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Duas situações envolvendo a eventual perda de interesse processual: encerramento da licitação e do concurso público

Este texto pretende enfrentar duas situações práticas que costumeiramente ensejam reflexões quanto à eventual perda superveniente de interesse processual: encerramento de processo licitatório e de concurso público.

21/2/2024

Como é de conhecimento geral, é relativamente comum a judicialização de aspectos ligados às diversas etapas dos processos licitatórios que, dependendo do caso concreto, podem ou não ser homologados na pendência do julgamento do mérito de demanda judicial.

A questão a ser respondida é a seguinte: será que o encerramento da licitação, somado à contratação da licitante vencedora, automaticamente ocasiona a perda de interesse processual e a extinção do processo sem resolução de mérito (art. 485, VI, do CPC)?

A resposta a esta pergunta passa, a meu ver, pela análise da chamada teoria do fato consumado – objeto de Enunciado de súmula do STJ (súmula n. 613: Não se admite a aplicação da teoria do fato consumado em tema de Direito Ambiental) e de Tema de Repercussão Geral do STF (Tema 476 RERG 608.482– Tese fixada: Não é compatível com o regime constitucional de acesso aos cargos públicos a manutenção no cargo, sob fundamento de fato consumado, de candidato não aprovado que nele tomou posse em decorrência de execução provisória de medida liminar ou outro provimento judicial de natureza precária, supervenientemente revogado ou modificado).

Outra indagação interligada é a seguinte: é irreversível a situação fática decorrente da homologação do resultado da licitação, quando o objetivo da demanda judicial pendente de resolução meritória é impugnação de etapas anteriores do processo administrativo?

Duas variáveis precisam ser enfrentadas nos casos concretos: a) impetração de mandado de segurança ou outra demanda judicial após o encerramento do certame; b) encerramento deste na pendência de ação judicial. 

Em relação à primeira hipótese, parece correta a interpretação de que não há interesse processual a atacar algo que já encerrou, levando em conta que não há conduta a ser praticada pelo administrador em decorrência do atraso do interessado em fazer uso do remédio constitucional1 ou outra demanda judicial. 

De outro prisma, a resposta não deve ser necessariamente a mesma em relação à segunda variável apresentada. Existem julgados mais antigos da Corte da Cidadania que aplicavam a teoria do fato consumado em alguns casos, como se mostra na seguinte passagem: 

“Impetrado Mandado de Segurança visando a impugnar o curso de procedimento licitatório, a superveniência de conclusão do respectivo certame, posto não lograr êxito a tentativa do recorrente de paralisa-lo via deferimento de pleito liminar, conduz à extinção do writ por falta de interesse processual superveniente, em face do fato consumado. Precedentes desta Corte: RMS 17.883 - MA, desta relatoria, Primeira Turma, DJ de 14 de novembro de 2005; RMS 17.441 - RS, Relator Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Segunda Turma, DJ de 20 de março de 2006; RMS 17.128 - MG, Relatora Ministra ELIANA CALMON, Segunda Turma, DJ de 21 de fevereiro de 2005”  AgRg no REsp 726031 / MG – Rel. Min. Luiz Fux – 1ª Turma/ STJ – J. em 21/9/06 – DJ 5/10/06 p. 246.

Contudo, esta situação deve ser observada com muita cautela, tendo em vista a necessidade de diálogo com as normas fundamentais previstas na Constituição Federal e com o objeto da ação judicial.

Destarte, se a demanda judicial refere-se à suposta ilegalidade do procedimento licitatório, seu objeto litigioso ultrapassa os limites subjetivos dos litigantes e provoca a análise dos princípios da Administração Pública consagrados no art. 37 da CF/88.  Portanto, nem sempre a homologação gera a perda superveniente de interesse e a aplicação da teoria do fato consumado.

Em julgados mais recentes, o Superior Tribunal de Justiça tem se manifestado no sentido que não há a automática extinção do processo em decorrência do encerramento da licitação. No RMS 49972, a 2ª Turma do STJ (Rel. Min. Assusete Magalhães – J. 02.06.2020 – DJe 9.6.20), apontando outros precedentes da Corte, asseverou que:

“IV. O acórdão recorrido diverge da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que firmou entendimento no sentido de que "a superveniente adjudicação não importa na perda de objeto do mandado de segurança, pois se o certame está eivado de nulidades, estas também contaminam a adjudicação e posterior celebração do contrato" (STJ, AgRg na SS 2.370/PE, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, CORTE ESPECIAL, DJe de 23/9/11). Nesse sentido: STJ, AgInt no REsp 1.344.327/CE, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, DJe de 14/5/19; REsp 1.643.492/AM, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 20/4/17; AgInt no RMS 47.454/GO, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, DJe de 23/6/16”.

Em outro julgado, desta feita da 2ª Turma, restou consagrado que:

“A jurisprudência do STJ está consolidada no sentido de que superveniente adjudicação não configura perda de objeto quando o certame está eivado de nulidades, uma vez que tais vícios contaminam os atos subsequentes, inclusive o contrato administrativo. EDcl no AgInt no REsp 1906423 / AM – 2ª Turma/STJ – Rel. Min. Herman Benjamin – J. em 4/10/21 - DJe 1/2/22.

Neste sentido, a interpretação e aplicação dos princípios constitucionais da administração pública podem ocasionar, mesmo após a homologação do certame licitatório, a anulação dos atos administrativos viciados, não tendo razão para ser decretada automaticamente a perda superveniente de interesse processual e a aplicação da teoria do fato consumado. Tal raciocínio dialoga com a previsão contida no art. 49, §2º, da lei 8.666/93.  

Portanto, tudo irá depender do caso concreto e do limite cognitivo da demanda judicial.

Raciocínio semelhante deve ser feito em relação ao concurso público. Há a necessidade de observar o objeto litigioso da ação judicial que impugna etapas do concurso público, restando certo que nem sempre o encerramento do certame gera a extinção do processo sem resolução de mérito e a aplicação da teoria aqui discutida.

Assim, se a ação judicial pretender a anulação do concurso, dependendo da situação concreta, poderá ser mantido o interesse processual mesmo após a homologação de seu resultado. Como restou claro em precedente da 2ª turma do STJ: 

“A jurisprudência desta Corte tem se manifestado no sentido de que a homologação do resultado final do concurso não conduz à perda do objeto do mandamus quando o remédio constitucional busca aferir suposta ilegalidade praticada em alguma das etapas do concurso”. AgInt no RMS 68327 - Rel. MIn. Herman Benjamin - 2a T/STJ - J. em 17/10/22 - DJe 04/11/222.

Aliás, a manutenção de interesse processual visando a apreciação meritória das demandas judiciais envolvendo as duas situações aqui tratadas dialogam diretamente com o princípio da primazia (da resolução) de mérito. 

Necessário, portanto, é a revisão de alguns conceitos relativos ao momento da análise do interesse processual e sua permanência após a homologação de concurso e de licitação. Tudo irá depender do caso concreto e da pretensão do autor da demanda judicial pendente de julgamento.

Enfim, deve o intérprete ter a cautela de analisar qual é o objeto da ação judicial e o momento administrativo do concurso e da licitação, aplicando a teoria do fato consumado e a extinção do processo sem resolução de mérito em situações realmente excepcionais.

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1 Apesar de utilizar a expressão perda de objeto, correto o raciocínio do STJ de que não há como julgar o mérito do mandamus no caso em questão, senão vejamos: “RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. LICITAÇÃO. ENCERRAMENTO DO CERTAME ANTES DA IMPETRAÇÃO DO MANDAMUS. PERDA DO OBJETO DA AÇÃO MANDAMENTAL. 1. Extingue-se o mandado de segurança sem julgamento de mérito, quando, no momento da impetração, a licitação já estava encerrada. 2. Recurso ordinário improvido” (RMS 21725 / PR – 2ª Turma – Rel. Min. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA – J. em 12/09/2006 – DJ de 09/10/2006 p. 272).

2 Ainda no tema: AgInt no AREsp 1057237 / RJ – 1ª T/STJ – Rel. Min. Sérgio Kukina – J. em 20/02/2018 - DJe 05/03/2018 e AgInt no AREsp 501319 / ES – 1ª T/STJ – Rel. Min. Benedito Gonçalves – J. 27/10/2016 - DJe 18/11/2016. 

José Henrique Mouta
Mestre e Doutor (UFPA), com estágio em pós-doutoramento pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Professor do IDP (DF) e Cesupa (PA). Procurador do Estado do Pará e advogado.

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