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É possível prorrogar a vigência da lei 8.666/93 por meio de decretos?

Os decretos municipais de diversas cidades brasileiras compartilham a permissão para publicar editais de licitação em 2024, regidos por leis revogadas, como a Lei nº 8.666/1993, até prazos variados, estendendo-se até 31/12/2024. Isso possibilita contratos sob antigos regimes legais.

8/3/2024

O que os decretos municipais 6.058/23 de Nova Esperança/PR; 15.000/23 de Blumenau/SC; 21/23 de Inhapi/AL; 022/23 de Brejo Santo/CE; 25.410/23 de Teresina/PI; 38.051/23 de Salvador/BA; 061/23 de Bodocó/PE; 073/23 de Flora Rica/SP; 102/23 de Pilar/AL; 255/23 de Toritama/PE; 291/23 de Campo Novo do Parecis/MT e 407/23 de Juazeirinho/PB têm em comum?

Em todos eles permite-se a publicação, em 2024, de editais de licitação ainda regidos pelas leis 8.666/93, 10.520/02 e 12.462/11.

Nesses mencionados decretos municipais, os prazos para que ocorra a publicação dos instrumentos convocatórios desses certames que serão regidos pela legislação que restou revogada pela lei 14.133/21 são bastante variados, a saber: 1/3/24; 28/3/24; 29/3/24; 30/3/24; 31/3/24; 30/4/24; 17/5/24; 28/6/24; 29/6/24; 1/7/24 e 31/12/24.

E aqui, façamos uma pequena e curiosa digressão: Imaginemos um contrato celebrado nos termos do decreto municipal 25.410/23 de Teresina/PI que autoriza a publicação de editais submetidos ao antigo regime legal das licitações até 31/12/24. Pois bem, imaginando que o §4º do art. 57 da lei 8.666/93 prevê a possibilidade de prorrogação excepcional, por até 12 meses além dos 60 meses do limite previsto no inciso II do referido artigo, poder-se-ia ter um contrato regido, por exemplo, pela lei 8.666/93 vigente até 31/12/30.

Considerando que a lei 14.133 está em vigor desde 2021, fica até difícil imaginar que seja possível um contrato estar em vigor em 31/12/30 ainda regido por uma legislação já há muito revogada (mesmo considerando a extensão de optar pela legislação anterior de abril/23 para dezembro/23).

Bom, digressão feita, voltemos à questão dessa “ultratividade” das leis 8.666/93, 10.520/02 e 12.462/11 (e, na prática, estão sendo agraciadas com a ultratividade a lei 8.666/93 por seu caráter geral e a lei do pregão, pois o RDC não é um instrumento utilizado em larga escala nos municípios) por parte dos municípios fazendo uma linha do tempo (extraída das considerações dos decretos municipais aqui já mencionados) que nos levou ao atual cenário.

De início, em 2021 a lei federal 14.133/21 estabeleceu normais gerais de licitações e contratos administrativos revogando a lei federal 8.666/93, a lei federal 10.520/02 e a lei federal 12.462/11.

Mais à frente, houve a caducidade da MP 1.167, de 31/3/23, que alterava a redação do inciso II do art. 193 da lei federal 14.133, de 1/4/21.

Pouco depois, a lei complementar federal 198, de 28/6/23, estabeleceu nova redação para o inciso II do art. 193 da lei federal 14.133, de 1/4/21, mantendo a previsão de perda de vigência das leis 8.666/93, 10.520/02 e 12.462/11, em 30/12/23.

Ao fim e ao cabo, o regime de transição estabelecido no art. 191 combinados com o art. 193, ambos da lei 14.133/21, findou em 29/12/23, último dia útil de vigência do regime anterior.

E o que estabelecia esse regime de transição da Nova Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos? Bem seus arts. 191 e 193, inciso II, ao estabelecer o prazo para se operar a revogação das leis 8.666/93, 10.520/02 e 12.462/11, a norma facultou à Administração, nesse interregno de transição entre os regramentos jurídicos, licitar ou contratar diretamente de acordo com seu texto ou de acordo com a lei antecedente e normas correlatas até então vigentes.

E é este o cenário posto.

No mais, na esfera federal, tivemos o parecer 0006/22/CNLCA/CGU/AGU que concluiu inexistir óbice legal para que a “opção por licitar” pelo “regime licitatório anterior” fosse feita até o dia 31/3/23, por meio de expressa “manifestação pela autoridade competente, ainda na fase preparatória”.

E, ainda na esfera federal, o acórdão 507/23 do plenário do TCU firmou o seguinte entendimento: “9.2.1. os processos licitatórios e os de contratação direta nos quais houve a ‘opção por licitar ou contratar’ pelo regime antigo (lei 8.666/93, lei 10.520/02 e arts. 1º a 47-A da lei 12.462/11) até a data de 31/3/23 poderão ter seus procedimentos continuados com fulcro na legislação pretérita, desde que a publicação do Edital seja materializada até 31/12/23; 9.2.2. os processos que não se enquadrarem nas diretrizes estabelecidas no subitem anterior deverão observar com exclusividade os comandos contidos na lei 14.133/21; 9.2.3. a expressão legal ‘opção por licitar ou contratar’ contempla a manifestação pela autoridade competente que opte expressamente pela aplicação do regime licitatório anterior (lei 8.666/93, lei 10.520/02 e lei 12.462/11), ainda na fase interna, em processo administrativo já instaurado”.

Em que pese tanto o parecer 0006/22/CNLCA/CGU/AGU como o acórdão 507/23 terem sido mencionados nas considerações de vários dos decretos municipais citados em linhas anteriores como fundamento para permitir a publicação, em 2024, de editais de licitação ainda regidos pelas leis 8.666/93, 10.520/02 e 12.462/11, dando a entender que houve uma espécie de adesão ao entendimento federal, aparentemente os municípios que abraçaram a ultratividade do antigo regime de licitações e contratos por meio de normas infralegais ignoraram o teor do comunicado 12/23 da Secretaria de Gestão e Inovação publicado em 26/12/23 que deixou claro que “os processos licitatórios que tenham os editais publicados no D.O.U até 29/12/23, sob a égide das leis 8.666/93, 10.520/02, e dos arts. 1º a 47-A da lei 12.462/11, inclusive as licitações para registro de preços (decreto 7.892/13), permanecem por elas regidas, bem como os contratos respectivos e seus aditamentos durante toda a sua vigência, ou outro instrumento hábil, nos termos do art. 62 da lei 8.666/93”.

Assim, no âmbito do Sistema de Compras do Governo Federal, haja vista o teor do comunicado 12/23 da Secretaria de Gestão e Inovação, os órgãos e entidades do Sistema de Serviços Gerais - Sisg, inclusive os não-Sisg e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios beneficiários de transferências voluntárias, só há um prazo para que ocorra a publicação dos instrumentos convocatórios de certames que serão regidos pela legislação que restou revogada pela lei 14.133/21: 29/12/23.

Já os decretos municipais 6.058/23 de Nova Esperança/PR; 15.000/23 de Blumenau/SC; 21/23 de Inhapi/AL; 022/23 de Brejo Santo/CE; 25.410/23 de Teresina/PI; 38.051/23 de Salvador/BA; 061/23 de Bodocó/PE; 073/23 de Flora Rica/SP; 102/23 de Pilar/AL; 255/23 de Toritama/PE; 291/23 de Campo Novo do Parecis/MT e 407/23 de Juazeirinho/PB (e diversos outros que certamente adotaram solução símile, vez que as redações de tais decretos muitas vezes parece padronizada) adotaram diversos prazos no ano de 2024 para permitir a publicação de editais regidos pela legislação do antigo marco legal das licitações e contratos.

Bom, que fique claro: não nos parece ser juridicamente viável a prorrogação - viabilizada por atos praticados em 2024 - da vigência da lei 8.666/93 e das leis do pregão e do RDC (que compõem todas um regime legal já revogado) por meio de normas infralegais.

E, muito embora careça de maiores fundamentações, esse é, na prática, o entendimento adotado pelo TCE/SP a partir da publicação em 26/2/24 do comunicado GP 04/24, pois ali se deixou consignado ser “vedada a prorrogação da vigência da lei 8.666/93, salvo nos casos em que o certame ou aviso de contratação direta tenha sido publicado até 30/12/23,consoante autoriza o artigo 191 combinado com o inciso II do artigo 193 da lei 14.133/21”.

Mas o comunicado GP 04/24 nem de longe põe uma pedra sobre o tema aqui em debate.

Primeiramente, por óbvio, o comunicado GP 04/24 só vai afetar os jurisdicionados do TCE/SP.

Em segundo lugar, sequer sabemos se os jurisdicionados do TCE/SP não irão se insurgir contra o comunicado GP 04/24.

E isso seria possível?

Veja, nos casos aqui relatados, a ultratividade das normas revogadas pela Nova Lei Geral de Licitações e Contratos foi veiculada por meio de decretos ao passo que, o controle de constitucionalidade por parte dos Tribunais de Contas (a súmula 347 do STF estabelece que “o Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do poder público”) condiciona-se – nos termos do que restou decidido pelo Supremo no MS 25.888/DF - à existência de jurisprudência do STF sobre a matéria.

Mas, como para o STF (vide ADIs 4.176, 2.413, 2.862 e outras), “um decreto regulamentar, constituindo-se, nitidamente, em um ato normativo secundário” não pode “ser objeto de controle concentrado de constitucionalidade, restando, unicamente, o controle de constitucionalidade da lei por ele regulamentada ou, ainda, o controle de legalidade do próprio decreto”, o exercício de um controle de constitucionalidade por parte dos Tribunais de Contas sobre os decretos aqui mencionados e seus congêneres - por estar condicionado à existência de jurisprudência do STF sobre a matéria – restaria prejudicado.

Mas, sendo tais decretos em última análise atos administrativos, poderiam os Tribunais de Contas sustarem a sua execução com base no art. 71, X da CF/88? Provavelmente. Mas isso é um debate que, até a publicação do presente artigo está restrito ao TCE/SP, não se sabendo se a questão da ultratividade da lei 8.666/93 será enfrentada por outros Tribunais de Contas ou se será levada ao Judiciário.

O fato é que – pelo que está posto hoje - o antigo marco legal das licitações, cuja principal norma é a lei 8.666/93, seguirá, seja de forma legítima ou ilegítima, surtindo efeitos por muito tempo após a revogação.

Aldem Johnston Barbosa Araújo
Advogado em Mello Pimentel Advocacia. Membro da Comissão de Direito à Infraestrutura da OAB/PE. Especialista em Direito Público.

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