Migalhas de Peso

E se a Suprema Corte não fosse a senhora da Constituição? A nota de rodapé de sua própria história!

Abordagem jurídica explora especulações 'e se...' no direito constitucional. Exercício imaginativo avalia impactos de eventos alternativos, como a morte de George Washington por anthrax ou o plano de "empacotamento da Corte" de Roosevelt. Destaca-se a prevalência da abstração no direito constitucional.

14/2/2024

A presente abordagem começa com (e se desenvolve desde uma) questão pitoresca do direito constitucional, qual seja, a especulação reflexiva conhecida como “e se…”.  Quase como uma brincadeira, entretanto, é coisa muito séria. De forma exemplificativa, recordemos o professor Gerard Magliocca1, que conduziu, há alguns anos, um simpósio sobre elementos contrafactuais na história constitucional americana, consistente em realizar um exercício muito comum na prática jurídica, similar ao que ocorre quando um advogado pede ao júri que imagine o desfecho fático de um caso de outra maneira como a realizada pelo acusado, ou quando um magistrado imagina a realização de um negócio jurídico de formas alternativas. A chave, pois, é exatamente esta: imaginar.

Em termos gerais, alegou-se que no direito constitucional tende a prevalecer mais pesadamente a abstração, para além das questões práticas, como no caso de se imaginar o que teria acontecido se George Washington houvesse falecido do anthrax que contraiu, poucas semanas após ser empossado como o 1º Presidente dos EUA (a Constituição teria sobrevivido?), ou o que teria ocorrido se o plano de “empacotamento da Corte”, sugerido por Roosevelt, houvesse se tornado Lei, caso o justice Owen Roberts permanecesse sem mudar de posição jurídica no segundo semestre de 1937. A Corte Suprema teria sobrevivido? O professor João Carlos Souto, em seu “Suprema Corte dos Estados Unidos – Principais decisões” 2 ao discorrer sobre a distinção entre um Parecer e a autoridade de Estado de uma decisão judicial, também nos faz imaginar o que teria ocorrido se Al Gore houve sido declarado presidente, e empossado no lugar de Bush (a guerra ao terror teria nascido?) após litigo na Suprema Corte.

Baseado no mesmo princípio (e no mesmo simpósio, publicado pela revista Indiana Law Review), o professor Carlton Larson3 propôs se imaginasse o que teria ocorrido se o então presidente da Suprema Corte, Fred Vinson, não houvesse falecido de ataque cardíaco em 1953, considerando que vinha sendo sua a responsabilidade pela não realização do julgamento da reversão da segregação racial nas escolas, e, com sua morte, assumindo o novo Chief Justice Earl Warren, deu-se início ao provimento judicial realizado no caso Brown. Também merece destaque o imaginário sobre um hipotético modelo de “supremacia legislativa”, caso Madison houvesse se sagrado vencedor4 ou mesmo qual teria sido o cenário se os “pais fundadores” não tivessem constitucionalizado o privilégio do writ de habeas corpus5.

Também poderíamos cogitar, com idêntica perspectiva, qual teria sido o desdobramento da teoria constitucional americana se o Justice Harlan Stone não tivesse escolhido Louis Lusky como seu Law Clerk (já se falou, inclusive, em assessores como “aprendizes de feiticeiros)6, e se este último não tivesse elaborado a famosa nota de rodapé número 4, no caso Caroline Products7, para além de ter influenciado John Hart Ely na escrita de um dos maiores textos teóricos do constitucionalismo contemporâneo (Democracy and Distrust), e o pensamento sobre “minorias discretas e insulares” 8. É relativamente conhecido o texto de Ronald Dworkin refletindo sobre o tema, afastando as premissas que sustentariam a especial proteção de direitos em face dos sujeitos protegidos (pura atenção às minorias), ou dos interesses violados, por serem puramente utilitaristas (e puro “majoritarianismo”), defendendo um modelo de judicial review que estaria baseado no princípio de que nenhum corpo de representação política poderia aprovar normas baseadas em preconceitos que prejudiquem grupos e pessoas9.

Quanto ao mesmo jogo imaginativo, aliás, não se perca de vista o fato de que o justice Arthur Goldberg, indicado para substituir Felix Frankfurter, foi o principal articulador do fundamento concorrente no icônico caso Griswold v. Connecticut (1965), propondo que a 9ª Emenda à Constituição americana acolhia a tese sobre um rol não taxativo de direitos fundamentais, com isso asseverando a existência de um direito não escrito à privacidade, o que conduziria, alguns anos depois, à construção realizada no caso Roe v. Wade (1973) sobre o direito ao aborto10.

O curioso é que o justice Arthur Goldberg não admirava as notas de rodapé, aliás o contrário, sendo famoso seu conselho a um antigo Law Clerk que posteriormente também viria a integrar, como ele, a Suprema Corte, o justice Stephen Breyer 11, para que não utilizasse notas de rodapé em suas manifestações judiciais, e o tema remanesce relativamente controverso, a ponto de já terem escrito, de maneira espirituosa, todo um divertido texto em uma única nota de rodapé vinculado a uma única palavra no texto (“Indeed”) sobre o caráter de precedente das notas de rodapé12 devidamente respondido com argumentos mais amplos, embora não menos espirituosos (“Indeed not”)13, colocando alguma pretensão de tecnicidade na discussão: as notas seriam razões de decidir (ratio decidendi) ou falas isoladas (obter dictum)? E, principalmente, quando se trata de uma nota tão relevante, quanto a famosa nota número 4 do caso Caroline, qual seria sua posição dentro do espectro argumentativo da teoria constitucional? O tema é rico no debate acadêmico americano14, e também se sabe que a mencionada nota número 4 do caso Caroline teve influência direta no caso Griswold (e, portanto, no caso Roe)15, demonstrando o encadeamento de uma série de eventos constitucionais, para não chamá-los apenas de precedentes.

O caso brasileiro, claro, nos permitiu vivenciar diversos momentos constitucionais historicamente decisivos, situações que para os americanos do norte seria pura especulação. 

Veja-se: nosso primeiro Presidente da República, Deodoro, eleito em 1891 de forma indireta após a promulgação da Constituição, renuncia e falece um ano depois, com a assunção do Vice, Floriano, em oposição aberta ao artigo 42 da Constituição, que impunha nova eleição. Suportamos não apenas 1, mas 3 empacotamentos da Suprema Corte, distintos entre si, mas com similar fundo político. O primeiro, em 1931, quando Getúlio aposentou 6 ministros; o segundo, em 1965, quando a ditadura civil-militar aumentou o número de ministros para 16, posteriormente reduzido para 11 após o AI 5 de 1968 e a aposentadoria compulsória de 3 ministros, somadas às duas renúncias em solidariedade; o terceiro, ligeiramente distinto, decorreu da manipulação política da idade de aposentadoria de ministros do STF, que retiraria 5 indicações que poderiam ser realizadas pela 1ª mulher a ocupar a presidência da República através da EC 88/15, prolongando os mandatos dos ministros Joaquim Barbosa (que se aposentou precocemente, permitindo a indicação do ministro Edson Fachin), Celso de Mello, Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski e Teori Zavascki. No caso deste último ministro, entretanto, seu falecimento em trágico acidente aéreo em 2017 permitiu a indicação do ministro Alexandre de Moraes após o impeachment que conduziu Michel Temer à Presidência da República.

Nosso exercício de imaginação seria invertido. Enquanto nos EUA se imagina a morte fictícia de seu 1º Presidente da República, ou a realização teórica de um empacotamento da Corte que jamais ocorreu, por aqui nós temos o dever imaginário de pensar o que teria acontecido se houvesse ocorrido a eleição presidencial que se impunha em 1891, ou se Getúlio não houvesse afastado os ministros em 1931, ou se a ditadura militar não houvesse aumentado o número de ministros para 16 e depois reduzido para 11, e, claro, se o impeachment de Dilma não tivesse ocorrido e nem o implemento da manipulação da idade de aposentadoria dos ministros da Suprema Corte. O que teria ocorrido se nossa maturidade política, federativa e republicana houvesse preservado a nação em seus aspectos institucionais? Não possuímos resposta, apenas especulação filosófica através da filosofia da pergunta em trilha contrafactual.

Ao escrever as palavras iniciais sobre seu importante livro acerca do caso Marbury v. Madison (1803), o professor Paul W. Kahn16 refletiu sobre algo extremamente importante, após fazer uma constatação crítica:“os juristas rapidamente se perguntam o que o direito deveria ser, sem antes perguntarem o que significa acreditar no Estado de Direito”, para constatar, prossegue ele, que “antes de ser um grupo de regras particulares, o Estado de Direito é um grupo de crenças sobre a formatação e a caracterização da comunidade em que vivemos”.

O mesmo autor também observou, aliás, que o caso Marbury v. Madison teria estabelecido os contornos de um governo das leis, não de um governo dos homens, e que isso representava um desafio especial, uma vez que os teóricos podem até se preocupar sobre como reconciliar a regra da maioria com o Estado de Direito, mas a imaginação popular aceita, contudo, as duas coisas: “O direito dos homens e o direito das leis são igualmente fundamentais, senão idênticas proposições da concepção Americana da ordem política”. A linha política do direito parece evidente, assim como os traços jurídicos da política. Muitas vezes, claro, sem necessária intenção, as fronteiras e limitações não se apresentam muito nítidas.

É aqui, aliás, que calam fundo as inquietantes advertências de Giovani Sartori17 no sentido de que quando um problema político é despolitizado – “e o constitucionalismo seria, inescapavelmente, uma solução jurídica para um problema político” – as consequências reais de tornar uma atitude jurídica neutra seriam políticas – prossegue – pois a “Política não pode ser retirada da política, nem de forma discursiva”. Intensifica-se a força destas palavras se pensarmos no conturbado e explosivo cenário político, partidário e institucional brasileiro, no atual e sempre presente embate entre as instituições, que somente pensam e falam através de seus integrantes, seja nos conflitos ou nos momentos de integração de grupos aliados, como dito com precisão cirúrgica pela antropóloga Mary Douglas18.

Por este e por outros motivos o falecido professor Louis Lusky  deveria ser recordado com maior frequência por todos nós, não em razão de uma suposta deferência ou maior autoridade, mas sobretudo por causa de seus textos inspiradores que demarcam a necessidade de se defender a Corte Suprema contra quem quer que seja, inclusive de seus próprios Juízes, seja individualmente ou em agrupamentos mais ou menos visíveis.

Louis Lusky é um autor que teria ao menos 2 de seus livros inseridos em uma possível lista de 10 (“By What Right?” e “Our Nine Tribunes”) 19-20. Trata-se de um intelectual do direito que vivenciou de perto a Suprema Corte americana, como já recordado, pois foi “Law Clerk” do Justice Harlan Stone, antes de ser professor e advogado em Nova Iorque. Sua defesa, em ambos os livros, é a defesa da Corte contra seus Juízes, com pesado apego ao mecanismo de legitimidade de suas decisões, mas sem jamais esquecer a origem da Corte, e dos elementos de seu funcionamento, pois oriundo de uma complexa época, provavelmente um dos momentos de maior turbulência da Suprema Corte americana, em que se testemunhou um embate entre o Tribunal e o poder Executivo na época de Roosevelt e seu New Deal. 

Bem entendido, muito embora houvesse um grupo de justices da Suprema Corte mais avesso à agenda do New Deal, fato é que três famosos julgamentos contra o Executivo se deram de forma unânime, mostrando um verdadeiro embate institucional (caso Humphrey’s, caso Louisville, e caso Schechter). Contudo, havia dois grupos frequentemente antagônicos na Suprema Corte; um, batizado pela imprensa de “Four Horsemen” (em alusão aos 4 cavaleiros do apocalipse, composto pelos justices Butler, McReynolds, Sutherland e Van Devanter); outro, nomeado de “Os 3 mosqueteiros” (que não eram 3, mas 4, em alusão a D’Artagnan no romance de Dumas - composto pelos justices Louis Brandeis, Benjamin Cardozo e Harlan Stone, que passou a ser completado, ora com o justice Charles Evans Hughes, ora com o justice Owen Roberts).

Aqui retornamos a Louis Lusky, que foi – como referido – o Law Clerk que elaborou a minuta do famoso caso Caroline Products, em especial a famosa nota de rodapé número 4, conhecida como a nota de rodapé mais famosa de todo o direito constitucional ocidental, em defesa das “minorias discretas e insulares”. Fora da Corte, se tornou um professor famoso por defender a Corte, não raro sendo apontado como aquele que melhor compreendeu o papel do Tribunal, e os dois livros antes mencionados (“BWR” e “ONT”), como se  sabe, são considerados canônicos, ao lado de seus artigos publicados nos anos 50, 60, 70 e 80 do século passado, tendo vivenciado os períodos mais complexos de existência da Corte Suprema, mas principalmente por ter sido o maior (ou um dos maiores) estrategistas de litígio em defesa dos direitos fundamentais perante a Suprema Corte em defesa dos direitos das minorias, em especial o período de superação da legislação de vadiagem, inclusive citado com bastante destaque no grande livro de 2016, escrito por Risa Goluboff (“Vagrant Nation”).

Com isso, nosso exercício imaginativo também pode ser sobre o papel da Suprema Corte como senhora da Constituição, no sentido do exercício de sua guardiania; e se deixar de ser, bem entendido, e se abrir mão de seu papel constitucional? Por aqui não tivemos nada parecido com a polêmica nota de rodapé número 4, mas é evidente não apenas a  necessidade, mas o dever de proteção das minorias discretas e insulares, assim como o equilíbrio do direito emanado da vontade política da regra da maioria, considerando o caráter extremamente desigual de nossa deformação histórica. 

Em 2024, e daí em diante, o STF (pós 8 de janeiro) precisará organizar e delinear a nota de rodapé de sua história, mantendo-se firme na defesa da constituição e na preservação dos difíceis (e muitas vezes impopulares) direitos das minorias, mesmo com o peso do embate institucional, pois nosso exercício imaginativo é o tenebroso cenário em que se pergunta: e se a Suprema Corte não for a senhora da Constituição? É distopia constitucional de que não precisamos! Mas o trabalho não é simples, pois exige prudência que interfere diretamente na crença e no imaginário coletivo sobre o Estado Democrático de Direito, pois também não iremos querer saber o que acontece num cenário em que arguimos: e se substancialmente não acreditarmos mais no Estado de Direito? É outra distopia constitucional de que também não precisamos!

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1 Magliocca, Gerard. Introduction: “What If” Counterfactuals in Constitutional History. Indiana Law Review, v. 45, n. 1, 2011.

2 A nota de rodapé 114 (da página 44), ao discorrer sobre a força decisória para mudar o curso da história. Cfr.: Souto, João Carlo. Suprema Corte dos Estados Unidos – Principais decisões. 2ª edição. São Paulo: Atlas, 2015. 

3 Larson, Carlton. What If Chief Justice Fred Vinson Had not Died of a Heart Attack In 1953?: Implications for Brown and Beyond. Indiana Law Review, v. 45, n. 1, 2011.

4 Lacroix, Alison. What If Madison Had Won? Imagining a Constitutional World of Legislative Supremacy Authors, Indiana Law Review, v. 45, n. 1, 2011.

5 Tyler, Amanda. The Counterfactual that Came to Pass: What if the Founders Had Not Constitutionalized the Privilege of the Writ of Habeas Corpus? Indiana Law Review, v. 45, n. 1, 2011.

6 Ward, Artemus; Weiden, David. Sorcerer’s Apprentices: 100 years of law clerks at the United States Supreme Court. New York: NYUP, 2006.

7 Lusky, Louis. Footnote Redux: A "Carolene Products" Reminiscence Louis Lusky Columbia Law Review Vol. 82, n. 6, 1982.

8 Ely, John Hart. Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review. Cambridge: HUP, 1980.

9 Dworkin, Ronald. The Forum of Principle, N. Y. U. L. Rev. 1981.

10 Em sentido contrário, questionando a ligação dos casos, cfr: Alstyne, William Van. Closing the circle of constitutional review from Griswold v. Connecticut to Roe v. Wade. Duke Law Journal, 1989.

11 Cfr. In Justice Breyer's Opinion, A Footnote Has No Place. The New York Times, July 28, Section B, Page 18, 1995; Jesus, David J.; Fogel, Paul D. Don’t Put Your Footnote in Your Mouth Avoiding the Pitfalls of Using Footnotes in Briefs. For The Defense, Dec., 2006.

12 James, Robert. Are Footnotes in Opinions Given Full Precedential Effect? Green Bag, 1999.

13 Matetsky, Ira Brad. The Footnote Argument – Susteined at Last? Green Bag, 2002.

14 Entre outros, cfr.: Caplan, Lincoln. Ruth Bader Ginsburg and Footnote Four. The New Yorker, sep, 2013; Magat, Joan Ames. Bottomheavy: Legal Footnotes. Journal of Legal Education, Vol. 60, n. 1, 2010; Anderson, Bruce. The Decline and Fall of the Footnote. Stanford Magazine, 1997; Bowersock, G. W. The Art of the Footnote. The American Scholar Vol. 53, n. 1, 1984; Posner, Richard. Against Footnotes. Court Review: The Journal of the American Judges Association Court Review: Volume 38, Issue 2, 2001.

15 Por todos, Cfr.: Strauss, David. Is Caroline Products Obsolete? University of Illinois Law Rev., v. 2, 2010.

16 Kahn, Paul W. The Reign of Law: Marbury v. Madison and the Construction of America. New Haven:Yale University, 1997.

17 Sartori, Giovani. Constitutionalism: A Preliminary Discussion. The American Political Science Review, Vol. 56, No. 4, Dec., 1962.

18 Douglas, Mary. How Institutions Think. Syracuse University Press, 1986.

19 Lusky, Louis. By What Right? A commentary on the Supreme Court's power to revise the Constitution. Charlottesville: Michie Co. 1975.

20 Lusky, Louis. Our nine tribunes:  the Supreme Court in modern America. Westport: Praeger, 1993.

Thiago Aguiar de Pádua
Doutor em direito. Professor da Faculdade de Direito da UnB. Ex-assessor de ministro do STF. Autor do livro "O Common Law Tropical: o caso Marbury"(2023). Sócio de Aguiar de Pádua & Lima Advogados.

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