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A indefinível, impraticável e perigosa função social do contrato na reforma do Código Civil - Agravada reincidência de um erro

Proposta de reforma no Código Civil mantém liberdade contratual com limites na função social. Parágrafo novo prevê nulidade automática para cláusulas que a violem, gerando incerteza e críticas.

6/3/2024

Introdução

Na redação da relatoria-geral da comissão incumbida da proposta de reforma do Código Civil manteve-se, no art. 421, a determinação de que a liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato, tal como se encontra na redação atual. Mas, o parágrafo segundo introduz uma grave novidade, determinando a nulidade de pleno direito da cláusula contratual que violar a função social do contrato. Essa é uma opção extremamente perigosa, pois acende mais uma brasa na fogueira da incerteza e segurança que deve revestir a celebração dos contratos, na verdade, de todo o sistema jurídico.

E tudo tem a ver com um movimento de parte da doutrina e da jurisprudência no sentido de fazer letra morta o instituto da autonomia privada ou tornar seus limites tão esgarçados que será como se não mais existisse tal direito.

Já nos manifestamos algumas vezes sobre essa questão que foi aprofundada no item próprio do Vol. 4 de nossa coleção de Direito Comercial, “Teoria Geral do Contrato – Fundamentos da Teoria Geral do Contrato” (Ed. Dialética, São Paulo, 2022), em coautoria com Rachel Sztajn, itens 7.7.

1. A origem do instituto no direito comparado. Breves palavras

Pouca coisa há fundamentalmente de novo tanto sob o sol, quanto no direito. Contra essa tendência socializante e instrumental do contrato, nascida no seio do fascismo – fonte nada lisonjeira para se dizer o mínimo -, sabe-se que Gino Gorla foi, ao seu tempo, um dos importantes autores que a contrariaram, havendo apontado alguns sérios equívocos a seu respeito.

Escrevendo sobre o tema a partir da experiência italiana do pós-guerra, o autor citado preocupava-se ao mesmo tempo com as exigências de certeza e de se praticar justiça em relação aos particulares na realização de negócios privados. Assim sendo, considerada a atuação das partes em um ordenamento jurídico reconhecedor da autonomia privada, está presente o interesse público não apenas voltado para um escopo genérico da manutenção da paz e da ordem social, mas também o resguardo específico do reconhecimento das promessas e do valor da palavra dada. Na visão daquele autor, deve o Estado evitar que os conflitos nascidos em negócios privados venham a ser compostos fora dos tribunais de maneira perigosa para o ordenamento jurídico. Paralelamente, no âmbito do Judiciário, as soluções determinadas não devem levar à desconfiança quanto à certeza e à justiça das relações privadas.1 Este é precisamente um grande problema gerado pela inclusão da função social do contrato no CC/02, notadamente em face da ampla interpretação que se observa na doutrina e na prática.

Em relação ao cenário acima descrito, Gino Gorla relatava uma visão então relativamente recente, no sentido de que as relações privadas teriam passado a se submeter ao crivo da função social, como novo requisito limitador do consentimento, sancionador do contrato quando atendida. Este requisito representaria a causa em sentido próprio do contrato, ou seja, aquele quid que, além da promessa ou do valor da palavra dada, teria passado a justificar a sanção jurídica. O autor em tela não concordava com essa visão, indicando diversos equívocos a seu respeito, tendo em vista a gravidade do acatamento de tal doutrina, especialmente em relação aos contratos inominados. Tendo em vista este cenário, resulta ser imprescindível examinar a situação do instituto em tela no direito italiano, para o fim de fazer-se um confronto com o direito brasileiro.

Segundo Gino Gorla2:

  1. Estabeleceu-se uma confusão, facilitada pela ambiguidade da expressão função social, entre a função social como utilidade social de um contrato e a função social como função típica de um contrato na sociedade. Neste último sentido, trata-se da função que serve para determinar o tipo e os caracteres típicos de um dado contrato. No caso da compra e venda seria representada pela função típica de escambo entre dinheiro e bens, chamada então de causa.
  2. Nasceu uma aversão em relação aos contratos atípicos que venham a ser considerados fúteis ou improdutivos em vista de uma alegação eventual de ausência de função social, gerando-se insegurança.3
  3. Ocorreu o surgimento de uma inversão a respeito do interesse a ser preferencialmente tutelado entre credor e devedor. Neste caso, o credor merecerá a tutela jurídica se e somente enquanto sua pretensão corresponder ao atendimento da função social do contrato.
  4. Deu-se a conceituação da autonomia privada como um poder de criar obrigações no âmbito da vontade do promitente. Tendo em conta que não se admite na doutrina em questão a existência de um poder situado além da fronteira da vontade como mecanismo da criação de efeitos jurídicos, concluiu-se que tal poder não pode ser reconhecido em relação às pessoas que contratem por motivos fúteis. O que são motivos fúteis quando alguém assume obrigação/obrigações, perante terceiro?
  5. A presença de uma tendência desarrazoada a generalizações e abstrações, aplicando-se indistintamente princípios relacionados a outros negócios jurídicos que não o contrato, tais como certas disposições de última vontade, as fundações, a constituição de pessoas jurídicas, etc. Em relação a alguns destes casos, poderia, talvez, justificar-se a busca de uma função social, mas não de forma tão generalizada.

Gino Gorla mostrou em seguida que, a par das distorções conceituais apresentadas, o direito possui remédios aptos para a regulação das objeções apresentadas: (i) o requisito da existência de um interesse merecedor de tutela reduz-se, quando não atendido, ao estabelecimento de uma cláusula penal quando o interesse à prestação não seja avaliável em dinheiro; (ii) os contratos nulos por defeito de função ou de utilidade social reduzem-se aos casos de contratos socialmente danosos, e, portanto, ilícitos ou proibidos pela lei, considerando-se que o conceito de contrato socialmente danoso é diverso dos contratos fúteis ou inúteis, etc.

2. O instituto no direito brasileiro

Desde que o CC/02 foi promulgado tem havido inúmeras manifestações sobre o entendimento e alcance do seu art. 421, onde está dito que a “liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. Ela seria, portanto, um dos pressupostos do instituto, questão a ser desvendada a seguir4.

Constata-se inicialmente que, no plano dos direitos e garantias fundamentais, a liberdade de contratar está presente no art. 5.º, II, da CF, como expressão do exercício da autonomia privada. Quanto à atividade empresarial, ela também é exercida sob o fundamento da proteção constitucional da livre iniciativa, ao lado do princípio da função social da propriedade, presentes no art. 170, caput e inc. II da Magna Carta. Conforme se verifica facilmente, a Constituição Federal não guarda no seu bojo qualquer disposição diretamente relacionada à função social do contrato, como se o só fato de se reconhecer a faculdade de as pessoas negociarem entre si tenha função social.

No campo do direito societário, por outro lado, o art. 116, parágrafo único da lei 6.404, de 15.12.76 faz referência à função social da sociedade por ações, cuja realização é um dos deveres do controlador.

Nestes termos, aparentemente o legislador do CC/02 teria criado uma obrigação de atendimento à função social do contrato em geral sem estar baseado em comando constitucional direto, tanto quanto a lei 6.404/76 também o teria feito, ao estabelecer a função social da companhia.

À primeira vista, portanto, a liberdade de contratar, teria passado a submeter-se à função social que o instituto do contrato deveria exercer, mostrando-se, assim, como um dos seus pressupostos. Caberia indagar: por que, desde a mais remota antiguidade, as sociedades humanas, criaram o(s) contrato(s) se não sua função social, ou seja, estabelecer relações socialmente aprovadas pelas comunidades? Esta constatação não é minimamente pacífica. Até mesmo porque, de início, o próprio conceito de função social do contrato tem sido apresentado pela doutrina como de identificação e alcance extremamente duvidosos. Em relação ao mesmo conceito ainda, dado que não houve tempo suficiente para a sedimentação da jurisprudência sobre o instituto após ter sido introduzido no CC/02, não se pode avaliar com segurança como o Judiciário aplicará o instituto vertente. O tema foi tratado de forma introdutória no item 1.2.2 do vol. 2 da obra de autoria de quem ora discute a proposta de reforma do CCB, cabendo agora desenvolvê-lo com maior extensão e profundidade.

Percebe-se claramente que a exigência do atendimento da função social do contrato em geral e, pelas sociedades por ações em particular, corresponde a uma restrição de direitos e garantias individuais estabelecidos na Constituição Federal. Desta forma, entendemos que somente a própria Magna Carta poderia, quanto a eles, estabelecer restrições condicionantes. Assim sendo, a fim de que a função social do contrato e a função social da companhia possam ser consideradas como exigências revestidas de constitucionalidade, na falta de outro gancho expresso que as ligue à Constituição, obrigatoriamente tais condições somente podem estar vinculadas ao instituto da propriedade, este sim com fundamento constitucional. Isto significa dizer, como tese ora proposta, que quanto ao contrato em geral (em cujo âmbito estão aninhadas as diversas espécies de sociedades, inclusive a companhia, por meio de lei específica), na medida em que sua utilização venha a afetar o direito de propriedade, o contrato deverá ser celebrado para o atendimento de sua função social. Fora deste parâmetro, as partes estariam impedidas de contratar. Este aspecto merecerá desdobramento mais profundo logo adiante. Aliás, como a propriedade circularia entre diferentes sujeitos, sem contrato? Como alguém poderia, sem contrato, ter ainda que temporariamente, direito de uso de um bem pertencente a outrem?

Sabe-se que, em grande parte das vezes, já resultando elas mesmas de um contrato plurilateral, precisamente uma das formas pela qual as sociedades se constituem (não se abrange, aqui as MEI) para exercerem sua atividade é, justamente, a celebração de contratos é basilar. 

A nosso ver, quando se dá início a uma atividade empresarial, para tanto sendo necessário utilizar-se dos bens de produção, há circulação e criação de riqueza nova, com a distribuição econômica dos resultados positivos entre seus empregados, fornecedores, etc. E, como se sabe, caracterizando-se a atividade empresarial como de risco e tendo em conta, portanto, a possibilidade de se perder o que foi investido, deve-se concluir que o empresário e a sociedade fazem atuar a tão mencionada função social da propriedade pela própria natureza e dinamicidade da empresa que põem em funcionamento e, por via de consequência, a função social do contrato.

Voltando os olhos para o passado, na busca de subsídios para o estudo desta questão, verifica-se que a função social do contrato não era ignorada pelos autores brasileiros antes do advento do CC/02. Orlando Gomes, por exemplo, já dela havia tratado como parte de uma obra mais abrangente.5 É interessante observar que o autor citado se referia à dimensão ideológica que impulsiona, disfarça ou distorce a função de certas regras, precisamente residindo nesta apreciação um dos grandes problemas da novidade introduzida pelo art. 421 do CC/02, como seja, uma visão voltada para a funcionalização do instituto ao arrepio dos seus verdadeiros fundamentos.

Não pode deixar-se de reconhecer que não há direito isento de ideologia, conforme demonstrou o mesmo Orlando Gomes, tomada essa como o “protótipo dos valores e princípios da sociedade”. Mas se uma ideologia, no caso a liberal, permitiu construir o contrato fundado no princípio da autonomia da vontade (que mais tarde no tempo evoluiu para a autonomia privada), nem por isto a interpretação da lei que o regula pode ser realizada ideologicamente (na acepção política do termo) e de forma gratuita. É precisamente neste sentido de que ele afirmou que o contrato foi e continuaria a revestir-se de uma “dimensão exclusivamente jurídica – uma construção – para jurisformizar e jurisdicizar operações econômicas”.

Ao final do seu estudo Orlando Gomes chegou à conclusão de que o fenômeno da contratação passou por uma crise que causou a modificação da sua função tradicional, havendo deixado de ser mero instrumento do poder de autodeterminação privada, para se tornar em instrumento que também deve realizar os interesses da coletividade, tendo vindo a adquirir, assim, uma função social.

Isto não quer dizer que Orlando Gomes tenha defendido uma aplicação intensamente aberta do conceito, como se ele fosse uma chave mestra apta a corrigir prontamente situações contratuais de desigualdade jurídica. Mesmo porque dificilmente aquele autor poderia ter imaginado no seu tempo que uma modificação futura e de profundidade no campo do contrato viesse a condicionar a liberdade de sua utilização ao atendimento da aludida função social.

Orlando Gomes ensinava, ainda, que o contrato, depois da Segunda Guerra Mundial, passou a criar riqueza, a par de sua função tradicional de levar à transferência da propriedade de bens, devendo ter-se em conta que a nova realidade estava marcada pela emersão da empresa, que trouxe o contrato para o centro de propulsão da riqueza. Assim, o contrato havia se tornado instrumento hábil à formalização das operações econômicas necessárias ou convenientes à grande empresa. Estes são, desde já adiantamos, aspectos indubitavelmente econômicos, sociais e positivos do instituto, regularmente verificados diante de contratos licitamente celebrados.

3. A função regular e a função social dos contratos

Havendo o legislador estabelecido uma qualidade especial do contrato com a introdução do adjetivo social, isso significaria dizer que o instituto teria uma função regular ou comum, ao lado de outra, representada pelo aspecto social.  E, evidentemente, na sua realização, haveria contratos que poderiam não apresentar a mencionada função e, portanto, serem rechaçados sob a luz do CC/02.

Sabe-se que a partir do CC italiano têm-se reconhecido que os contratos se prestam a constituir, regular ou extinguir relações jurídicas de natureza patrimonial. Estas seriam as suas funções regulares, de um ponto de vista estrutural. Para se aceitar a possibilidade da existência de uma função social, ela deveria estar necessariamente situada no plano interno, tendo sido até o momento praticamente impossível decifrar qual teria sido a verdadeira intenção do legislador.

Considerando-se imprescindível a patrimonialidade das relações jurídicas inerentes ao contrato, evidentemente ele se presta à circulação da riqueza, seja do ponto de vista microeconômico (contratos celebrados no varejo entre particulares), seja sob o ângulo macroeconômico, este realizado por meio da atividade dos agentes profissionais, ou seja, da empresa em sentido amplo. Ora, como instrumento diretamente voltado para a circulação da riqueza, fazendo os interessados uso dos contratos típicos e dos contratos atípicos, não se tem como afirmar que eventualmente eles não cumpram sempre uma função social típica ou tornada típica, neste último caso quanto aos contratos inominados, a não ser que o legislador tenha se colocado no campo dos motivos eventualmente ilícitos de uma ou de ambas as partes, levando a questão para o lado subjetivo.

A esse respeito pergunta Rachel Sztajn se, havendo prescrito a função social como limite para a liberdade de contratar, teria o legislador desdenhado do fato de que fazer a riqueza circular, de forma estável e previsível, poderia ser um fator da perda de bem-estar social. Ou, ainda, se a limitação à liberdade de contratar impuser o afastamento das alocações de bens pelo critério do ótimo de Pareto, poder-se-ia atingir até mesmo o modelo de distribuição de Kaldor-Hicks.6-7

De outra parte, segundo a mesma autora, o atendimento à função social do contrato poderia determinar no caso das empresas a elevação dos seus custos de transação mediante a adoção pelo empresário de complexas estratégias defensivas.

Diante deste quadro, Rachel Sztajn demonstra que deve o intérprete procurar encontrar uma inteligência prestável para a função social do contrato, passando a solução por considerá-la uma (mera) figura de retórica, vazia de conteúdo, neutra no que concerne ao exercício da empresa. Ou, inversamente, uma criação portadora de efeitos perniciosos os quais restringem ou reduzem o exercício da autonomia privada e, desta forma, trazem um impacto negativo sobre a organização da empresa, com redução do bem-estar geral.

4. O conceito de função social do contrato

Para começar, a pergunta essencial a se fazer é saber o que é a tal função social do contrato. No dispositivo em análise a comissão não apresentou uma definição desse instituto que possa orientar o seu intérprete, especialmente os magistrados que decidirão pela anulação do contrato no seu descumprimento. Na verdade trata-se de missão verdadeiramente impossível no plano jurídico, dada a sua ambiguidade própria.

Constatamos na nossa obra acima referida que a doutrina não apresenta um conceito genericamente aceito no seu meio e os tribunais vêm usando a função social do contrato de forma aleatória e não sistemática, raramente de forma isolada, mas quase sempre colocada ao lado de outro princípio igualmente aberto. Essa característica faz nascer sensível insegurança em relação aos agentes econômicos, que não identificam um critério sistemático na aplicação daquele instituto para que possam regular os seus interesses de forma adequada. 

Além disto, conforme foi demonstrado no estudo dos acórdãos reportados, é possível notar uma preocupação do STJ de proteger a parte considerada mais fraca – o que, em princípio, pode ter fundamento na assimetria informacional -  além do contexto legal que foi construído para tal finalidade, não somente no campo do direito do consumidor, mas de forma geral. Essa visão teleológica deturpa o sentido da proteção legal, muitas vezes afrontando a Constituição Federal.

Veja-se abaixo uma decisão do STJ, verdadeiro paradigma nessa matéria, que teve como relatora a Min. Nancy Andrighi:

REsp 803.481/GO (2005/0205857-0)

Relatora: min. Nancy Andrighi

Recorrente: Cargill Agrícola S/A

Advogado: Adilio Evangelista Carneiro e outro

Recorrido: Luiz Ferreira Lima

Advogado: Renato Mendonça Santos

Ementa:

Direito Civil e Agrário. Compra e venda de safra futura a preço certo. Alteração do valor do produto no mercado. Circunstância previsível. Onerosidade excessiva. Inexistência. Violação aos princípios da função social do contrato, boa-fé objetiva e probidade. Inexistência.

Recurso especial conhecido e provido.”

Na decisão acima o STJ simplesmente declarou que a função social do contrato é aplicável naturalmente nos contratos de compra e venda de soja, baseada no ajudada pelo princípio da boa-fé objetiva. Há outros aspectos lamentáveis encontrados nesse julgado, mais uma contribuição certeira para o ambiente de insegurança e de incerteza jurídica dentro do qual vive o direito brasileiro. Mas vamos nos ater ao objeto especifico deste texto.

Veja-se que a função social do contrato recai praticamente sobre todos os seus tipos, como aconteceu em relação a diversas outras decisões do mesmo STJ, como ao contrato de seguro de vida; de seguro de carro; de aluguel de loja e de estacionamento em shopping center; de alienação fiduciária; na falência; etc, tendo se ajuntado nesse embroglio a aplicação do juridicamente inverossímil diálogo entre as fontes.8

A conclusão é que não existe em qualquer lugar uma definição juridicamente válida que, em abstrato, possa ser utilizada pelos operadores do direito no exercício de sua atividade, que seja apta a lhe conceder o benefício inteiramente obrigatório da segurança e da certeza nas relações contratuais.

5. O novo problema mais grave na proposta apresentada

Trata-se da previsão da anulação do contrato se não atender a sua função social. Por tudo o que foi exposto nas linhas anteriores, é facilmente perceptível o enorme risco para a segurança e a certeza dos contratos, cuja anulação ficará nas mãos dos juízes encarregados de dirimir pendências a seu respeito, ausente de forma completamente absoluta um norte seguro para com base nele chegar a uma conclusão juridicamente adequada. Isso pode, ademais, ensejar oportunismos em que uma das partes venha a buscar ganhos “eticamente imorais” em face da outra. 

É interessante observar que a nova figura claramente contraria diretamente o disposto no art. 421, §, 1º onde se estabelece o princípio da intervenção mínima e o da excepcionalidade da revisão contratual outra disposição da mesma proposta no sentido do equilíbrio contratual reconhecida quando celebrados entre empresas, em relação aos quais é reconhecida a paridade e a simetria entre as partes. Neste caso jamais será lícito à parte perdedora reivindicar a nulidade do contrato fundada na violação da função social, pois ela estaria agindo contra a boa-fé que a orientou na celebração daquele negócio.

Na verdade, cada contrato, tanto típico quanto atípico, licitamente celebrado, já exerce naturalmente a sua função social por permitir a circulação da riqueza entre as partes diretamente e em toda a economia na sua somatória, gerando empregos e oportunidades ou seja, criando bem-estar social. 

Dessa forma, a janela que se abre é apta ao exercício do mais execrável oportunismo, não podendo o legislador entregar essa arma de destruição em massa. 

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1 Il Contratto, Ed. A. Giuffrè, Milão, 1954, p. 199 e ss.

2 Il Contratto, ob cit., p. 206 e ss.

3 E, perguntamos, que legitimidade teria o juiz em um Estado democrático de direito para julgar o que seria um contrato fútil ou improdutivo, ao qual faltasse preencher a sua função social? Caberia ao magistrado impor às partes que o negócio jurídico entre elas celebrado gerasse externalidades positivas para terceiros?

4 Vejam-se os comentários introdutórios a este tema no item 1.5.2 da nossa obra, relacionados ao estudo das mudanças feitas nesse e em outros dispositivos do CCC/2002 pela MP 881, de 30.04.2019.

5 “Novos Temas de Direito Civil”, Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 101-109. 

6 “Função Social do Contrato e Direito de Empresa”, RDM  139/31.

7 Esse modelo de eficiência se funda na distribuição dos benefícios gerados entre os que ganham e os que perdem, de maneira a que, no final, todos os membros da comunidade venham a se encontrar em uma situação melhor do que a anterior.

8 Veja-se a respeito a discussão que estes autores desenvolveram no mencionado item 7.7 da nossa obra.

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GOMES, Orlando - Novos Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro: Forense, 1983GORLA, Gino - Il contratto – Problemi fondamentali trattati com il metodo comparativo e casistico. Milão: A. Giuffrè, 1954. t. I. 

SZTAJN, Rachel - Função Social do Contrato e Direito de Empresa, RDM  139/31.

VERCOSA, Haroldo Malheiros Duclerc e SZTAJN, Rachel - “Teoria Geral do Contrato – Fundamentos da Teoria Geral do Contrato” (Ed. Dialética, São Paulo, 2022).

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.

Rachel Sztajn
Advogada em São Paulo. Professora sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.

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