JUSTA E PRÉVIA INDENIZAÇÃO EM DINHEIRO
O inciso XXIV do artigo 5º da Constituição Federal estabelece que "a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição".
A desapropriação por utilidade pública é regulada pelo decreto-lei 3.365/41, enquanto a lei Federal 4.132/62 define os casos de desapropriação por interesse social e dispõe sobre sua aplicação. É expresso no artigo 5º da Carta Maior que, em caso de omissão, aplica-se o previsto na lei Especial, inclusive no tocante ao processo e à justa indenização devida ao desapropriado.
Todos os bens imóveis podem ser desapropriados pela União, Estados, Municípios, Distrito Federal e, mediante autorização expressa de lei ou contrato, por entidades públicas, concessionárias, entidades que exerçam funções delegadas do poder público e empresas contratadas pelo poder público para execução de obras e serviços de engenharia sob os regimes de empreitada por preço global, empreitada integral e contratação integrada1. Porém, a declaração de utilidade pública far-se-á por decreto do Presidente da República, Governador, Interventor ou Prefeito, nos termos do art. 6º da lei das desapropriações.
A desapropriação ocorre por declaração de utilidade pública ou interesse social, desde que resguardado o direito à justa e prévia indenização em dinheiro ao proprietário que sofrer o ato de império do poder público, nos termos do inc. XXIV, do art. 5º, da Constituição Federal2.
O procedimento expropriatório pode ser realizado mediante acordo ou pela via judicial3. O acordo corre quando o proprietário aceita o valor da indenização proposto pelo Poder Público (art. 10-A do decreto-lei 3.365/41), lavrando-se escritura pública de desapropriação amigável, que equivale à escritura pública de venda e compra de imóvel. Todavia, caso o proprietário não aceite o valor proposto administrativamente, o Poder Público deverá ajuizar a demanda expropriatória, resolvendo-se no processo judicial a questão indenitária.
Os autores convidam os leitores à seguinte reflexão: se o proprietário não concorda com o valor proposto para a solução amigável da desapropriação e o Poder Público ingressa com a competente ação, é razoável oferecer em juízo o mesmo valor que não foi aceito na via amigável e, mesmo assim, o Poder Judiciário conceder medida liminar para o Ente Público ingressar compulsoriamente na propriedade particular sem que ao desapropriado seja conferida oportunidade de defesa ou mesmo realizado um laudo judicial in limine litis para ser aquilatado o valor da propriedade?
Essa reflexão é crucial, pois evidencia que, nesta situação, a imissão na posse além de não ser razoável, também não é justa. No entanto, essa é a sistemática estabelecida pelo vigente §1º do artigo 15 do decreto-lei 3.365/41 e adotada pela maioria dos Tribunais Pátrios, à exceção, por exemplo, do TJ/SP, que ao longo dos anos enunciou a Súmula 304.
DECISÃO DO PLENO DO STF – TEMA 865
A sistemática legal do dispositivo acima citado resultou, ao longo de décadas, na incompatibilidade do direito à justa e prévia indenização nas expropriatórias e o pagamento da dívida pública por precatório, ambos agasalhados pela Constituição Federal de 1988.
São inúmeros os casos em que o Ente Público obteve liminarmente a posse do imóvel desapropriado com base em valor venal de referência para fins fiscais ou em meras estimativas mercadológicas, em inobservância às Normas Técnicas para avaliação de imóveis, resultando no recebimento, pelos desapropriados, de injusta indenização in limine litis, e consequentemente na crescente e impagável dívida Pública, que se ocorre por meio de precatório.
Por força do procedimento previsto no decreto-lei 3.365/41, o proprietário do imóvel desapropriado recebe do Poder Público indenização da seguinte forma: i) a oferta inicial é recebida em dinheiro no curso do processo; e ii) havendo majoração do valor ofertado para a sentença transitada em julgado, por meio de precatório, na forma do art. 100 da Constituição Federal.
Tal procedimento apresentou evidente conflito constitucional, pois, de um lado, há expressa previsão na Carta Maior de a indenização em desapropriação ser recebida em dinheiro e, de outro, o art. 100 do mesmo diploma determina que os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federais, Estaduais e Municipais sejam feitos em ordem cronológica de apresentação dos precatórios.
Esse conflito foi levado ao STF por força do julgamento do RE 922.144-MG, em que foi reconhecida a repercussão geral, e se discute se a diferença apurada entre o valor de depósito inicial e o valor efetivo da indenização final, determinada pelo juízo competente, deve ser paga mediante depósito judicial ou pela via do precatório, nos termos do art. 100 da Constituição.
No caso sub examine o município de Juiz de Fora se imitiu na posse provisória dos imóveis desapropriados em 2009 e pagou em dinheiro o valor de R$ 834.306,52. Processada a demanda e realizada a avaliação judicial dos imóveis, a ação foi julgada procedente mediante a fixação de indenização de R$ 1.717.000,00. O juízo de primeiro grau e o TJ/MG reconheceram que a diferença dos valores deveria ser paga por precatório. Ocorre que o município de Juiz de Fora está em mora com seus precatórios desde 2003.
Como bem pontuou o relator do recurso em análise, ministro Luís Roberto Barroso: “Há casos bem mais graves. No RE 834.428, rel. min. Marco Aurélio, o expropriado foi retirado de sua residência em 1972. Ali se construiu um estádio de futebol, concluído em 1975 (o Serra Dourada, em Goiás). Há como dizer que quase 45 anos após a finalização da construção que ocupa o terreno não houve, ainda, a desapropriação, mas mera imissão provisória na posse? Também lá o depósito inicial não cobria senão ínfima parte do valor do bem.”
Era imprescindível, portanto, harmonizar o princípio constitucional da justa e prévia indenização com a sistemática do precatório, mormente àqueles casos em que o Ente Público não está em dia com os precatórios.
A sistemática anterior era predatória ao cidadão e ao Estado. A desapropriação se inicia em um Governo, mas o pagamento é realizado por outro, quiçá outros. Há algo ainda mais grave, consistente nos juros compensatórios, devidos ao desapropriado à razão de 6% ao ano, incidentes sobre o valor não recebido a título de indenização, a contar da perda da posse do imóvel até o ingresso do precatório5. Muitas vezes leva décadas até que esta situação jurídica ocorra. Na prática, quem paga esta conta astronômica é a sociedade.
Assim, inúmeros cidadãos desapropriados receberam e ainda vêm recebendo sua indenização por precatório. Essa sistemática transformou a indenização da desapropriação em um calote disfarçado, frustrando o comando constitucional do art. 5º, inciso XXIV, CF.
TESE FIRMADA NO TEMA 865 DO STF
A incompatibilidade apresentada acima foi levada ao STF, que conferiu repercussão geral ao RE 922.144-MG em 2017. No entanto, somente em 19 de outubro de 2023, a Corte Excelsa deu provimento ao recurso para reconhecer a compatibilidade do regime de precatórios com a garantia da justa e prévia indenização em dinheiro na desapropriação, ressaltando, expressamente, que o Ente Público deve estar em dia com o pagamento dos precatórios:
“No caso de necessidade de complementação da indenização, ao final do processo expropriatório, deverá o pagamento ser feito mediante depósito judicial direto se o Poder Público não estiver em dia com os precatórios” (STF. Plenário. RE 922.144/MG, rel. min. Luís Roberto Barroso, julgado em 19/10/23 – Repercussão Geral – Tema 865. Informativo 1113).
Assim, o STF reconheceu a compatibilidade do regime de precatórios com a garantia da justa e prévia indenização em dinheiro na desapropriação desde que o Poder Público esteja em dia com os precatórios. Do contrário, havendo necessidade de complementação de indenização ao final do processo expropriatório, o Poder Público deverá pagar mediante depósito judicial direto.
MODULAÇÃO DOS EFEITOS DA DECISÃO
O STF modulou os efeitos da decisão para que a tese firmada no Tema 865 seja aplicada em duas hipóteses: i) nas expropriatórias ajuizadas a partir da publicação da ata da sessão do julgamento, ocorrida em 25 de outubro de 2023; e ii) para todas as ações judiciais em curso em que se discute expressamente a constitucionalidade do pagamento da complementação da indenização por meio de precatório judicial.
CONCLUSÃO
Assim, entendemos que o julgamento do RE, com repercussão geral, que firmou tese no Tema 865 e foi inserido no informativo de jurisprudência 1.113 do STF foi uma grande vitória para os cidadãos e empresas vitimados pela ação de desapropriação, para o Ente Público e a sociedade com um todo, pois os desapropriados cujas ações foram ajuizadas a partir de 25 de outubro de 2023, receberão a indenização em dinheiro e a sociedade deixará de pagar quantias bilionárias a título de juros compensatórios.
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1 Art. 3º do Decreto de Desapropriação, com a nova redação dada pela Lei nº 14.620/2023.
2 XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;
3 Art. 10. A desapropriação deverá efetivar-se mediante acordo ou intentar-se judicialmente, dentro de cinco anos, contados da data da expedição do respectivo decreto e findos os quais este caducará.
4 Súmula 30: Cabível sempre avaliação judicial prévia para imissão na posse nas desapropriações
5 ADI 2.332-DF e § 1º do art. 15-A do Dec.Lei nº 3.365/41.