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Repensando a avaria grossa: estado de necessidade e anacronismo - O descabimento no sistema atual de responsabilização civil

A avaria grossa, tema de estudo desde tempos de estágio com Rubens Walter Machado, gera ambiguidade na prática. Se causada fortuitamente pelo capitão, implica efeitos legais; caso contrário, é particular, dependendo do ato-fato gerador.

20/2/2024

DUQUE VICENTIO: Não se deixe ficar perplexo acerca de como essas coisas devem ser; todas as dificuldades são apenas simples uma vez conhecidas - Shakespeare

Desde os tempos em que era estagiário do saudoso mestre Rubens Walter Machado1, tenho pela avaria grossa um especial apreço, enquanto tema de estudo, e um antagonismo não pequeno, enquanto realidade prática. 

O mestre entendia que em muitos casos se desnaturava e se abusava das declarações de avaria grossa. Profissionalmente, cresci com essa impressão e já pude verificar que ela não raro se confirma; com alguma frequência advogados de donos de cargas e/ou de seus seguradores enfrentam essa situação.

Como termômetro para essa febre da avaria grossa, é preciso analisar a conduta do capitão do navio, ou mais precisamente o que a causou. Comprovando-se fortuita, haverá avaria grossa e todos os seus efeitos jurídicos e econômicos; não se comprovando, a avaria será particular. Sobre isso não há tanta discussão. Independentemente do ordenamento jurídico a invocar, a avaria grossa depende do ato-fato gerador.

Neste modesto ensaio vou um pouco além. Ouso sugerir que, no fundo, ela é anacrônica, não faz mais sentido no tempo atual. Abusiva ou não, a declaração de avaria grossa não deve ser mais considerada como antes.

Aqui, a defesa é pela ampla imputação de responsabilidade do transportador marítimo de cargas (seja o legal, seja o executor) e a adoção do princípio da reparação civil integral. Os argumentos, porém, não são novos. Em outras oportunidades, já os pude defender. Eles apenas ganharam mais corpo após os estudos de Doutoramento em Direito Civil pela Universidade de Coimbra.

Escrevi um artigo como parte do programa de avaliação do curso e nele tratei da responsabilidade civil do transportador marítimo de cargas (com especial destaque ao emissor do Bill of Lading), do negócio que a informa e, em casos de faltas e/ou avarias, das causas que excluem a presunção legal que corre contra o transportador. 

Nesse tratamento, a avaria grossa foi tratada sob a perspectiva civilista do estado de necessidade. Nele se debateu a própria existência da avaria grossa, que parece incompatível com o estágio atual de desenvolvimento da responsabilidade civil. 

Num momento em que a proteção da vítima de dano é o coração de tudo, e que o domínio do estado da técnica da navegação alcançou um antes inimaginável estágio de segurança, a repartição de prejuízos derivados da avaria grossa me parece bem pouco defensável. Mais do que a investigação de seu cabimento ou não de sua declaração em sinistros marítimos, o que defendo é sua plena extinção. E o faço com amparo em implicações do estado de necessidade.

Num aparente paradoxo, uso uma ferramenta que desmonta o caráter ilícito de um dano para desfigurar a validade de uma conduta. O estado de necessidade que autoriza a ação típica de avaria grossa é, precisamente, o que pode justificar-lhe a extinção.

Trabalharei em dois planos: o primeiro e principal consiste numa defesa do fim da existência do conceito de avaria grossa, dado seu descompasso com o atual sistema de responsabilização de manejadores de fontes de riscos; o segundo consiste em apontar os abusos de muitas declarações e o de sugerir enfrentamentos diretos, seja no calor dos acontecimentos, seja, depois, quando da análise cuidadosa dos fatos que as geraram. 

Convido o leitor ao uso da engenharia reversa para entender melhor posição que exponho e, quem sabe, dela compartilhar. Parto da conclusão para a melhor exposição de motivos: todo causador de dano tem de arcar com os prejuízos que decorrem de sua conduta. Não se lhe podem aproveitar válvulas de escape do dever de reparação civil integral, salvo as verdadeiramente justas.

Feito o convite, tomo pela mão aquele que me lê e começo essa breve viagem pela dialética e — por que não? — pela polêmica. 

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1 Este ensaio é o primeiro de uma série dedicada ao Direito Marítimo e ao Direito dos Seguros que intitulo “Estudos em homenagem à vida e obra profissional de Rubens Walter Machado.

Paulo Henrique Cremoneze
Advogado com atuação em Direito do Seguro e Direito dos Transportes. Sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados. Mestre em Direito Internacional Privado. Especialista em Direito do Seguro.

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