O instituto da colaboração premiada, hoje prevista em vários diplomas legais punitivos, foi introduzida no Brasil pela lei Federal 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos)1.
A colaboração premiada ou delação premiada é um instrumento de política criminal que ganhou contornos nunca vistos no mundo com a operação “Lava Jato”, onde quase uma centena de pessoas assinaram acordos de colaboração de uma só vez (sic). No curso desta análise, sua regulação legal encontra-se na lei Federal 12.850/13 (Lei de Organizações Criminosas) e que foi posteriormente alterada, em diversos pontos, pela lei Federal 13.964/19 (famigerado “Pacote Anticrime”).
A colaboração premiada é classificada pela doutrina2, pela Orientação Conjunta 1/18 do MPF (artigo 1º) e consensualmente pelo STF3 como um negócio jurídico processual (gozando de voluntariedade, regularidade e legalidade entre os negociantes) utilizada como meio de obtenção de prova na seara processual penal, que uma vez homologado pelo juízo competente, confere, ainda que em tese, direito subjetivos à obtenção de “prêmios” (imunidade ou abrandamento da sanção criminal) ao colaborador4.
Para o cidadão razoavelmente informado, a par então das notícias e das produções intelectuais sobre o tema, durante a “Operação Lava Jato” a colaboração premiada se tornou uma onda, um instituto quase do dia a dia do Ministério Público Federal5.
À luz dos necessários controles de constitucionalidade e convencionalidade do processo penal brasileiro inserido em uma perspectiva de um Processo Penal Democrático, respeitoso às garantias processuais e, consequentemente avesso ao infeliz direito penal do inimigo, a carga probatória prestada pelo colaborador deve ser reduzida, sendo um meio para a obtenção de prova (técnica especial de investigação, STF, HC 127.483/PR), necessitando, nesse passo, de corroboração das alegações para que traga como efeito, qualquer responsabilidade penal ao delatado (STF, HC 94.034/SP, rel. min. Cármen Lúcia – RE 213.937/PA, rel. min. Ilmar Galvão, v.g.)6.
Não é a colaboração premiada, um instituto fim em si mesmo. Do ponto de vista de seu propósito, a colaboração premiada nada mais é que uma condição de possibilidade da persecução penal tanto pela defesa do colaborador (eis que é uma estratégia defensiva) quanto pela autoridade policial ou membro do Ministério Público (o Estado ganha em maior eficiência na obtenção dos elementos de investigação ou de aquisição de provas em casos nos quais sem a colaboração isso não seria possível).
Ocorre que a rigor, o acordo de colaboração premiada repercute em geral de modo desfavorável ao delatado, dada a comum carga acusatória da colaboração, que por consequência pode afetar, ainda que de modo reflexo, o direito da liberdade locomoção.
Diante desse cenário, dada a amplitude alargada do habeas corpus não somente para garantia do direito à liberdade, mas também como remédio de proteção do devido processo legal (due process of law)7, deve-se entender como cabível a impetração do habeas corpus para assegurar a ordem sucessiva ao delatado em relação ao colaborador, caso o contrário, a sua inversão teria aptidão a gerar constrangimento ilegal pelo prejuízo manifesto ao devido processo legal (artigo 5º, LIV, CF) e de seus postulados corolários, os princípios da ampla defesa e, principalmente, do contraditório (artigo 5º, LV, CF)8.
Nesse sentido, em agosto de 2019 decidiu o STF:
Ementa: AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. CONHECIMENTO. POSSIBILIDADE. APRESENTAÇÃO DE MEMORIAIS ESCRITOS POR RÉUS COLABORADORES E DELATADOS. PRAZO COMUM. INADMISSIBILIDADE. OFENSA ÀS REGRAS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. NULIDADE. EXISTÊNCIA DE PREJUÍZO. EXEGESE IMEDIATA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS INDEPENDENTEMENTE DA NORMA INFRACONSTITUCIONAL. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 5º, LIV E LV, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988, E 603, DO CPP. ORDEM CONCEDIDA. I – Possibilidade de impetração de habeas corpus nos casos em que, configurada flagrante ilegalidade do provimento jurisdicional, descortina-se premente o risco atual ou iminente à liberdade de locomoção, apta, pois, a gerar constrangimento ilegal. Precedentes desta Suprema Corte (HC 87.926/SP, Rel. Min. Cezar Peluso; HC 136.331, Rel. Min. Ricardo Lewandowski). II - Decisão de primeiro grau de jurisdição que indefere pedido para apresentação de memoriais escritos após o prazo dos réus colaboradores. Prejuízo demonstrado. III – Memoriais escritos de réus colaboradores, com nítida carga acusatória, deverão preceder aos dos réus delatados, sob pena de nulidade do julgamento. Exegese imediata dos preceitos fundamentais do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, da CF/88) que prescindem da previsão expressa de regras infraconstitucionais. IV – Agravo regimental provido, para conhecer e conceder a ordem. (STF, HC 157.627/PR AgR, rel. min. Edson Fachin, rel. p/ Acórdão, min. Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, julgado em 27.8.19, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-059 DIVULG 16.03.2020 PUBLIC 17.3.20).
Antes mesmo das modificações legislativas trazidas pela lei 13.964/19 no tocante a Lei de Organizações Criminosas, como se pôde ver na ocasião do julgamento parcial do agravo interposto na ordem de habeas corpus 157.627/PR, o Supremo Tribunal concluiu pela necessidade de abrir prazo sucessivo aos réus colaboradores e aos réus não colaboradores, por prestígio aos princípios do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, possibilitando, desse modo, ao réu delatado por colaborador, a apresentação de alegações finais por último, isto é, em momento posterior (sucessivamente) aos demais.
Como dito, a colaboração premiada é uma como condição de possibilidade e, apesar de que para o colaborador ela ter escopo de meio de defesa, a colaboração premiada, dentro da ótica do processo penal oficial, tem conotação de elemento acessório, aderente à versão da acusação oficial (meio de obtenção da prova penal). Logo, a relação “delator vs. delatado” é de óbvio antagonismo processual. Inexiste dúvida de que o sucesso de um representa o fracasso do outro. Portanto, é correto que o delator deva falar antes da defesa daqueles que não firmaram qualquer acordo de colaboração9.
Nesse passo, foi importantíssima a inclusão do §10-A do artigo 4º da lei 12.850/13 feita pela lei 13.964/19 (“Pacote Anticrime”), para “garantir ao réu delatado a oportunidade de manifestar-se após o decurso do prazo concedido ao réu que o delatou.”
Portanto, nada impede o acusado de impetrar habeas corpus para obter a concessão da ordem para se fazer valer, por exemplo, do cumprimento do artigo 4º, §10-A da lei 12.850/13 ou reconhecendo a ilicitude de declarações incriminatórias prestadas por delator, determinando a inutilização e o desentranhamento da prova obtida por meios ilícitos ou outros elementos considerados também ilícitos por derivação (artigo 157 do CPP) por vícios no acordo ou pela omissão dolosa dos fatos por parte do colaborador10. Neste sentido, por exemplo, decidiu o STJ (RHC 154.979/SP, julgado em 9.8.22) por anular acordo de colaboração premiada celebrado por pessoa jurídica e as provas derivadas do acordo ante o fundamento de que à pessoa jurídica carecem os requisitos de capacidade, voluntariedade e de responsabilidade criminal relacionada à lei Federal 12.850/13, pois a pessoa jurídica não pode figurar como investigada ou acusada no tipo de crime de organização criminosa [limitada a responsabilidade penal da pessoa jurídica à prática de crimes ambientais11 (artigo 225, § 3º - CF)]12.
------------------------------------
1 Artigos 7º e 8º, parágrafo único.
2 Por todos, ver: CALLEGARI, André Luís. Colaboração premiada: lições práticas e teóricas: de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre. Livraria do Advogado, 2019, p. 26.
3 Por todos ver: AgRg no Inquérito 4.619/DF, rel. min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 10.09.2018.
4 Sobre a colaboração premiada, seus efeitos e reflexões ver: Por todos, ver: CALLEGARI, André Luís. Colaboração premiada, ob. cit., p. 37 e ss.
5 RUIZ FILHO, Antonio. Habeas Corpus: problema ou solução? Revista do Advogado, 30 anos do STJ, São Paulo: AASP, ano 39, n. 141, abr. 2019. Crítico da “bolha especulativa e autoritária” que acometeu a colaboração premiada com a “Lava Jato”, Antonio Ruiz filho rotula: [...] atualmente vive-se uma nova onda, a era das colaborações premiadas como único meio e razão de investigar, que também já vai arrefecendo, todavia, ora por excesso na premiação, ora por concessões fora dos parâmetros legais (reconhecidamente lacunosos), ora, ainda, por se mostrarem inconvenientes e até imprestáveis.
6 Não vou discordar do argumento de que punir é um ato civilizatório. Todavia, no meu entender, o jus puniendi deve ser exercido na medida do permitido pelo devido processo legal (due process of law).
7 Cfr. OLIVEIRA, Diego Renoldi Quaresma de. Ações autônomas de impugnação em matéria penal. 3ª ed. Rio de Janeiro. Lumen juris, 2023, p. 37-38.
8 Para um aprofundamento no tema sobre o Habeas Corpus e o instituto da colaboração premiada ver: OLIVEIRA, Diego Renoldi Quaresma de. Ações autônomas de impugnação em matéria penal, ob. cit., p. 122 – 125.
9 Nesse sentido: STF, HC 166.373/PR, rel. min. Edson Fachin. Segunda Turma. Sobre um estudo aprofundado sobre colaboração premiada ver: CALLEGARI, André, Luís. Colaboração premiada: lições práticas e teóricas: de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. 2. Ed. rev. e ampl. Porto Alegre. Livraria do Advogado Editora, 2019.
10 Nesse sentido: Precedentes STF: HC 142.205/PR e HC 143427/PR.
11 Seara que, em tese, possibilitaria, um acordo de colaboração premiada celebrado por uma pessoa jurídica.
12 STJ, RHC154.979/SP, rel. min. Olindo Menezes, (desembargador convocado do TRF 1ª Região), Sexta Turma, julgado por unanimidade, julgado em 09.08.2022, DJe 15.08.2022.