Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 (CRFB/88), estabeleceu-se a possibilidade de utilização da Ação Direita de Inconstitucionalidade por Omissão - ADO, com o intuito de conter a síndrome da inefetividade das normas constitucionais1. Nessa seara, é cediço que a omissão no Brasil engloba atos gerais, abstratos e obrigatórios, com fiscalização dos poderes legislativo, executivo e judiciário. Em decorrência disso, para alguns juristas, a supressão supracitada é de cunho normativo geral e não somente legislativo, uma vez que os poderes detêm capacidades típicas e atípicas descritas constitucionalmente. Todavia apesar da importância da ADO no sistema jurídico do Brasil, sabe-se que o atingimento dos efeitos necessários estão muito aquém do desejado pelo poder constituinte originário.
Nessa linha de discussão, faz-se necessário descrever que há diferenças intrínsecas na abordagem em relação a omissões dos órgãos administrativos em relação aos outros poderes, uma vez que aqueles são obrigados a suprir a omissão em 30 dias, após a constatação da ciência. Um exemplo disso foi descrito na emblemática abordagem relativa a ADO 24/13, referente a falta da lei de defesa ao usuário de serviços públicos. Isto é, devido a relevância da matéria para o coletivo e a gravidade do quadro narrado, foi decidido monocraticamente pelo ministro do STF Dias Toffoli o prazo supracitado por medida cautelar. Todavia, iniciou-se o questionamento a respeito da repercussão em relação aos outros poderes, pois somente a ciência da autoridade omissa não teria o condão de agir coercitivamente na produção imediata da norma em xeque. Finalmente, quatro anos depois, foi editada a lei 13.460 que positivou normas básicas de participação, proteção e defesa dos direitos do usuario de serviços públicos.
Para enriquecer a discussão desta questão, faz-se mister descrever a situação ocorrida com a ADO 25, referente a PEC/41/03 (Reforma Tributária), cuja intenção era estimular a atividade econômica, racionalizando e simplificando a tributação do ICMS, dentre outros. Entretanto, tal medida trouxe decorrências deletérias para as finanças estaduais e prejuízos visíveis para a economia brasileira. Nesse diapasão, para tentar dirimir os impactos financeiros, foi preestabelecida a ADCT federalista que coadunava com a transferência de numerário da União para os Estados e para o Distrito Federal, dependendo somente da elaboração de uma Lei complementar federal para definir critérios, prazos e condições. Nesse contexto, passados treze anos, o STF positivou a ADO 25/16, fixando o prazo de doze meses para que o legislativo criasse a lei complementar supracitada. A questão debatida pelos juristas foi no sentido de que tal requisição pelo STF seria de cunho recomendatório ou mandatário. Explicando melhor, o que aconteceria a legislativo se tal normativa não fosse elaborada?
Depreende-se dessa problemática que alguns acreditam na coercitividade das medidas, mas outros pensam em delegar a competência para órgãos como o TCU, por exemplo. Segundo a ministra do STF Carmen Lucia2 “A fixação de um prazo para o parlamento suprir a omissão é um passo adiante na natureza recomendatória”. Diante desse impasse, em 2020, o Congresso Nacional editou a lei complementar 176º para compensação de perdas de arrecadação ocorridas desde 2003. Ou seja, foram dezessete anos de mora normativa, colocando em risco a ordem constitucional.
Após a exposição da ADO 24 e 25, pode-se chegar a algumas conclusões importantes: somente a ciência da autoridade ou órgão omisso não tem o condão de promover a positivação normativa desejada e a intenção de estipular o prazo razoável pelo Tribunal não possui caráter mandamental, podendo ser considerada uma recomendação. Destarte, não há sanção imediata, inferindo-se que a atividade de produção legislativa seria de cunho discricionário, em alguns casos. Outrossim, deve-se ter precaução nas resoluções de questões que se referem a competência para evitar delegações e avocações entre os poderes.
Nesse sentido, além da exposição fática da ADO, faz-se necessário contextualizar a aplicabilidade da fungibilidade entre os institutos da ADO, ADI e mandado de injunção - MI. Em relação a compatibilização entre a ADO e o MI, grande parte da doutrina concorda que não há fungibilidade, devido a primeira ser uma ação objetiva e abstrata de competência do STF e a segunda ser subjetiva com efeitos difusos interpartes. Entretanto, há divergência entre os juristas no tocante a fungibilidade entre a ADO e a ADI, uma vez que ambas as ações se referem ao controle abstrato, com competência de julgamento pelo STF, efeitos ex-tunc e vinculantes. Ou seja, visando a celeridade processual e a eficiência na produção normativa, chega-se à conclusão de que a atual jurisprudência do STF vem aceitando a fungibilidade, diante de uma aparente confusão de pedidos e inexistência de má-fé.
Para finalizar, é importante pormenorizar sobre o “Compliance Institucional”3 relacionado a ADO, pois há notória imprescindibilidade de se fazer cumprir as funções dos três poderes do Brasil de forma colaborativa. Explicando melhor, o Brasil tem a tendência de seguir o civil law, pautado no positivismo relativizado, todavia a produção normativa não consegue acompanhar as demandas diuturnas da sociedade, desencadeando insegurança jurídica e interpretações subjetivistas. Nessa toada, faz-se necessário que as autoridades abracem o ideal de “compliance”, organizando os projetos predefinidos com celeridade, eficiência e moralidade, sempre visando o equilíbrio entre os poderes.
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1 A Síndrome de Inefetividade das Normas Constitucionais refere-se, basicamente, às hipóteses em que existindo norma constitucional de eficácia limitada o Poder Público ou órgão administrativo que deva regulamentá-la, não o faz, surgindo, portanto, a omissão legal ou administrativa a qual deve ser rechaçada através de duas ações constitucionalmente previstas, quais sejam, a Ação Direita de Inconstitucionalidade por Omissão (ADIn por omissão) ou o Mandado de Injunção.
2 Cármen Lúcia Antunes Rocha (Montes Claros, 19 de abril de 1954) é uma jurista, professora e magistrada brasileira, atual ministra do Supremo Tribunal Federal (STF).
3 A palavra compliance deriva de uma expressão inglesa, que traduzida significa “em conformidade com”. O conceito de compliance aplicado, portanto, refere-se à conduta de uma organização que esteja em conformidade com parâmetros legais, com os projetos de governança e com os padrões éticos internos e externos à instituição. Cabe ressaltar que a adoção de um compliance segue o princípio de “observância da lei”. isto é, seu cumprimento é espontâneo e diferente do direito aplicado - que, neste caso, é o exercício da lei de modo obrigatório.