O sistema de precedentes atual é uma tentativa – e que tem tudo para que seja de grande utilidade e eficiência prática – de poder aproximar da aplicação da justiça a segurança jurídica. Além disso, positiva de vez no nosso ordenamento aquilo que deve ser considerado como direito. Ou seja, direito é lei, doutrina e jurisprudência! Os tribunais, naquilo que lhes competem interpretar possuem legitimidade de produzirem o direito. Tal realidade não pode mais ser afastada, como se o direito fosse tão somente aquilo que a lei em sentido estrito (puramente produzida em texto legislativo) dispõe; como se fosse possível extrair da literalidade uma resposta quase que automática, em puro exercício de encaixe dos mundos dos fatos a uma correspondência exata de sentido. Portanto, o papel dos tribunais também é o de interpretar (e, de certa forma, dizer) o que é o direito. Não é um papel exclusivo, no entanto. E nisso não se fomenta qualquer ativismo judicial, conceito este que não se pretende aqui esmiuçar, mas que não se confunde com a ideia de que o direito é um tripé, formado por lei, doutrina e jurisprudência. Nessa afirmação não há qualquer relação com o que seja ativismo.
No que compõe hoje o sistema de precedentes vinculantes, disciplinado pelo atual CPC, uma ferramenta muito interessante (e ainda com pouca representatividade prática em alguns tribunais), é o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas - IRDR. Por meio de tal procedimento, Tribunais (sejam estaduais ou federais) passam a exteriorizar um entendimento interpretativo sobre questões de direito, uniformizando o tratamento em repetidas demandas no âmbito das suas respectivas atuações. O interessante é que, mesmo tratando-se de questão que possa repercutir nacionalmente, como por exemplo, na interpretação adequada de uma lei federal, se permite formar um entendimento local (dentro dos limites de competência jurisdicional do tribunal) para resolução de diversas demandas ali propostas. Ou seja, permite a lei que o Tribunal local, tenha o poder/dever de também contribuir para formação de precedentes e, por óbvio, segui-los. Tal contribuição, no entanto, não é exclusiva, quando se trate de questão relativa a uma interpretação jurídica de âmbito nacional (interpretação de uma lei federal, por exemplo). Isso porque, o dever de uniformização sobre a lei federal ou sobre a constituição está reservado – em termos de dizer a última palavra - às Cortes de Precedentes (STJ e STF), que possuem um dever institucional e hierárquico de produzirem decisões vinculantes, a serem observadas pelos demais órgãos, sob pena, inclusive, de medidas drásticas, como a Reclamação, hoje também disciplinada pelo CPC.
Aos tribunais, se impõe, genuinamente, uma tarefa de gerenciamento das demandas repetitivas e uniformidade das suas decisões. Por isso, a previsão dos tribunais produzirem precedentes vinculantes, ainda que mais restritivos, devido a amplitude de atuação do órgão formador do precedente. Nada mais nefasto do que o jurisdicionado ficar sujeito a um desfecho determinado dependendo da turma ou câmara em que o seu caso for julgado em um mesmo tribunal. Tal dinâmica ainda ganha mais relevância se considerarmos que o exame profundo das provas possuem ali o seu ponto, majoritariamente, final. Para cumprir a função de um correto gerenciamento de demandas, inclusive produzindo resultados uniformes (tratar casos iguais de igual forma), o IRDR representa um grande avanço, ao mesmo tempo que democratiza o debate nos tribunais sobre possíveis interpretações sobre questões advindas até mesmo de legislação federal. Quanto às questões regionais/estaduais, por óbvio, há uma competência genuína para que o precedente se forme na corte local e tenha eficácia restrita.
Evidentemente, no entanto, a discussão não pode caber exclusivamente aos Tribunais (tratando-se de questões sobre lei federal ou a constituição), pois não se pode retirar das Cortes Superiores a missão institucional. Portanto, ainda que o Tribunal possua plena legitimidade de discutir e firmar precedente vinculante, no âmbito da sua atuação, em questão de direito federal ou constitucional, o procedimento adotado, autoriza que essa mesma questão seja levada para as denominadas Cortes de Precedentes. Não poderia ser diferente.
Assim é que o art. 987 do CPC resguarda o efeito suspensivo aos recursos excepcionais (especial ou extraordinário), da decisão de mérito do IRDR, para que a questão seja enfrentada por uma Corte Superior, que, firmará uma tese a ser seguida, aí sim, por todos os Tribunais. Não há nada de excepcional na previsão de cabimento dos recursos excepcionais, já que, uma vez enquadrados nas hipóteses de cabimento constitucional poderiam ser manejados sem qualquer problema. O que há de relevante é a atribuição, por lei, de um efeito suspensivo automático para esses recursos bem como a presunção – também por lei – da existência de repercussão geral. Da mesma forma, deve-se entender, em relação ao recurso especial, a presunção de relevância, diante da inclusão de tal requisito pela Emenda Constitucional 125/22 (ainda pendente de regulamentação legal). Outro aspecto é que não só as partes que originariamente participaram daquele IRDR instaurado perante determinado Tribunal estão legitimadas a, por meio desses recursos excepcionais, transferirem a questão debatida para um órgão de abrangência nacional, mas também qualquer outro litigante, em qualquer outra região (e, portanto, submetido, em segundo grau de jurisdição, ao seu tribunal local), pode requerer, por meio do seu recurso especial ou extraordinário, que a questão submetida a exame por meio daquele IRDR instaurado em outro tribunal, seja apreciada por uma Corte de Precedente (art. 982 § 3º do CPC).
A amplitude de abrangência ainda pode acontecer até mesmo antes da fase recursal. Da análise do procedimento do IRDR, se conclui que, uma vez instaurado o incidente perante o respectivo tribunal local, o relator determinará a suspensão dos processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitam na região de atuação daquele tribunal local. Porém, é permitido, a outros litigantes, fora da competência territorial daquele tribunal, formularem um pedido de suspensão nacional perante a Corte de Precedente (STJ ou STF). Veja que, neste momento, não há ainda, uma definição do próprio IRDR mas sim apenas a sua admissão pelo tribunal local. Nesta hipótese, antes mesmo de resolver o mérito, a parte que litiga em outro caso, perante outro tribunal, pode ampliar a suspensão (de local para nacional), objetivando, futuramente que o caso seja analisado pelo STJ ou STF.
O CPC não previu um procedimento específico para esse pedido. No entanto, já se colhe do regimento interno do STJ - RISTJ um procedimento deste Pedido de Suspensão Nacional, em seu art. 271-A. No âmbito do regimento, se inseriu um requisito de admissibilidade para a parte que realiza tal pedido com demanda em território diverso daquele que se instaurou o IRDR. Se impõe que a parte comprove, no pedido de suspensão nacional, que o seu pedido de instauração de IRDR, no tribunal em que tramita a sua ação especifica, tenha sido inadmitido pelo Tribunal. Ou seja, para a parte que se encontra submetida a outro em tribunal e que tenha conhecimento de que a mesma questão de direito está sendo discutida em um IRDR, instaurado em tribunal diverso, deve, primeiro, realizar um pedido de instauração de IRDR no tribunal no qual a sua causa esteja sujeita à apreciação em segundo grau. (art. 271-A § 1º do RISTJ). Se o tribunal indeferir a instauração do incidente, essa mesma parte, poderá, na forma do regimento do STJ, pedir a suspensão dos processos, de forma nacional, em decorrência do IRDR instaurado em outro tribunal e em trâmite. Essa suspensão vigorará até o trânsito em julgado do IRDR em discussão (art. 271-A § 3º do RISTJ)
Situação mais desafiadora, é quando, ao chegar o pedido de suspensão nacional, se constata, a existência de vários outros IRDR's em trâmite, em diversos tribunais locais. Evidentemente, o acolhimento de um pedido de suspensão nacional, irradiará efeitos para todas as ações em trâmite no território nacional. No pedido de suspensão nacional 7 no STJ, por exemplo, se determinou que a suspensão nacional vigorasse até a resolução de mérito em um determinado IRDR, escolhido dentre aqueles incidentes noticiados e em trâmite sobre a mesma questão de direito. Portanto, os outros IRDR's também ficaram suspensos aguardando a definição do IRDR eleito pela decisão do STJ, que podemos chamar assim de “causa-piloto”. Não haveria sentido não eleger um deles como parâmetro para a suspensão nacional vigorar, sob pena de se criar um tumulto em um procedimento que objetiva justamente o contrário.
Ao final, admitindo-se um pedido de suspensão nacional, apenas um IRDR deve ter o seu processamento continuado (na hipótese de já existirem vários sobre a mesma questão), restando suspenso, inclusive, os demais, para a espera de um desfecho. Resta o desafio de como escolher esse IRDR que funcionará como “causa-piloto”, nesses casos. Não há regra expressa nesse sentido, de modo que poder-se-ia admitir o critério de prevenção dentre os IRDR's existentes ou então a análise, pelo STJ (ou STF, a depender do caso), da representatividade e densidade dos argumentos apresentados (que também vem sendo retratado na doutrina). A situação revela-se instigante, justamente porque, neste momento, trata-se tão somente de uma suspensão nacional até um determinado termo, qual seja, o trânsito em julgado do IRDR eleito como causa-piloto (art. 271-A § 3º do RISTJ).
Julgado o mérito do IRDR eleito como “causa-piloto” pelo tribunal local, a suspensão nacional, determinada pela Corte Superior, permanecerá até o trânsito em julgado da decisão de mérito do IRDR. Isto porque, relembre-se que poderá haver a interposição de recurso especial ou extraordinário (seja pelos legitimados do próprio IRDR ou por outras partes de processos em que se discute a mesma questão). Havendo recurso, o STJ ou o STF, firmará o precedente vinculante, através do próprio recurso excepcional, atraindo assim o procedimento do julgamento de recursos repetitivos (isto, claro, se entender em afetar a controvérsia para a definição do precedente vinculante). O recurso não prosperando, seja por questões de admissibilidade ou por ausência de afetação pela Corte de Precedente, a suspensão se encerrará com um precedente definitivo formado pelo tribunal local e de eficácia limitada.
Assim, da mesma forma, caso, daquele IRDR eleito (a “causa-piloto”), não se interponha o recurso especial ou extraordinário para que a questão de mérito seja analisada pelo STJ e STF (hipótese em que se firmará um precedente vinculante nacional), os outros IRDR's que não foram eleitos como “causa-piloto”, retomarão a sua marcha procedimental, gerando, em cada um, um precedente local, podendo terem a sua abrangência de mérito decidida também por recurso dos legitimados, no STJ ou STF.
Como se vê, o IRDR é um instrumento interessantíssimo no sistema de precedentes, pois democratiza a discussão, imbuindo os tribunais do poder/dever de uniformizar o tratamento dos casos (ainda mais relevantes pois são instâncias revisoras de provas), sem prejuízo da criação de escapes para pronunciamentos pelas Cortes de Precedentes (STJ e STF). Os desdobramentos do IRDR e suas repercussões são análogas a um cubo mágico, onde cada vez que se deslocam as suas peças, tem-se a formação ou não de uma linha continua e uniforme. O desafio é armar esse cubo mágico de modo a conseguir que todos os seus lados fiquem uniformes. Não é fácil, mas é um caminho com muitas possibilidades de êxito. Se exigem técnicas e instrumentos de gerenciamento.