividades de engenharia para as quais o retirante se encontra profissionalmente habilitado ou preparado.

Também é inválida a cláusula que vede a concorrência para sempre ou em qualquer lugar. Limites temporais ou espaciais são exigidos, para que a restrição contratada não importe eliminação total da concorrência. Trata-se, aqui, de uma alternativa inclusiva; quer dizer, o contrato pode prever limite no tempo e no espaço, ou só num deles. A restrição contratual limitada apenas geograficamente se considera feita para sempre, enquanto a limitada apenas no tempo alcança todos os mercados (Ripert-Roblot, 1947:350). A invalidade existe quando não há simultaneamente limite temporal e espacial. É igualmente inválida a cláusula de não concorrência que estabelece prazo demasiado longo, ou defina limites espaciais exagerados, que ultrapassam o potencial de conquista de mercado que as partes possuem. Desse modo, é nula a cláusula de não estabelecimento que o empreendedor de shopping center, para evitar a concorrência autofágica, contrata com os lojistas, quando os limites territoriais nela referidos extrapolam os do mercado sobre o qual pode exercer atração" (Fábio Ulhoa Coelho in Curso de Direito Comercial, v. 1, cap. 7, São Paulo, RT,2018 - grifado)

Sidnei Amendoeira Junior
Formado pela USP-SP, é doutor e mestre em direito processo civil pela mesma faculdade, tendo sido orientado pelo Prof. Cândido Rangel Dinamarco. É professor de cursos de direito processual civil da Direito GV em São Paulo.

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