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Transações imobiliárias com a utilização de criptoativos

O uso de criptoativos em transações imobiliárias no Brasil apresenta um cenário promissor, mas complexo, marcado por desafios regulatórios e a necessidade de segurança jurídica. A tecnologia blockchain oferece eficiência e inclusão financeira, embora a adoção seja limitada pela volatilidade e pelo acesso restrito.

26/2/2024

Embora o conceito de criptoativos tenha ganhado terreno no cenário financeiro global, sua aplicação em transações imobiliárias no Brasil ainda enfrenta um caminho complexo e repleto de desafios. A novidade e a volatilidade destes ativos, combinadas com um ambiente regulatório em evolução, tornam sua adoção no mercado imobiliário brasileiro um processo cauteloso, marcado tanto por seu potencial disruptivo quanto pela necessidade de uma compreensão profunda das implicações legais e práticas. 

A tecnologia blockchain, ao servir de base para transações, redefiniu os paradigmas tradicionais do sistema de pagamentos. Essa inovação não apenas simplifica o processo de transações, eliminando intermediários e consequentemente reduzindo custos, mas também acelera significativamente o tempo necessário para concluir negócios. No entanto, sua aplicação vai além da eficiência operacional, abrindo novas avenidas para a inclusão financeira e a participação global.

Por isso, o uso de criptoativos emerge como uma ferramenta poderosa nas transações imobiliárias, especialmente em um contexto internacional. Sua natureza descentralizada oferece uma ponte direta entre investidores estrangeiros e o mercado imobiliário brasileiro. Contudo, é importante reconhecer que, atualmente, esse mercado ainda não é universalmente acessível, limitando-se a um público com conhecimento técnico e acesso a infraestrutura digital adequada.

Apesar dessas limitações, o potencial de uso dos criptoativos no setor imobiliário é inegável. Afinal, permite transações transfronteiriças mais ágeis e menos onerosas, atraindo um espectro mais amplo de investidores internacionais ao mercado brasileiro. Essa expansão da base de investidores pode impulsionar significativamente o setor, promovendo uma maior diversificação e estabilidade.

No entanto, para que esse potencial seja plenamente realizado, são necessários avanços em termos de regulamentação, educação financeira e infraestrutura tecnológica. A democratização do acesso às criptomoedas e a sua integração segura no mercado imobiliário exigem um esforço conjunto de reguladores, profissionais do setor e comunidade tecnológica, visando estabelecer um ambiente de negócios transparente, seguro e inclusivo.

No que diz respeito a regulamentação, pode-se afirmar que atualmente não há qualquer proibição quanto ao uso criptoativos, seja para investimento ou para realizar qualquer tipo de transação, porém há algumas especificidades que os interessados precisam observar para legitimar o negócio, bem como evitar problemas relacionados a legalidade a operação realizada.

Muito embora sejam também denominados como criptomoedas, preferimos a conceituação como criptoativos, uma vez que o Banco Central,  não caracteriza os como moeda eletrônica de que trata a lei 12.865/13, sob a justificativa de que não são referenciadas em reais ou em outras moedas estabelecidas por governos soberanos.1

Portanto, ao se fazer uma transação utilizando-se de criptoativos, não há propriamente um pagamento, mas sim uma permuta em que o comprador transfere estes ativos enquanto o vendedor transfere o imóvel, o que em tese, também afasta a nulidade prevista no artigo 318 do Código Civil Brasileiro que proíbe transações em moedas estrangeiras.2

Neste contexto, a primeira exigência é que o valor do negócio seja convertido para moeda corrente nacional, o que no mundo das criptomoedas é denominado como moeda FIAT, ou seja, aquela que é emitida por um governo, sem ser apoiada por uma commodity física, como ouro ou prata, mas sim pela confiança pelo seu emissor, no caso do Brasil o Banco Central.

A utilização de criptoativos em transações encontra-se em um cenário de crescente interesse e debate, especialmente devido à recente regulamentação implementada pela lei 14.478/22. Essa lei estabelece diretrizes para a prestação de serviços de ativos virtuais, incluindo criptoativos, mas não aborda diretamente a questão do pagamento de transações imobiliárias ou a necessidade de sua conversão para o Real no momento do pagamento.

Embora, não haja legislação específica que trate da conversão de criptomoedas para o Real brasileiro, as regulamentações em vigor focam mais em estabelecer um marco legal para o funcionamento das corretoras de criptoativos e em coibir crimes como estelionato e lavagem de dinheiro associados ao uso de ativos virtuais. Isso significa que, embora as transações imobiliárias utilizando criptomoedas não sejam proibidas, a falta de uma legislação específica cria uma área cinzenta em termos de sua execução e formalização.

A rigor, atualmente, não há nenhuma plataforma autorizada a negociar criptoativos no Brasil, o que demandará autorização e registro junto a CVM, inclusive para as hipóteses de emissão de tokens, que sendo conceituados como valores mobiliários, só podem ser negociados em mercados previamente autorizados, como a B3. 

Mas a dúvida que fica é quanto a legitimidade, de uma transação imobiliária entre particulares que pode ser realizada, tanto pelas corretoras, como também de forma direta, denominada como peer-to-peer, ou seja, o comprador envia diretamente para o vendedor os ativos utilizando cada um sua própria chave para registrar a transação na blockchain.

Ademais, soma-se outra questão: Poderia um intermediário (corretor de imóveis) receber sua comissão em criptoativos?

Quanto a isso reporta-se ao provimento 038/213 da Corregedoria Geral de Justiça do Rio Grande do Sul, que muito embora não seja de observância obrigatória para o restante do país, serve-nos de orientação no que diz respeito as balizas jurídicas a serem observadas.

Devem as partes expressamente reconhecer o conteúdo econômico dos criptoativos, especificando na escritura o seu valor, e que isso não representará direitos sobre o imóvel a ser permutado. Além disso, também devem declarar que ambos conteúdos econômicos (criptoaativos e o imóvel) tenham equivalência econômica.

Ressalta-se que neste Provimento há previsão expressa de que todos atos notariais e registrais serão comunicados ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF.4

De igual modo, o corretor envolvido caso tenha interesse poderá receber a contraprestação pelos serviços imobiliários em criptoativos, o que demandará contrato específico em que conterá uma permuta que envolva a prestação em troca do recebimento destes ativos.

Ao final da transação, os pagamentos de taxas e emolumentos ainda deverão observar a utilização de moeda corrente nacional, uma vez que ainda não se tem conhecimento de alguma serventia que aceite criptoativos, neste contexto.

Ressalte-se, embora ainda não haja previsão da utilização de qualquer serviço público ou de delegação a um agente privado, como são os cartórios, com a utilização de ativos que não sejam em moeda corrente nacional, já existem exemplos no mundo como em Lugano na Suiça, em que os residentes podem pagar impostos ou serviços com criptoativos, através da fatura suíça QR-Bill. 

Outro desafio a se transpor diz respeito a volatilidade dos ativos, quando precificados no mercado, o que pode ser solucionado com a utilização de stablecoins que refletem a referência de uma moeda (FIAT) como por exemplo, a Tether (USDT) e USDCoin (USDC), ambas com lastro auditáveis em dólares, o que também pode acontecer com o real brasileiro, por exemplo.

Porém o maior desafio encontra-se na segurança jurídica, uma vez que até o momento somente o Bitcoin e o Etherium se mostraram ser ativos confiáveis, enquanto os demais até hoje criados são ainda startups e por vezes enfrentam problemas de hackeamento ou mesmo golpes como ocorreu recentemente com a stablecoin UST que colapsou perdendo seu valor de forma abrupta em questão de dias.5

Mesmo diante desses desafios, existe um potencial significativo para o crescimento das transações imobiliárias com criptomoedas no Brasil. A chave para esse desenvolvimento são a criação de um marco regulatório claro e a adaptação e capacitação do mercado para aproveitar plenamente os benefícios dessa inovação, garantindo segurança e confiança para todos os envolvidos.

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1 Comunicado nº 31.379, de 16 de novembro de 2017, e Comunicado nº 25.306, de 19 de fevereiro de 2014

2 Art. 318. São nulas as convenções de pagamento em ouro ou em moeda estrangeira, bem como para compensar a diferença entre o valor desta e o da moeda nacional, excetuados os casos previstos na legislação especial.

3 https://www.tjrs.jus.br/static/2021/11/Provimento-038-2021-CGJ.pdf

4 https://br.cointelegraph.com/news/bitcoin-accepted-taxes-swiss-lugano

5 https://www.infomoney.com.br/onde-investir/coreia-do-sul-indicia-10-envolvidos-em-colapso-das-criptomoedas-terrausd-e-luna/

Rodrigo Fernandes Pereira Lima
Advogado, Sócio Fundador da PL Advocacia. LLM em Direito Empresarial pela FGV, Pós Graduado em Direito Tributário. Mestrando em Ciências Jurídicas pela Univali | University Delaware.

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