Há, na 8ª turma Especializada do TRF-2 – que parece ser posição única no Brasil –, precedentes colegiados que, de forma clara, asseveram a ocorrência da revogação tácita da lei 8.009/90, posto que a matéria estaria regulada em legislação superveniente, qual seja: no CPC/15; ou na proteção do bem de família dos arts. 1.711 a 1.722, do Código Civil/02. Segue a ementa do recente precedente, de 2023:
ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO FISCAL. RESSARCIMENTO AO ERÁRIO. IMPENHORABILIDADE. BEM DE FAMÍLIA. ART. 833 DO CPC/2015. REVOGAÇÃO TÁCITA DA LEI 8.009/90. RECURSO PROVIDO.
- Agravo de instrumento interposto contra decisão que, nos autos de execução fiscal, reconheceu a impenhorabilidade de imóvel do coexecutado, nos termos do art. 1º e 5º da lei 8.009/90.
- A questão devolvida ao Tribunal no âmbito deste recurso diz respeito ao imóvel objeto de constrição na execução fiscal originária, de propriedade da agravante, que alega a impenhorabilidade do bem, por ser destinado à sua residência e de sua família, tratando-se de bem de família.
- Merece ser ressaltada a existência de entendimento doutrinário respeitável - conforme, por exemplo, o apresentado pelo prof. Leonardo Greco em palestra realizada na EMARF - Escola da Magistratura Regional Federal da 2ª Região, em 27/10/17, o atual CPC/15, ao dispor sobre as impenhorabilidades, em seu art. 833, incisos I a XII, não incluiu, dentre essas hipóteses, os imóveis ou os chamados bens de família - que se entenderia, apenas, como sendo aqueles voluntariamente definidos e registrados como tal, na forma dos arts. 1.711 a 1.722, CC, o que não ocorre no caso dos autos, havendo, na medida em que a nova lei processual civil regula totalmente a matéria das impenhorabilidades, a revogação tácita da lei 8.009/90.
- A própria noção de bem de família, anteriormente contida na lei 8.009/90, já vinha sendo relativizada, para permitir a penhora do imóvel - ainda que fosse a única residência dos executados -, no caso de execução de débitos diretamente decorrentes do próprio imóvel, como, por exemplo, as despesas de condomínio ou débitos oriundos de financiamento habitacional destinado à aquisição do imóvel. Assim, reconhecida a revogação tácita da Lei 8.009/90 pela nova norma processual, atualmente em vigor, são inaplicáveis, por conseguinte, os dispositivos da lei revogada mencionados pela embargante em suas razões. Precedentes desta 8ª turma Especializada.
- Outrossim, restou comprovado nos autos que o coexecutado, além de ser proprietário do imóvel objeto do presente agravo, é meeiro da fração de sua esposa em outros dois imóveis localizados no município de Cabo Frio/RJ.
- Agravo de instrumento provido. (TRF-2, AG 5000149-10.2023.4.02.0000, Oitava turma Especializada, rel. desembargador federal MARCELO PEREIRA DA SILVA, Data de decisão: 31/8/23).
O fundamento adotado nas decisões1 tem como lastro o entendimento apresentado pelo prof. Leonardo Greco, em palestra na EMARF, que defenderia que a revogação tácita da lei 8.009/90.
Ora, com todas as vênias, a alegação de que a proteção de bem de família não mais existiria, ante a revogação tácita da lei 8.009/90, já que o CPC teria tratado sobre as impenhorabilidades nos incisos I a XII, do art. 833, é uma incongruência lógica.
Adotando-se a ratio dos precedentes ementados, o sofá, a TV e a mesa do Devedor não seriam penhoráveis, mas o imóvel que ele reside (onde estão essas coisas impenhoráveis) sim. Suas roupas não poderiam ser objeto de constrição, tampouco seu armário, mas o seu lar poderia lhe ser retirado judicialmente para pagamento de qualquer dívida.
É a certeza de que, com esse racional, o Devedor moraria embaixo da ponte, aos menos com os seus bens que guarneciam (e não mais guarnecem) a casa.
Luiz Wambier, em seu magistral Curso Avançado de Processo Civil, tem item específico sobre a impenhorabilidade de imóvel residencial da entidade familiar, reconhecendo que:
A lei 8.009/90 instituiu a impenhorabilidade do imóvel residencial único ou de menor valor do casal ou da entidade familiar (art. 1º, caput, c/c o art. 5º). Tal impenhorabilidade abrange inclusive “o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas” (súmula 364 do STJ). (pág. 155, da 18ª Edição, de 2021)
Alexandre Câmara, notório processualista fluminense, também apresenta, em seu recente Manual de Processo Civil, capítulo sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial, aduzindo que:
Regime de impenhorabilidade distinto dos dois anteriores é o estabelecido pela lei 8.009/90 para imóvel destinado a uso residencial. (pág. 694, da 1ª Edição, de 2022)
Arakem de Assis, cujo Manual da Execução é verdadeira obra prima no Processo Civil Brasileiro, também tem item sobre a impenhorabilidade da residência familiar, qual seja:
O art. 1º, caput, da lei 8.009/90 declara impenhorável i “imóvel residencial próprio”, regra completada no respectivo parágrafo único, que alude ao “imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos”. Além disso, o art. 5º, caput, da lei 8.009/90 considera “residência um único imóvel utilizado (...) para moradia permanente”. (pág. 359, da 18ª Edição, de 2016)
O processualista Fredie Didier Jr., um dos processualistas revisores do Projeto do Novo Código de Processo Civil, reconhece em seu livro que a “lei 8.009/90 instituiu a impenhorabilidade do imóvel residencial do casal ou da entidade familiar por qualquer dívida, salvo nas exceções dos seus arts. 3º e 4º”2.
Inclusive, esse famoso autor baiano transcreve o teor do art. 5º, da lei 8.009/90, ao reconhecer que, “[p]ara os efeitos de impenhorabilidade, de que trata esta lei, 'considera-se residência um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente' (art. 5º)3".
No CPC Comentado, elaborado por Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero, quando dos comentários sobre o art. 833, do CPC, que versa sobre os bens impenhoráveis, há expresso verbete sobre a normatização incidente no bem de família, qual seja:
7. Bem de Família. A lei 8.009/90, trata da impenhorabilidade di bem de família. (...) O bem de família serve para proteção da dignidade da entidade familiar, entendida essa como “a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” (art. 226, par. 4º, CF). (pág. 788, da 1ª Edição, de 2015)
Nada é mencionado, por qualquer doutrinador, sobre a possibilidade de o CPC/2015 ter tacitamente revogado a lei 8.009/90. Nem uma palavra, uma vírgula, uma nota de rodapé ou a singela referência. Absolutamente nada!
E, ao contrário da posição da 8ª turma Especializada do TRF-2, há longo e esclarecedor precedente do STJ, que diferencia o bem de família legal (da lei. 8.009/90) do voluntário (arts. 1.711 a 1.722, do CC), ratificando, em dezembro de 2021, os requisitos da impenhorabilidade da lei. 8.009/90, verbis:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA. BEM DE FAMÍLIA LEGAL E CONVENCIONAL. COEXISTÊNCIA E PARTICULARIDADES. BEM DE FAMÍLIA LEGAL. OBRIGAÇÕES PREEXISTENTES À AQUISIÇÃO DO BEM. BEM DE FAMÍLIA CONVENCIONAL. OBRIGAÇÕES POSTERIORES À INSTITUIÇÃO.
O bem de família legal (lei 8.009/90) e o convencional (Código Civil) coexistem no ordenamento jurídico, harmoniosamente. A disciplina legal tem como instituidor o próprio Estado e volta-se para o sujeito de direito - entidade familiar -, pretendendo resguardar-lhe a dignidade por meio da proteção do imóvel que lhe sirva de residência. O bem de família convencional, decorrente da vontade do instituidor, objetiva, primordialmente, a proteção do patrimônio contra eventual execução forçada de dívidas do proprietário do bem.
O bem de família legal dispensa a realização de ato jurídico, bastando para sua formalização que o imóvel se destine à residência familiar. Por sua vez, para o voluntário, o Código Civil condiciona a validade da escolha do imóvel à formalização por escritura pública e à circunstância de que seu valor não ultrapasse 1/3 do patrimônio líquido existente no momento da afetação.
Nos termos da lei 8.009/90, para que a impenhorabilidade tenha validade, além de ser utilizado como residência pela entidade familiar, o imóvel será sempre o de menor valor, caso o beneficiário possua outros. Já na hipótese convencional, esse requisito é dispensável e o valor do imóvel é considerado apenas em relação ao patrimônio total em que inserido o bem.
Nas situações em que o sujeito possua mais de um bem imóvel em que resida, a impenhorabilidade poderá incidir sobre imóvel de maior valor caso tenha sido instituído, formalmente, como bem de família, no Registro de Imóveis (art. 1.711, CC/02) ou, caso não haja instituição voluntária formal, automaticamente, a impenhorabilidade recairá sobre o imóvel de menor valor (art. 5°, parágrafo único, da lei 8.009/90).
Para o bem de família instituído nos moldes da lei 8.009/90, a proteção conferida pelo instituto alcançará todas as obrigações do devedor indistintamente, ainda que o imóvel tenha sido adquirido no curso de uma demanda executiva. Por sua vez, a impenhorabilidade convencional é relativa, uma vez que o imóvel apenas estará protegido da execução por dívidas subsequentes à sua constituição, não servindo às obrigações existentes no momento de seu gravame.
Recurso especial não provido. (grifos acrescidos)
(REsp 1.792.265/SP, relatado pelo ministro Luis Felipe Salomão, da 4ª turma do STJ, julgado em 14/12/21)
Dessa forma, não há qualquer razoabilidade jurídica, saindo do padrão decisório e da ratio da doutrina especializada, a lógica dos precedentes da 8ª turma Especializada do TRF-2.
Não houve qualquer alteração nos regimes protetivos de bem de família, destinado à moradia do devedor e, eventualmente (cfr. súmula 364, do STJ), de sua família, ainda que alugados (cfr. Súmula 486, do STJ), seja por força da proteção legal (da lei. 8.009/90), seja por manifestação de vontade (arts. 1.711 a 1.722, do CC).
Logo, em que pese a posição divergente da 8ª turma Especializada do TRF-2 (fruto de três julgados relatados pelo mesmo magistrado), é fato que, não obstante os imóveis voluntariamente instituídos como bem de família (regime legal do Código Civil), o único bem imóvel de um Devedor também tem a proteção conferida pela lei 8.009/90, que subsistiria de maneira coincidente e simultânea com a proteção dos arts. 1.711 a 1.722, do CC, e, nessa extensão, seria capaz de preservar o bem da penhora de dívidas constituídas anteriormente à instituição voluntária.
Assim, conclui-se que não há, com a devida vênia, revogação tácita da lei que dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família, mas sim coexistência entre normas que não conflitam entre si: a lei 8.009/90 está em ampla e irrestrita vigência, mesmo após o CPC de 2015, sendo fundamental diploma que coexiste com o atual código de ritos e com a proteção do bem de família voluntário dos arts. 1.711 a 1.722, do CC.
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1 Convém asseverar que as 3 (três) decisões são oriundas de uma única turma e foram produzidas a partir da decisão de um único julgador.
2 Curso de Direito Processual Civil – Volume 5, da 13ª Edição, de 2023, pag. 895.
3 Curso de Direito Processual Civil – Volume 5, da 13ª Edição, de 2023, pag. 895.