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Perda de “objeto”: A inconstitucionalidade convolada em direito adquirido

Controle de constitucionalidade é tema controverso, abrangendo aspectos jurídicos, políticos e processuais. No Brasil, adota-se o modelo norte-americano, considerando a inconstitucionalidade como nulidade absoluta, alinhado ao neoconstitucionalismo e à supremacia da Constituição.

14/3/2024

Uma área do direito que sempre gera polêmica e enseja discussões das mais calorosas é o controle de constitucionalidade. Desde a natureza jurídica do ato administrativo de nomeação dos ministros da Suprema Corte até a necessidade de se criar um sistema de mandato para seus membros, perpassando pelas questões técnicas e políticas tanto processuais quanto constitucionais propriamente ditas, a fiscalização da conformidade das normas aos ditames da Constituição é tema que sempre está em pauta. 

O Brasil, embora adote o modelo híbrido mesclando o europeu com o estadunidense, acabou por pender a balança para o lado dos norte-americanos no que concerne à natureza jurídica da inconstitucionalidade. Trata-se, como muito bem se sabe, de vício de nulidade absoluta, o que impacta diretamente na natureza da decisão judicial que a reconhece, assim como nos seus respectivos efeitos. 

O entendimento pela nulidade absoluta guarda coerência com as diretrizes do neoconstitucionalismo, sobretudo no que toca ao princípio da supremacia da Constituição e de sua força normativa. Uma norma que esteja em descompasso com a Carta Mãe afronta o ordenamento jurídico em sua gênese, em sua matriz, de modo que entender tal situação como vício de natureza relativa seria, de fato, um tanto incoerente do ponto de vista do sistema jurídico como um todo.

Ocorre que tal escolha impõe consequências e as cortes do país devem observá-las em vista da manutenção da coerência do ordenamento jurídico. Nesse sentido, passo a discorrer sobre um ponto que deveria ser revisitado pelo STF acerca do tema controle de constitucionalidade justamente por romper a tão desejada coerência sistemática. É o caso da perda de objeto na hipótese da revogação da lei cuja constitucionalidade se controverte em sede de ação direta durante a sua tramitação. 

Segundo firme entendimento do Pretório Excelso, exceto em caso de fraude processual ou de perda de vigência de leis temporárias, tal cenário enseja a carência de ação por perda de “objeto”. 

CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. REVOGAÇÃO DA NORMA OBJETO DA AÇÃO DIRETA. COMUNICAÇÃO APÓS O JULGAMENTO DO MÉRITO. DESPROVIMENTO.

  1. Há jurisprudência consolidada no STF no sentido de que a revogação da norma cuja constitucionalidade é questionada por meio de ação direta enseja a perda superveniente do objeto da ação. Nesse sentido: ADI 709, rel. min. Paulo Brossard, DJ, 20.05.1994; ADI 1442, rel. min. Celso de Mello, DJ, 29.04.2005; ADI 4620-AgR, rel. min. Dias Toffoli, Dje, 1.8.12.
  2. Excepcionam-se desse entendimento os casos em que há indícios de fraude à jurisdição da Corte, como, a título de ilustração, quando a norma é revogada com o propósito de evitar a declaração da sua inconstitucionalidade. Nessa linha: ADI 3306, rel. min. Gilmar Mendes, DJe, 07.06.2011.
  3. Excepcionam-se, ainda, as ações diretas que tenham por objeto leis de eficácia temporária, quando: (i) houve impugnação em tempo adequado, (ii) a ação foi incluída em pauta e (iii) seu julgamento foi iniciado antes do exaurimento da eficácia. Nesse sentido: ADI 5287, rel. min. Luiz Fux, Dje, 12.09.2016; ADI 4.426, rel. min. Dias Toffoli, Dje, 17.05.2011; ADI 3.146/DF, rel. min. Joaquim Barbosa, DJ, 19.12.06.
  4. Com maior razão, a prejudicialidade da ação direta também deve ser afastada nas ações cujo mérito já foi decidido, em especial se a revogação da lei só veio a ser arguida posteriormente, em sede de embargos de declaração. Nessa última hipótese, é preciso não apenas impossibilitar a fraude à jurisdição da Corte e minimizar os ônus decorrentes da demora na prestação da tutela jurisdicional, mas igualmente preservar o trabalho já efetuado pelo Tribunal, bem como evitar que a constatação da efetiva violação à ordem constitucional se torne inócua.
  5. Embargos de declaração desprovidos.

(ADI 951 ED, relator(a): min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 27/10/16, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-134 DIVULG 20-6-17 PUBLIC 21-6-17)

AGRAVO REGIMENTAL EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI ESTADUAL. FIXAÇÃO DO PISO SALARIAL. SUPRESSÃO DA EXPRESSÃO ORA IMPUGNADA POR LEI POSTERIOR. PERDA SUPERVENIENTE DE OBJETO. PREJUDICIALIDADE. 1. A jurisprudência do STF é firme no sentido de que a intercorrência de revogação da norma impugnada gera a prejudicialidade da ação direta de inconstitucionalidade, em decorrência da perda superveniente do objeto. Precedentes. 2. Exceção à referida diretriz jurisprudencial diante dos casos de eventual fraude processual, ou seja, quando a revogação dos atos normativos visa burlar a jurisdição constitucional da Corte, ocasião em que o julgamento final da ação não fica prejudicado. Hipótese não verificada no presente caso concreto. 3. Agravo regimental a que se nega provimento.

(STF; ADI-AgR 4.939; SP; Tribunal Pleno; rel. min. Edson Fachin; Julg. 23/8/19; DJE 9/9/19; Pág. 20)

(CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Revogação do ato normativo que estava sendo impugnado e julgamento da ação sem comunicar este fato ao STF. Buscador Dizer o Direito, Manaus).1

Um pequeno ajuste não apenas terminológico, porém técnico, ajudará na compreensão da tese ora encampada: a rigor não se trata de perda de objeto - o objeto é o elemento pedido da ação. Em verdade, a Suprema Corte está a reconhecer, nesse caso, a perda superveniente do interesse de agir, de modo que a ação não seria mais adequada e nem necessária para o atingimento do fim que o processo proporciona, qual seja a invalidação da norma. 

Aqui parece residir o ponto central do problema. 

Tendo em vista que a inconstitucionalidade possui natureza de nulidade absoluta, o seu reconhecimento se dará por meio de uma decisão judicial de natureza declaratória com efeitos ex tunc, de modo a não se manter nenhum efeito da norma nula, desde a sua entrada em vigor, no ordenamento jurídico. Diferentemente seria o caso de entender pela natureza relativa do vício da inconstitucionalidade, o que redundaria em uma decisão de natureza constitutiva-negativa com efeitos ex nunc, o que manteria os efeitos da norma anulada até o advento da sua desconstituição. Não foi essa, no entanto, a escolha do Direito pátrio, como já restou demonstrado. 

Nesse sentido, guardando coerência com a escolha tomada quanto à natureza da inconstitucionalidade, o STF não reconhece, por exemplo, o fenômeno da constitucionalidade superveniente. A alteração do parâmetro não muda em nada o fato de a norma objurgada possuir um defeito congênito, incorrigível, o que demanda o pronunciamento declaratório de sua nulidade. Assim, não se permite que sejam mantidos no sistema jurídico eventuais efeitos de uma lei inconstitucional. 

(...) 1. Em nosso ordenamento jurídico, não se admite a figura da constitucionalidade superveniente. Mais relevante do que a atualidade do parâmetro de controle é a constatação de que a inconstitucionalidade persiste e é atual, ainda que se refira a dispositivos da Constituição Federal que não se encontram mais em vigor. Caso contrário, ficaria sensivelmente enfraquecida a própria regra que proíbe a convalidação.

2. A jurisdição constitucional brasileira não deve deixar às instâncias ordinárias a solução de problemas que podem, de maneira mais eficiente, eficaz e segura, ser resolvidos em sede de controle concentrado de normas.

3. A lei estadual 12.398/98, que criou a contribuição dos inativos no Estado do Paraná, por ser inconstitucional ao tempo de sua edição, não poderia ser convalidada pela Emenda Constitucional 41/03. E, se a norma não foi convalidada, isso significa que a sua inconstitucionalidade persiste e é atual, ainda que se refira a dispositivos da Constituição Federal que não se encontram mais em vigor, alterados que foram pela Emenda Constitucional 41/03. (...)

STF. Plenário. ADI 2158, rel. min. Dias Toffoli, julgado em 15/9/10.

(CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Informativo STF-1123. Buscador Dizer o Direito, Manaus).2-3

Todavia, o mesmo não ocorre quando se trata de revogação da norma impugnada no curso de uma ação direta de inconstitucionalidade. Na contramão de todo o sistema que varre do ordenamento jurídico os efeitos de norma declarada inconstitucional, ao entender pela perda de interesse superveniente no caso da revogação de uma lei objeto de ação direta de inconstitucionalidade, o Pretório Excelso acaba por permitir que se mantenham intocados os efeitos gerados por lei eventualmente inconstitucional no período compreendido entre a sua entrada em vigor e a sua revogação. 

Essa parece ser uma consequência indesejada pelo ordenamento jurídico e que merece uma reapreciação pelo STF. Uma vez que a escolha do Direito brasileiro sobre a inconstitucionalidade foi pela sua natureza de vício absoluto, então, em regra, nenhum efeito de uma norma inconstitucional deve ser mantido. 

A exceção a esta regra está apenas nos casos versados no artigo 27 da lei 9.868/99 que acaba por tolerar os efeitos de uma norma inconstitucional em vista da proteção de valores constitucionais de elevada estatura, como a segurança jurídica e o excepcional interesse social. 

Não é este o caso da perda superveniente de interesse na hipótese de revogação da norma, até mesmo porque resta claro que a equilibrada opção do legislador no caso da modulação dos efeitos nos termos do art. 27 da lei 9.868/99 diz respeito a decisões de mérito, o que se evidencia na parte inicial do referido dispositivo.

Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

A opção por uma decisão terminativa em caso de revogação de lei objeto de ação direta de inconstitucionalidade acaba por deixar passar uma série de situações que, embora inconstitucionais, restam mantidas a título de direito adquirido. Se uma lei criou um determinado direito e o destinatário da norma preencheu os requisitos para sua aquisição, então a revogação da lei não poderá alterar tal status sob pena de violar o art. 5º, XXXVI da Constituição Federal

Art. 5º

XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;

A única forma de corrigir esse cenário seria com o prosseguimento do rito de ação direta da norma revogada, pois somente a declaração de vício absoluto da lei poderia tornar sem efeito uma situação revestida do status de direito adquirido lastreada, contudo, em norma em desarmonia com a Constituição, embora já revogada.  

Em suma, a opção do STF pela decisão terminativa por perda de interesse superveniente (“objeto”) em caso de revogação de lei no curso de ação direta de inconstitucionalidade tem o poder de criar um indesejável cenário: a manutenção de situações que têm por base lei inconstitucional e que passam a ganhar o status de direito adquirido, não havendo no sistema jurídico pátrio meios processuais de corrigir tal erro.  

Isso acaba por revelar também uma violação ao princípio constitucional da inafastabilidade, já que o Judiciário estaria a se negar à prestação jurisdicional que, nesse caso, seria o único meio possível de corrigir esse inconveniente estado de coisas. 

Portanto, se faz necessário que o STF revisite esse tema e reveja o seu posicionamento, uma vez que a convolação da inconstitucionalidade em direito adquirido em nada se coaduna com o sistema de controle adotado pelo Brasil, mais notadamente com a acertada escolha do reconhecimento da natureza jurídica da inconstitucionalidade como vício de nulidade absoluta.

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1 Disponível em: https://buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/bd294168a234d75851d6f26f02723ab1. Acesso em: 10/03/2024

2 Disponível em: https://www.buscadordizerodireito.com.br/informativo/detalhes/352407221afb776e3143e8a1a0577885. Acesso em: 10/03/2024

3 Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=617876

Igor Awad Barcellos
Assessor para assuntos jurídicos do TJ/ES, professor universitário, ex-presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB/ES, escritor, autor do livro Retrato do Mundo, mestre em Filosofia.

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