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Integridade na Administração Pública: Entre a expectativa e a realidade

Administração busca governança e integridade em relações público-privadas. Governança pública envolve legitimidade, eficiência e accountability. Programa de integridade visa prevenir corrupção e garantir ética. Decreto 9.203/17 e 11.529/23 estabelecem diretrizes.

6/3/2024

A busca da governança e da integridade nas relações público-privadas integra a pauta da Administração Pública nos cenários internacional e nacional.

A “Governança pública” compreende a busca por instrumentos de maior legitimidade (ex.: participação na formulação da decisão administrativa), eficiência (ex.: planejamento e controle de resultados) e accountability (ex.: controle social e institucional) por parte dos reguladores.1 De acordo com o art. 2º, I, do decreto 9.203/17, a governança é o “conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a gestão, com vistas à condução de políticas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade”.

Já a programa de integridade, na forma do art. 3º do decreto 11.529/23, é o “conjunto de princípios, normas, procedimentos e mecanismos de prevenção, detecção e remediação de práticas de corrupção e fraude, de irregularidades, ilícitos e outros desvios éticos e de conduta, de violação ou desrespeito a direitos, valores e princípios que impactem a confiança, a credibilidade e a reputação institucional” (art. 3º).

Não obstante as diferenças técnicas entre governança e integridade, é possível afirmar a interdependência desses conceitos.

O estudo da governança e da integridade nas relações público-privadas está intimamente relacionado com a ética na gestão pública. Sem governança e integridade, escancara-se o caminho para corrupção que, infelizmente, representa um desafio histórico no Brasil.

Com efeito, a corrupção é inimiga da República, uma vez que significa o uso privado da coisa pública, quando a característica básica do republicanismo é a busca pelo “bem comum”, com a distinção entre os espaços público e privado.2

Entender o patrimonialismo é essencial para abordar as complexidades da governança e da integridade nas relações público-privadas. Esta noção histórica desempenha um papel crucial ao evidenciar como as práticas administrativas podem ser moldadas por tradições e relações pessoais, muitas vezes em detrimento dos princípios de transparência, meritocracia e eficiência. Ao destacar a persistência dessas práticas, nos deparamos com o desafio de reformular a cultura organizacional e as estruturas de poder dentro das instituições públicas. A superação desse modelo patrimonialista é, portanto, um passo fundamental para instaurar uma administração pública que verdadeiramente valorize a integridade e a governança, combatendo a corrupção de maneira efetiva e promovendo uma gestão ética e democrática.

De fato, existe uma dificuldade histórica por parte dos agentes públicos na distinção entre os domínios público e privado. Na tradição histórica brasileira, os denominados “funcionários patrimoniais” tratam a gestão pública como assunto particular e são escolhidos por meio de critérios subjetivos, laços de amizade, não importando as suas capacidades ou mérito.3

O caráter patrimonialista do Estado relaciona-se, em grande medida, à “dominação tradicional” mencionada por Max Weber, que é marcada pela obediência à pessoa indicada pela tradição em detrimento da obediência aos estatutos, bem como pela presença, nos quadros administrativos, de pessoas tradicionalmente ligadas à pessoa dominante, por vínculos pessoais, que não possuem formação profissional adequada.4

A corrupção, historicamente diagnosticada no Brasil, pode ser explicada pela caracterização do brasileiro como “homem cordial”, expressão utilizada pelo escritor Ribeiro Couto e citada por Sérgio Buarque de Holanda em sua obra clássica Raízes do Brasil. A “cordialidade”, no caso, não é utilizada como sinônimo de “boas maneiras” ou civilidade, mas, sim, para se referir à tendência do povo brasileiro em afastar o formalismo e o convencionalismo social em suas relações.5

A preocupação crescente com o combate à corrupção integra a agenda dos países que buscam implementar instrumentos de governança capazes de garantirem o denominado “direito à boa administração”. Os padrões éticos, a eficiência administrativa e o controle da gestão pública são características indissociáveis da gestão pública pós-moderna.

Não por outra razão, a OCDE considera que a integridade pública pressupõe o alinhamento consistente e a adesão de valores, princípios e normas éticas comuns para sustentar e priorizar o interesse público sobre os interesses privados no setor público, devendo ser observadas as seguintes recomendações para sua implementação:6 1) demonstrar compromisso nos mais altos níveis políticos e administrativos do setor público para aumentar a integridade pública e reduzir a corrupção; 2) esclarecer responsabilidades institucionais em todo o setor público para fortalecer a eficácia do sistema de integridade pública; 3) desenvolver uma abordagem estratégica para o setor público que se baseie em evidências e vise atenuar os riscos de integridade pública; 4) definir altos padrões de conduta para funcionários públicos; 5) promover uma cultura de integridade pública à toda a sociedade, em parceria com o setor privado, com a sociedade civil e com os indivíduos; 6) investir em liderança de integridade para demonstrar o compromisso da organização do setor público com a integridade; 7) promover um setor público profissional, baseado em mérito, dedicado aos valores do serviço público e à boa governança; 8) fornecer informações suficientes, treinamento, orientação e conselhos em tempo hábil para que os funcionários públicos apliquem padrões de integridade pública no local de trabalho; 9) apoiar uma cultura organizacional aberta no setor público que responda a preocupações de integridade; 10) aplicar um quadro de gestão de riscos e controle interno para salvaguardar a integridade nas organizações do setor público; 11) certificar que os mecanismos de cumprimento proporcionem respostas adequadas a todas as violações suspeitas de padrões de integridade pública por parte de funcionários públicos e todos os outros envolvidos nas violações; 12) reforçar o papel da fiscalização e controle externo no sistema de integridade pública; e 13) incentivar a transparência e o envolvimento das partes interessadas em todas as etapas do processo político e do ciclo político para promover a prestação de contas e o interesse público.

Atualmente, a importância da governança e da integridade em processos de contratação pública se justifica pela urgência em elevar os padrões da gestão pública. Este aprimoramento visa mitigar riscos de integridade que podem surgir em licitações e outras modalidades de contratação, além de enfrentar a profunda crise ética que marcou profundamente o cenário nacional nos últimos anos.

Em consequência, a legislação tem sido alterada com o intuito de impor ou fomentar a cultura da governança e da integridade nas relações público-privadas, com destaque, sem caráter exaustivo, para os seguintes diplomas normativos: a) lei 10.257/11 (Lei de Acesso à Informação – LAI): intensifica a publicidade e a cultura da transparência na Administração Pública, com a efetivação do direito constitucional à informação e desenvolvimento do controle social; b) lei 12.846/13 (lei anticorrupção): prevê a integridade como parâmetro sancionador (art. 7º, VIII) e o seu regulamento (decreto 11.129/22) prevê a adoção, a aplicação ou o aperfeiçoamento de programa de integridade, como cláusula do acordo de leniência (art. 45, IV);7 c) lei 13.303/16 (lei das estatais): exige a governança nas empresas estatais (art. 6º) e a elaboração de Código de Conduta e Integridade e a outras regras de boa prática de governança corporativa (art. 9º, § 1º); d) lei 13.848/19 (lei das agências reguladoras): impõe a elaboração de programas de integridade nas agências reguladoras (art. 3º, § 3º); e) lei 8.429/1992, alterada pela lei 14.1230/2021 (lei de improbidade administrativa): permite a previsão de mecanismos e procedimentos internos de integridade no âmbito do acordo de não persecução civil – ANPC (Art. 17-B, § 6º); f) lei 13.709/18 (LGPD): os sistemas utilizados para o tratamento de dados pessoais devem ser estruturados de forma a atender aos requisitos de segurança, aos padrões de boas práticas e de governança (art. 49); regras de Boas Práticas e de Governança (arts. 50 e 51); parâmetro sancionador: adoção de política de boas práticas e governança (art. 53, § 1º, IX); g) lei 14.133/21 (Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos): indica a alta administração como responsável pela governança das contratações (art. 11, parágrafo único), a possibilidade de fixação de matriz de riscos (art. 22); impõe a criação de programa de integridade para contratos de grande vulto (art. 25, § 4º); incentiva a criação de programas de integridade nas demais contratações (art. 60, IV; 156, § 1º, V; 163, parágrafo único); prevê as linhas de defesa (art. 169); etc.

No campo regulamentar, é possível destacar, exemplificativamente, dois atos normativos voltados à governança e à integridade no âmbito da Administração Pública Federal: a) decreto 9.203/17: dispõe sobre a política de governança e indica, no art. 3º, os princípios da governança pública (capacidade de resposta; integridade; confiabilidade; melhoria regulatória; prestação de contas e responsabilidade; e transparência); e b) decreto 11.529/23: instituiu o Sistema de Integridade, Transparência e Acesso à Informação da Administração Pública Federal (Sitai) e a Política de Transparência e Acesso à Informação da Administração Pública Federal, com a revogação do decreto 10.756/21, que tratava do Sistema de Integridade Pública do Poder Executivo Federal.

Não bastam leis para mudar a cultura institucional e corporativa. Afinal de contas, “as leis abundam nos Estados mais corruptos” (Tácito). Aliás, igualmente não basta a criação de programas de integridade no campo formal (“de fachada”) que não sejam efetivos. É preciso mudar a cultura das organizações públicas e privadas, com a indução de comportamentos éticos.

De nossa parte, apresentamos alguns parâmetros para maior efetividade da integridade nas relações público-privadas:

  1. Integridade como via de mão dupla: a concretização da governança e da integridade nas relações público-privadas é uma via de mão dupla, já que pressupõe a atuação coordenada dos atores estatais e da iniciativa privada, além da necessária mudança de cultura organizacional, destacando-se a necessidade de estruturação e implementação de procedimentos e práticas que assegurem a integridade na Administração Pública e nas entidades da iniciativa privada;
  2. Normas impositivas e indutivas: é imprescindível a elaboração de normas que exijam ou induzam a instituição de estruturas de governa e programas de integridade, com destaque para a utilização preferencial de normas indutivas (sanções premiais), em substituição a um modelo rígido e coercitivo, que, em vez de impor determinados padrões, procura induzir o comportamento dos agentes envolvidos em direção a práticas socialmente desejáveis, lançando mão de mecanismos de coordenação estratégica de interesses e cooperação voluntária, o que pode melhor atender aos objetivos de eficiência, racionalidade e legitimidade da atividade estatal.
  3. Institucionalização da governança e da integridade na Administração Pública e nas entidades privadas: é fundamental a instituição de órgãos dotados pessoal capacitado para monitorar o cumprimento das regras de governança e de integridade, de forma a potencializar o alcance das ações implementadas (exs.: Comitê Interministerial de Governança – CIG, previsto no decreto 9.203/17; Sistema de Integridade, Transparência e Acesso à Informação da Administração Pública Federal – Sitai, indicado no decreto 11.529/23; Secretaria Municipal de Integridade, Transparência e Proteção de Dados – SMIT, no Município do Rio de Janeiro).
  4. Evitar integridade apenas formal (compliance fake ou integridade de fachada), intensificação da transparência, fiscalização e responsabilização: a simples estruturação de programas de integridade, que ficam no papel, e criação de órgãos voltados à integridade, sem  a necessária independência e qualificação, não se revelam soluções suficiente para implementação efetiva de uma cultura de integridade, o que demonstra a relevância das certificações (exs: ISO 19600 - Sistema de Gestão de Compliance e ISO 37001 - Sistemas de gestão antissuborno), com a intensificação da transparência, da fiscalização (institucional e social) e da responsabilização efetiva dos autores de desvios éticos;
  5. Capacitação dos atores públicos e privados que atuam, direta ou indiretamente: revela-se fundamental a contínua capacitação de servidores, empregados e gestores, públicos e privados, com o objetivo de garantir qualificação, atualização e a internalização da cultura a integridade, por meio de ações de sensibilização e solidificação do compromisso desses agentes em relação ao comportamento íntegro.

Naturalmente, não se muda a cultura do dia para noite. Aristóteles, em sua obra Ética a Nicômaco, afirmava que a virtude moral requer o hábito de praticar ações virtuosas. É preciso, portanto, praticar aquilo que a legislação vem estabelecendo nos últimos anos no Brasil, criando-se o hábito da governança e da integridade. 

Nesse contexto, a modernização da legislação, a institucionalização de mecanismos de controle (preventivo e repressivo), a transparência pública, a educação, entre outros fatores, representam importantes avanços no processo de implementação da governança pública.

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1 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Novo perfil da regulação estatal: Administração Pública de resultados e análise de impacto regulatório, Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 184.

2 RIBEIRO, Renato Janine. A república. 2. ed. São Paulo: Publifolha, 2008. p. 41-52.

3 No diagnóstico preciso de Sérgio Buarque de Holanda: “No Brasil, pode dizer-se que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal”. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 146.

4 WEBER, Max. Economia e sociedade. 4. ed. Brasília: UNB, 2004. v. 1, p. 139-167.

5 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 146 e 205.

6 OCDE, Recomendação do Conselho da OCDE sobre integridade pública. Disponível em: https://www.oecd.org/gov/ethics/integrity-recommendation-brazilian-portuguese.pdf. Acesso em: 27/02/2024.

7 A definição do programa de integridade é apresentada pelo art. 56 do Decreto 11.129/2022: “Art. 56.  Para fins do disposto neste Decreto, programa de integridade consiste, no âmbito de uma pessoa jurídica, no conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes, com objetivo de: I - prevenir, detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública, nacional ou estrangeira; e II - fomentar e manter uma cultura de integridade no ambiente organizacional.”

Rafael Carvalho Rezende Oliveira
Visiting Scholar rpela Fordham University School of Law-New York. Pós-Doutor pela UERJ. Doutor em Direito pela UVA-RJ. Mestre em Direito pela PUC-RJ. Professor do Ibmec. Procurador do Município do RJ.

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