O STF, em junho/23, firmou maioria no julga-mento do Agravo em Recurso Extraordinário - ARE 1.175.650, com reper-cussão geral reconhecida (Tema 1043), decidindo que “é constitucional a utili-zação da colaboração premiada, nos termos da lei 12.850/13, no âmbito civil, em ação civil pública por ato de improbidade administrativa movida pelo Ministério Público”.
No bojo do processo originário, que resultou no ARE em análise, o Ministério Público do Paraná propôs ação civil pública por ato de improbidade administrativa requerendo a indisponibilidade dos bens para todos os réus, com exceção dos colaboradores de anterior acordo de delação premiada, exi-gindo, para esses, apenas o reconhecimento de que praticaram atos de impro-bidade administrativa, sem a imposição das penalidades correspondentes, va-lendo-se dos instrumentos previstos no art. 4º, §4º, da lei 12.850/13, c/c os arts. 16 e 17 da lei 12.846/13.
Um dos réus, que não havia realizado o acordo de delação, questionou a constitucionalidade da ação promovida exclusivamente em virtude de cola-boração premiada, sob a justificativa de que sua utilização não é admitida pelo ordenamento jurídico e violaria o art. 37, §§4º e 5º da Carta Magna.
Por sua vez, o Ministro Alexandre de Moraes, em seu voto condutor, fundamentou a constitucionalidade da medida uma vez que sua utilização em sede de ação de improbidade administrativa possui grande valia na colheita de provas, de modo que garantiu a efetiva tutela do patrimônio público, da legali-dade e da moralidade administrativa, atingindo, assim, seu objetivo nodal de comprovação dos delitos imputados.
Em que pese o assentamento da constitucionalidade de sua aplicação em ações de improbidade administrativa, não restou claro a (im)possibilidade do próprio colaborador ser penalizado, em sede administrativa, pelas condutas já confessadas no acordo de colaboração.
Em outras palavras: o colaborador da delação premiada poderia ser penalizado em sede de ação por ato de improbidade administrativa que possuiu como fundamento o próprio acordo de delação? Poderia o cola-borador ser penalizado por acordo realizado por ele mesmo?
Para tanto, faz-se necessário ainda compreender alguns conceitos basi-lares.
Os atos de corrupção percorrem diversos campos do direito, notadamente o administrativo, cível e penal, de modo que o conjunto da obra é comumente chamado de ilícito pluriobjetivo.
Para combatê-lo efetivamente, a Teoria do Diálogo das Fontes ensina e alerta para a necessidade de uma força-tarefa multidisciplinar, incluindo a co-operação com eventuais infratores, a fim de que o instrumento jurídico cabível em uma esfera possa ser aproveitado em outra. Afinal, as normas jurídicas não podem ser incompatíveis entre si, mas devem servir para a maior efetividade umas das outras.
No ponto, e de acordo com a consolidação de posicionamento do STF, não há mais espaço no direito penal para proibição de eventuais transações. Os acordos de leniência e de colaboração premiada atestam que até o direito penal mudou, e, por essa razão, todos as esferas jurídicas correlatas devem se adequar também.
Ora, é fato que o direito penal guarda estreitas relações com o direito administrativo sancionador, de modo que, por vezes, a ação originada na esfe-ra penal enseja uma eventual ação civil pública de improbidade administrativa.
Com efeito, os novos institutos, que servem para o enfrentamento sis-temático dos “atos de corrupção”, não podem desestimular o eventual infrator de exercê-los, fundado no medo de ser condenado em outra esfera.
Em outras palavras: um Réu que transaciona uma colaboração premia-da (art. 3ª-A e seguintes da lei 12.850/13) não deveria ser penalizado – pelo mesmo acordo – em outras esferas, sob pena de ferir de morte os instrumentos jurídicos, atingir princípios constitucionais e, o mais grave: fazer com que o colaborador “justifique sua própria condenação”.
Para que isso não aconteça, cabe ao Poder Judiciário admitir a exten-são da colaboração premiada, se homologada na ação penal, para os atos que eventualmente são, também, processados em sede de ação de improbidade administrativa.
O Min. Alexandre de Moraes, em sede de julgamento do ARE 175650 – Tema 1043, já havia proferido voto no sentido da aplicação analógica dos efeitos da colaboração premiada nos autos da ação de improbidade:
Assim, a utilização da delação premiada, para fixação de sanção mínima, redução ou até afastamento de algumas das sanções, além de poder contribuir com as investigações e a instrução processual, mostra-se princípio de equidade e de igualdade jurídica, já que, em diversas outras situações legais, a rerúncia ao direito constitucional de manter-se em silêncio convertese em benefícios, com redução expressiva da sanção imposta. No mesmo sentido, destaque-se a doutrina de Andrey Borges de Mendonça: "Aqui, como lembra Vladimir Aras, podemos invocar o brocardo ubi eadem ratio ibi eadem ius. não há sentido em fornecer benefícios para alguém colaborar no âmbito criminal e esse mesmo agente ser punido pela lei de improbidade, exatamente em razão dos mesmos fatos. A incoerência na atuação estatal - reconhecendo benefícios em uma seara e negando em outra - demonstra até mesmo deslealdade do Poder Público com aquele que contribuiu para a persecução dos agentes ímprobos, abrindo mão de seu direito a não se autoincriminar. Esta incoerência é reforçada quanto a Ação de Improbidade se baseia justamente nos elementos desvelados pelo colaborador''. Portanto, no caso vertente, uma vez reconhecida a real contribuição dos requeridos que celebraram acordo para o deslinde dos fatos investigados, impõe-se a aplicação, com fundamento no art. 4º da LICC c/c art. 126, do Código de Processo Civil, art. 4°, § 4° da lei 12.850/13 c/c art. 16 e 17 da lei 12.846/13, a aplicação analógica do instituto de colabora-ção premiada aperfeiçoado.
Destaca-se o trecho da doutrina do Vladimir Aras, transcrita pelo Ministro: “a incoerência na atuação estatal - reconhecendo benefícios em uma seara e negando em outra - demonstra até mesmo deslealdade do Poder Público com aquele que contribuiu para a persecução dos agentes ímpro-bos, abrindo mão de seu direito a não se autoincriminar.”
E completa:
Ora, quem colabora de maneira importante com a investigação deve ter a pena diminuída, atenuada, ou até mesmo ser aplicado o perdão judicial, de acordo com a participação no ato de improbidade administrativa. [...] Portanto, não prospera a assertiva lançada pelo agravante sobre a impossibi-lidade de extensão dos efeitos da colaboração premiada (insti-tuto de direito penal) para o âmbito da improbidade administrativa.
O tema, como visto acima, não é inédito no Poder Judiciário. Outros Tri-bunais também se manifestaram no mesmo sentido (TJ/PR, Apelação nº 1688769-3; TJDF, Apelação 20050111347466; TRF-1, Apelação 0002985-98.2011.4.01.4200; TRF-4, Agravo de Instrumento 5001689-83.2016.4.04.0000).
Entretanto, os que colaboram ainda são constantemente figurados no polo passivo das ações de improbidade, sendo a eles imputados penalidades correspondentes aos que não colaboraram.
Nesse contexto, o instrumento de colaboração premiada se traduz como um autêntico acordo celebrado entre o investigado e a autoridade policial ou Ministério Público, através do qual se confere benefícios em detrimento de in-formações privilegiadas e necessárias para a busca da verdade real do pro-cesso. Ou ainda, tal qual conceituado pelo Ministro Alexandre de Moraes em seu recentíssimo voto: “mostra-se apto, como meio de colheita de provas”.
Assim, os efeitos da colaboração premiada, apesar de previstos apenas na legislação penal, reverberam para outras esferas do direito, notadamente nas ações de improbidade administrativa (como decidido pelo Tema 1043, STF), razão pela qual a pena do colaborador deverá ser diminuída, atenuada ou até perdoada.