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Na fronteira entre a IA generativa e a propriedade intelectual: Notas sobre o caso DABUS na Suprema Corte britânica

Pode a inteligência artificial ser considerada "inventora" de uma patente? A resposta a essa pergunta está apenas começando a se construir.

5/3/2024

Como costuma ocorrer na relação entre direito e tecnologia, é a última que queima a largada, enquanto o direito, aos trancos, busca alcançar o novo estado da arte. Com a regulação da IA não tem sido diferente. O PL 21/20, hoje já aprovado pela Câmara dos Deputados, mas ainda pendente de apreciação pelo Senado Federal, representa um primeiro movimento legislativo brasileiro pela regulamentação de algumas aplicações da IA.

O Projeto estabelece princípios e diretrizes gerais para o desenvolvimento e a aplicação da inteligência artificial no Brasil – e a opção legislativa pelo caminho majoritariamente principiológico, ao menos nesse primeiro momento de assentamento e adequação, vem sendo celebrada por boa parcela da doutrina especializada. 

Todavia, mesmo com a aprovação do Projeto, ainda haverá importantes lacunas no Direito brasileiro, dentre as quais se pode destacar a relação entre a IA e a propriedade intelectual.

A propriedade intelectual é gênero do qual são espécies a propriedade industrial e os direitos autorais. Em ambas as espécies, propriedade industrial e direito do autor, o emprego da inteligência artificial generativa tem nos forçado a reimaginar alguns dos dogmas que fundavam, até muito pouco tempo, esse campo do direito. 

O conceito de “criações do espírito”, utilizado no art. 7º da lei federal 9.610/98 para definir obras intelectuais passíveis de proteção pelo direito do autor, é um deles. A lei positivou que o traço distintivo das obras intelectuais é serem elas fruto do espírito criativo, o que se justificava numa época em que não se imaginavam invenções provenientes do emprego de inteligências não humanas.

Por sua vez, a categoria da propriedade industrial traz consigo seu próprio conjunto de desafios diante da chamada IA generativa. De acordo com a lei federal 9.279/96, há três requisitos básicos para que uma invenção possa ser patenteada: novidade, atividade inventiva e aplicação industrial (art. 8°). 

Está intrínseco ao conceito de “atividade inventiva” que a invenção cuja patente se pretende obter não pode decorrer do estado geral da técnica. Em outras palavras, não se pode patentear aquilo que é decorrência óbvia ou evidente do conhecimento socialmente acumulado sobre determinado tema, em determinado momento histórico.

Há quem defenda, como decorrência dessa limitação legal, que o emprego disseminado da inteligência artificial generativa elevará as balizas do que se pode considerar efetivamente “inventivo”. Se, atualmente, o parâmetro da obviedade/inventividade se baseia na capacidade inventiva humana, o uso massivo da IA para a criação de resultados patenteáveis poderia significar que, com o desenvolvimento da tecnologia, mesmo de uma inteligência artificial seria exigível um “insight” acima da média das demais inteligências artificiais generativas existentes1.

A decisão da Suprema Corte britânica

Devido ao ineditismo do debate, parlamentos e cortes ao redor do mundo ainda estão iniciando a construção de entendimentos sobre os temas localizados na interseção entre a capacidade da inteligência artificial generativa e o direito de propriedade intelectual. Cada novo passo, mesmo em direito estrangeiro, deve atrair a atenção da comunidade jurídica e pode servir de inspiração para o direito doméstico ou, quando menos, fonte de debate. 

Nesse sentido, vale mencionar que, em 2023, identificaram-se importantes episódios da corrida jurídica no campo da inteligência artificial, como a promulgação do tão aguardado AI Act da União Europeia, primeira lei do mundo a tratar abrangentemente da regulação dessa tecnologia2.

Outro exemplo, ainda mais recente, é de decisão da Suprema Corte do Reino Unido, no sentido de que uma inteligência artificial não poderia figurar como inventora de patentes, uma vez que, segundo a lei britânica, apenas pessoas físicas podem receber essa caracterização3. A decisão tem sido reputada histórica, por representar pronunciamento jurisdicional pioneiro, a nível mundial, por um órgão de cúpula do Poder Judiciário.

A demanda foi proposta pelo cientista Stephen Thaler, depois de o departamento de propriedade intelectual do Reino Unido (United Kingdom Property Office – UKIPO) ter negado a possibilidade de uma IA denominada DABUS figurar como “inventora” em dois pedidos de patente. Thaler era o criador e proprietário da DABUS, mas as duas invenções (um novo recipiente para comidas e bebidas e um novo beacon de luz para atrair atenção em situações de emergência) teriam decorrido exclusivamente da atuação da DABUS, sem qualquer participação humana. Aliás, de acordo com as informações disponíveis sobre o caso, o time de cientistas por trás da DABUS nem sequer tinha expertise nas áreas de conhecimento relacionadas às duas invenções.

Analisando a matéria, a Suprema Corte britânica manteve as duas decisões proferidas nas instâncias inferiores, reafirmando a deferência ao texto legal, segundo o qual apenas uma pessoa física poderia ser inventora. A Corte não enfrentou o tema na perspectiva do dever-ser. Limitou-se a aplicar a literalidade da legislação vigente no Reino Unido e deixou de se posicionar sobre a conveniência de, diante dos avanços tecnológicos, o conceito legal de inventor ser ampliado para possibilitar a inclusão da IA generativa.

A restrição a que apenas pessoas naturais figurem como inventoras, para fins de concessão de patentes, é elemento comum a diversas jurisdições. No mesmo sentido da lei britânica (Patents Act de 1977) encontram-se a legislação dos EUA (35 U.S.C. §100[f]), a Convenção Europeia de Patentes (Regra 19[1])4 e a lei brasileira de Propriedade Industrial (lei 9.279/96), segundo a qual “o inventor será nomeado e qualificado, podendo requerer a não divulgação de sua nomeação” (art. 6º, §4º). A lei brasileira também imputa ao inventor determinadas obrigações e reponsabilidades, algo que, ao menos em princípio, seria incompatível com incluir uma IA nessa categoria.

Vale destacar, ainda, que o criador da DABUS, Stephen Thaler, também havia submetido pedido similar de patente ao órgão responsável nos EUA (United States Patent and Trademark Office), nomeando a sua IA como inventora. O requerimento foi negado pela mesma razão5.

Perspectivas para invenções não diretamente humanas

É possível antever que discussão semelhante a essa poderá surgir em cortes brasileiras e exigirá uma resposta do nosso Judiciário e de nossos legisladores. Não se pode perder de vista, nessa matéria, que uma das principais preocupações esboçadas pela doutrina com o não reconhecimento da patenteabilidade de inovações produzidas por IA é a redução no incentivo do desenvolvimento dessa tecnologia para finalidades inventivas, a médio ou longo prazo.

Por outro lado, ainda há muitos questionamentos a serem enfrentados antes que uma nova regulamentação se proponha a delimitar cabalmente as fronteiras entre a propriedade intelectual e novas tecnologias. Seria o criador da IA aquele a ocupar a posição de inventor, ainda que ele não tenha tido inferência direta na criação que suas linhas de código desenvolveram “por conta própria”? Será inventor o usuário da IA, que lhe tenha fornecido os comandos (prompts) que culminaram na criação? Seria desejável atribuir capacidade inventiva, em sentido técnico, à inteligência artificial – que, ao fim e ao cabo, nada mais é do que um conjunto complexo de linhas de código? 

A decisão britânica no Caso DABUS está longe de representar a palavra derradeira sobre o tema; é, na verdade, uma das primeiras. Por mais que, em muitos países, a legislação vigente seja clara (aliás, de maneira muito mais literal do que se identifica na lei brasileira) no que se refere à identidade entre “inventor” e “pessoa natural”, a possibilidade de invenções não diretamente humanas impõe o debate sobre a ressignificação de conceitos que, até então, pautavam pacificamente a descrição legal do processo inventivo. A atenção aos comportamentos do legislador e de tribunais estrangeiros poderá fornecer importantes parâmetros para, sem perder de vista as particularidades do ordenamento nacional, desenharem-se soluções, no Brasil, para as questões derivadas do desenvolvimento tecnológico, compartilhadas pelos aplicadores do direito independentemente de fronteiras territoriais.

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1 ABBOT, Ryan. The Reasonable Robot: Artificial intelligence and the law. Cambridge University Press: Cambridge, 2020, p. 102.

2 EUROPEAN PARLIAMENT. EU AI Act: first regulation on artificial intelligence. 8 jun 2023. Disponível em: EU AI Act: first regulation on artificial intelligence | News | European Parliament (europa.eu) EU AI Act: first regulation on artificial intelligence | News | European Parliament (europa.eu). Acesso em 4.1.2023.

3 TOBIN, Sam. IA não pode ser “inventora” de patentes, decide Suprema Corte britânica. CNN.

4 São membros da Organização Europeia de Patentes os seguintes Estados: Albânia, Áustria, Bélgica, Bulgária, Suíça, Chipre, República Tcheca, Alemanha, Dinamarca, Estônia, Espanha, Finlândia, França, Reino Unido, Grécia, Croácia, Hungria, Irlanda, Islândia, Itália, Liechtenstein, Lituânia, Luxemburgo, Letônia, Mônaco, Macedônia do Norte, Malta, Países Baixos, Noruega, Polônia, Portugal, Romênia, Sérvia, Suécia, Eslovênia, Eslováquia, San Marino e Turquia. Disponível em: Member states of the European Patent Organisation | Epo.org. Acesso em 4 jan 2023.

5 Vide 16524350_22apr2020.pdf (uspto.gov). Acesso em 4 jan 2023.

Bernardo Salgado
Sócio no Terra, Tavares, Ferrari, Schenk, Elias Rosa. Professor de Direito Civil do Instituto de Direito da PUC-Rio. Mestre em Direito Civil pela UERJ.

Mateus Reis
Advogado do escritório - Terra Tavares Advogados

Amanda Chami
Advogada no Terra, Tavares, Ferrari, Schenk, Elias Rosa. Mestranda em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio.

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