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O encontro fortuito de provas

Se no cumprimento de mandado de busca e apreensão de um aparelho celular ocorre a descoberta casual do crime de porte ilegal de arma de fogo, é obrigação do investigador apurar essa nova infração penal, se instaurando novo procedimento investigativo.

15/2/2024

O encontro fortuito de provas é um conceito aceito pelo ordenamento jurídico que concede validade à prova desconhecida e sem relação com o objeto da investigação originária. 

São indícios probatórios da prática de crimes de ação penal pública incondicionada que subsidiarão novas investigações. Por exemplo, se no cumprimento de mandado de busca e apreensão de um aparelho celular ocorre a descoberta casual do crime de porte ilegal de arma de fogo, é obrigação do investigador apurar essa nova infração penal, se instaurando novo procedimento investigativo. 

Em linhas gerais, o encontro fortuito de provas - também conhecido como serendipidade - é a apuração de nova infração penal descoberta a partir de investigação pretérita. É um fenômeno comumente apurado em investigações que contém intercepatação telefônica, onde a descoberta de novos crimes ocorre a partir de informações voluntárias fornecidas pelos próprios alvos da interceptação tetefônica. 

No julgamento do RHC 81.964/RS, relator Ministro Antônio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 9/5/17, DJe de 15/5/17, onde se buscava a nulidade da prova casual obtida a partir de interceptação tetefônica autorizada para apurar infração penal pretérita, foi reconhecida a legitimidade da investigação que obteve indícios da prática de novos crimes a partir de decisão judicial que buscava a eludidação de crimes de organização criminosa e tráfico de drogas. Confira trechos do voto exarado pelo eminente Relator: 

“Ora, é da orientação desta Corte Superior que a descoberta, em interceptação telefônica judicialmente autorizada, do envolvimento de pessoas diferentes daquelas inicialmente investigadas – o denominado encontro fortuito de provas (serendipidade) – é fato legítimo, não gerando irregularidade do inquérito policial, tampouco ilegalidade na ação penal. (...)

Embora, em um primeiro momento, não se tenha dirigido a investigação ao recorrente, certo é que seu envolvimento nos delitos apurados em relação a corréus foi descoberto em encontro fortuito de provas, ocorrido em procedimento efetuado em observância à disciplina legal. 

Por conseguinte, não há falar em nulidade, conforme a orientação deste Tribunal Superior.”

Em outro caso analisado pelo STJ, onde a interceptação telefônica originária visava à apuração de crimes de contrabando e descaminho, foi reconhecida a validade da prova casual que possibilitou a abertura de nova investigação pelo crime de evasão de divisas. Confira trechos da fundamentação desse julgamento:

“No caso, conforme se extrai da exordial acusatória, a recorrente, Ana Paula, e o outro acusado, Eduardo Gayardo, estavam sendo investigados pela Polícia Federal, na Operação Mercador, pelos crimes de contrabando e descaminho de produtos, nos autos do IPL 5003115-68.2015.404.7210, sendo que, naquele feito, foi deferido pedido de interceptação telefônica da linha de Ana Paula, a partir da qual, "os policiais federais tomaram conhecimento de que ambos os indiciados fariam uma operação envolvendo pesos argentinos, por intermédio dos áudios 2735629 e 2735874" (e-STJ, fl. 3).” (RHC 94.803/RS, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 4/6/19, DJe de 11/6/19.)

No julgamento do HC 395.983/DF, relator Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 18/9/18, DJe de 26/9/18, onde se analisou a conduta de magistrado federal descoberta casualmente por ocasião de interceptação telefônica deferida contra agente penitenciário investigado por crime corrupção passiva, o colegiado do STJ rechaçou a hipótese defensiva que buscava a nulidade das decisões judiciais que autorizaram a quebra de sigilo em desfavor do magistrado, validando-se o encontro fortuito de provas obtidas na primeira investigação: 

“Como se vê, houve a descoberta acidental do envolvimento de magistrado federal em atividades delituosas, a partir de escuta telefônica autorizada, sendo certo que a prova obtida acidentalmente é válida, notadamente quando se trata de investigação envolvendo o réu Antenor Elias, membro de organização criminosa de grandes dimensões, de destacado grau de profissionalismo e com significado aporte financeiro, responsável pela prática de tráfico de drogas, conforme descrita na decisão.”

Aliás, ainda que a investigação pelo delito originário tenha sido descartada, permanece válida a investigação pela infração penal subsequente instaurada a partir do encontro casual de provas. Essa interpretação ocorreu na análise do HC 106152, Relatora Ministra Rosa Weber, Primeira Turma, julgado em 29/3/16, onde originalmente se apurava infração penal contra a ordem tributária, que posteriormente foi extinta em razão do pagamento integral do tributo: 

“A validade da investigação não está condicionada ao resultado, mas à observância do devido processo legal. Se o emprego de método especial de investigação, como a interceptação telefônica, foi validamente autorizado, a descoberta fortuita, por ele propiciada, de outros crimes que não os inicialmente previstos não padece de vício, sendo as provas respectivas passíveis de ser consideradas e valoradas no processo penal. 

Fato extintivo superveniente da obrigação tributária, como o pagamento ou o reconhecimento da invalidade do tributo, afeta a persecução penal pelos crimes contra a ordem tributária, mas não a imputação pelos demais delitos, como quadrilha e corrupção.”

Em sentido oposto, no julgamento do RMS 25.174/RJ, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 19/2/08, DJe de 14/4/08, em que foi constatada abusividade na decisão originária que autorizou a medida extrema, foi deferida a segurança pleiteada pela defesa, o que levou ao desentranhamento das provas obtidas sem observância ao devido processo legal: 

“Neste ponto, cumpre anotar que a quebra de sigilo bancário e fiscal é medida violenta, que não pode servir ao perigoso intuito de devassa injustificada, sob pena de tornar vazia a garantia constitucional da privacidade do cidadão, somente afastada diante da demonstração de motivos suficientemente hábeis e no mínimo de indícios concretos da conduta supostamente delituosa.”

Portanto, como validada da investigação não está condicionada ao resultado, mas ao devido processo legal, se a hipótese que resultou na investigação originária infringir o ordenamento jurídico, as hipóteses subsequentes serão invalidadas, uma vez que o encontro casual das provas subsequentes foi obtido através de infringência ao devido processo legal. 

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Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Decreto-Lei nº. 3.689, de 3 de outubro de 1941. 

Decreto-Lei nº. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. 

RHC n. 81.964/RS, relator Ministro Antônio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 9/5/2017, DJe de 15/5/2017.

RHC n. 94.803/RS, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 4/6/2019, DJe de 11/6/2019.

HC n. 395.983/DF, relator Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 18/9/2018, DJe de 26/9/2018.

HC 106152, Relator(a): ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 29-03-2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-106  DIVULG 23-05-2016  PUBLIC 24-05-2016.

RMS n. 25.174/RJ, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 19/2/2008, DJe de 14/4/2008.

Ricardo Henrique Araujo Pinheiro
Advogado especialista em Direito Penal. Sócio no Araújo Pinheiro Advocacia.

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