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Do bem de família da lei 8.009/90 no CPC/15

Na 8ª Turma do TRF-2, há precedentes que afirmam a revogação tácita da lei 8.009/90, argumentando regulamentação no CPC/15 ou no Código Civil/02.

4/3/2024

Há, na 8ª turma Especializada do TRF-2 – que parece ser posição única no Brasil –, precedentes colegiados que, de forma clara, asseveram a ocorrência da revogação tácita da lei 8.009/90, posto que a matéria estaria regulada em legislação superveniente, qual seja: no CPC/15; ou na proteção do bem de família dos arts. 1.711 a 1.722, do Código Civil/02. Segue a ementa do recente precedente, de 2023: 

ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO FISCAL. RESSARCIMENTO AO ERÁRIO. IMPENHORABILIDADE. BEM DE FAMÍLIA. ART. 833 DO CPC/2015. REVOGAÇÃO TÁCITA DA LEI 8.009/90. RECURSO PROVIDO.

  1. Agravo de instrumento interposto contra decisão que, nos autos de execução fiscal, reconheceu a impenhorabilidade de imóvel do coexecutado, nos termos do art. 1º e 5º da lei 8.009/90.
  2. A questão devolvida ao Tribunal no âmbito deste recurso diz respeito ao imóvel objeto de constrição na execução fiscal originária, de propriedade da agravante, que alega a impenhorabilidade do bem, por ser destinado à sua residência e de sua família, tratando-se de bem de família.
  3. Merece ser ressaltada a existência de entendimento doutrinário respeitável - conforme, por exemplo, o apresentado pelo prof. Leonardo Greco em palestra realizada na EMARF - Escola da Magistratura Regional Federal da 2ª Região, em 27/10/17, o atual CPC/15, ao dispor sobre as impenhorabilidades, em seu art. 833, incisos I a XII, não incluiu, dentre essas hipóteses, os imóveis ou os chamados bens de família - que se entenderia, apenas, como sendo aqueles voluntariamente definidos e registrados como tal, na forma dos arts. 1.711 a 1.722, CC, o que não ocorre no caso dos autos, havendo, na medida em que a nova lei processual civil regula totalmente a matéria das impenhorabilidades, a revogação tácita da lei 8.009/90.
  4. A própria noção de bem de família, anteriormente contida na lei 8.009/90, já vinha sendo relativizada, para permitir a penhora do imóvel - ainda que fosse a única residência dos executados -, no caso de execução de débitos diretamente decorrentes do próprio imóvel, como, por exemplo, as despesas de condomínio ou débitos oriundos de financiamento habitacional destinado à aquisição do imóvel. Assim, reconhecida a revogação tácita da Lei 8.009/90 pela nova norma processual, atualmente em vigor, são inaplicáveis, por conseguinte, os dispositivos da lei revogada mencionados pela embargante em suas razões. Precedentes desta 8ª turma Especializada.
  5. Outrossim, restou comprovado nos autos que o coexecutado, além de ser proprietário do imóvel objeto do presente agravo, é meeiro da fração de sua esposa em outros dois imóveis localizados no município de Cabo Frio/RJ.
  6. Agravo de instrumento provido. (TRF-2, AG 5000149-10.2023.4.02.0000, Oitava turma Especializada, rel. desembargador federal MARCELO PEREIRA DA SILVA, Data de decisão: 31/8/23).

O fundamento adotado nas decisões1 tem como lastro o entendimento apresentado pelo prof. Leonardo Greco, em palestra na EMARF, que defenderia que a revogação tácita da lei 8.009/90.

Ora, com todas as vênias, a alegação de que a proteção de bem de família não mais existiria, ante a revogação tácita da lei 8.009/90, já que o CPC teria tratado sobre as impenhorabilidades nos incisos I a XII, do art. 833, é uma incongruência lógica.

Adotando-se a ratio dos precedentes ementados, o sofá, a TV e a mesa do Devedor não seriam penhoráveis, mas o imóvel que ele reside (onde estão essas coisas impenhoráveis) sim. Suas roupas não poderiam ser objeto de constrição, tampouco seu armário, mas o seu lar poderia lhe ser retirado judicialmente para pagamento de qualquer dívida.

É a certeza de que, com esse racional, o Devedor moraria embaixo da ponte, aos menos com os seus bens que guarneciam (e não mais guarnecem) a casa. 

Luiz Wambier, em seu magistral Curso Avançado de Processo Civil, tem item específico sobre a impenhorabilidade de imóvel residencial da entidade familiar, reconhecendo que:

A lei 8.009/90 instituiu a impenhorabilidade do imóvel residencial único ou de menor valor do casal ou da entidade familiar (art. 1º, caput, c/c o art. 5º). Tal impenhorabilidade abrange inclusive “o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas” (súmula 364 do STJ). (pág. 155, da 18ª Edição, de 2021)

Alexandre Câmara, notório processualista fluminense, também apresenta, em seu recente Manual de Processo Civil, capítulo sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial, aduzindo que:

Regime de impenhorabilidade distinto dos dois anteriores é o estabelecido pela lei 8.009/90 para imóvel destinado a uso residencial. (pág. 694, da 1ª Edição, de 2022)

Arakem de Assis, cujo Manual da Execução é verdadeira obra prima no Processo Civil Brasileiro, também tem item sobre a impenhorabilidade da residência familiar, qual seja:

O art. 1º, caput, da lei 8.009/90 declara impenhorável i “imóvel residencial próprio”, regra completada no respectivo parágrafo único, que alude ao “imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos”. Além disso, o art. 5º, caput, da lei 8.009/90 considera “residência um único imóvel utilizado (...) para moradia permanente”. (pág. 359, da 18ª Edição, de 2016)

O processualista Fredie Didier Jr., um dos processualistas revisores do Projeto do Novo Código de Processo Civil, reconhece em seu livro que a “lei 8.009/90 instituiu a impenhorabilidade do imóvel residencial do casal ou da entidade familiar por qualquer dívida, salvo nas exceções dos seus arts. 3º e 4º”2.

Inclusive, esse famoso autor baiano transcreve o teor do art. 5º, da lei 8.009/90, ao reconhecer que, “[p]ara os efeitos de impenhorabilidade, de que trata esta lei, 'considera-se residência um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente' (art. 5º)3".

No CPC Comentado, elaborado por Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero, quando dos comentários sobre o art. 833, do CPC, que versa sobre os bens impenhoráveis, há expresso verbete sobre a normatização incidente no bem de família, qual seja:

7. Bem de Família. A lei 8.009/90, trata da impenhorabilidade di bem de família. (...) O bem de família serve para proteção da dignidade da entidade familiar, entendida essa como “a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” (art. 226, par. 4º, CF). (pág. 788, da 1ª Edição, de 2015)

Nada é mencionado, por qualquer doutrinador, sobre a possibilidade de o CPC/2015 ter tacitamente revogado a lei 8.009/90. Nem uma palavra, uma vírgula, uma nota de rodapé ou a singela referência. Absolutamente nada!

E, ao contrário da posição da 8ª turma Especializada do TRF-2, há longo e esclarecedor precedente do STJ, que diferencia o bem de família legal (da lei. 8.009/90) do voluntário (arts. 1.711 a 1.722, do CC), ratificando, em dezembro de 2021, os requisitos da impenhorabilidade da lei. 8.009/90, verbis:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA. BEM DE FAMÍLIA LEGAL E CONVENCIONAL. COEXISTÊNCIA E PARTICULARIDADES. BEM DE FAMÍLIA LEGAL. OBRIGAÇÕES PREEXISTENTES À AQUISIÇÃO DO BEM. BEM DE FAMÍLIA CONVENCIONAL. OBRIGAÇÕES POSTERIORES À INSTITUIÇÃO.

O bem de família legal (lei 8.009/90) e o convencional (Código Civil) coexistem no ordenamento jurídico, harmoniosamente. A disciplina legal tem como instituidor o próprio Estado e volta-se para o sujeito de direito - entidade familiar -, pretendendo resguardar-lhe a dignidade por meio da proteção do imóvel que lhe sirva de residência. O bem de família convencional, decorrente da vontade do instituidor, objetiva, primordialmente, a proteção do patrimônio contra eventual execução forçada de dívidas do proprietário do bem.

O bem de família legal dispensa a realização de ato jurídico, bastando para sua formalização que o imóvel se destine à residência familiar. Por sua vez, para o voluntário, o Código Civil condiciona a validade da escolha do imóvel à formalização por escritura pública e à circunstância de que seu valor não ultrapasse 1/3 do patrimônio líquido existente no momento da afetação.

Nos termos da lei 8.009/90, para que a impenhorabilidade tenha validade, além de ser utilizado como residência pela entidade familiar, o imóvel será sempre o de menor valor, caso o beneficiário possua outros. Já na hipótese convencional, esse requisito é dispensável e o valor do imóvel é considerado apenas em relação ao patrimônio total em que inserido o bem.

Nas situações em que o sujeito possua mais de um bem imóvel em que resida, a impenhorabilidade poderá incidir sobre imóvel de maior valor caso tenha sido instituído, formalmente, como bem de família, no Registro de Imóveis (art. 1.711, CC/02) ou, caso não haja instituição voluntária formal, automaticamente, a impenhorabilidade recairá sobre o imóvel de menor valor (art. 5°, parágrafo único, da lei 8.009/90).

Para o bem de família instituído nos moldes da lei 8.009/90, a proteção conferida pelo instituto alcançará todas as obrigações do devedor indistintamente, ainda que o imóvel tenha sido adquirido no curso de uma demanda executiva. Por sua vez, a impenhorabilidade convencional é relativa, uma vez que o imóvel apenas estará protegido da execução por dívidas subsequentes à sua constituição, não servindo às obrigações existentes no momento de seu gravame.

Recurso especial não provido. (grifos acrescidos)

(REsp 1.792.265/SP, relatado pelo ministro Luis Felipe Salomão, da 4ª turma do STJ, julgado em 14/12/21) 

Dessa forma, não há qualquer razoabilidade jurídica, saindo do padrão decisório e da ratio da doutrina especializada, a lógica dos precedentes da 8ª turma Especializada do TRF-2.

Não houve qualquer alteração nos regimes protetivos de bem de família, destinado à moradia do devedor e, eventualmente (cfr. súmula 364, do STJ), de sua família, ainda que alugados (cfr. Súmula 486, do STJ), seja por força da proteção legal (da lei. 8.009/90), seja por manifestação de vontade (arts. 1.711 a 1.722, do CC).

Logo, em que pese a posição divergente da 8ª turma Especializada do TRF-2 (fruto de três julgados relatados pelo mesmo magistrado), é fato que, não obstante os imóveis voluntariamente instituídos como bem de família (regime legal do Código Civil), o único bem imóvel de um Devedor também tem a proteção conferida pela lei 8.009/90, que subsistiria de maneira coincidente e simultânea com a proteção dos arts. 1.711 a 1.722, do CC, e, nessa extensão, seria capaz de preservar o bem da penhora de dívidas constituídas anteriormente à instituição voluntária. 

Assim, conclui-se que não há, com a devida vênia, revogação tácita da lei que dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família, mas sim coexistência entre normas que não conflitam entre si:  a lei 8.009/90 está em ampla e irrestrita vigência, mesmo após o CPC de 2015, sendo fundamental diploma que coexiste com o atual código de ritos e com a proteção do bem de família voluntário dos arts. 1.711 a 1.722, do CC.

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1 Convém asseverar que as 3 (três) decisões são oriundas de uma única turma e foram produzidas a partir da decisão de um único julgador.

2 Curso de Direito Processual Civil – Volume 5, da 13ª Edição, de 2023, pag. 895.

3 Curso de Direito Processual Civil – Volume 5, da 13ª Edição, de 2023, pag. 895.

Pedro Linhares Della Nina
Advogado e Professor da Universidade Candido Mendes/RJ, mestre em Ciências Jurídicas pelo UAL-Lisboa, pós-graduado em Direito Empresarial e em Litigation, ambos pela FGV-Rio de Janeiro.

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