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Conflitos na agenda 2030: violência, fraudes de gênero, responsabilização, TSE: ótica aristotélica e feminismo jurídico

A análise discute desafios na implementação da Agenda 2030 no Brasil, destacando fraudes eleitorais de gênero e a sub-representação de mulheres e pessoas negras na política, enfatizando a violência política como um obstáculo significativo.

10/2/2024

Introdução

Na condução da implementação da Agenda 2030 da ONU no contexto brasileiro, deparamo-nos com desafios jurídicos, políticos e sociais significativos. Um ponto crucial a ser destacado é a fraude relacionada às cotas de gênero nas eleições, uma problemática que, em minha perspectiva, deve ser abordada e rejeitada como uma manifestação de violência política. Trata-se de uma forma direcionada de violência, coordenada por partidos políticos e seus líderes. Nesse contexto, também explorarei a questão da punibilidade, sugerindo que esta não deva recair exclusivamente sobre as mulheres que cometem tal delito, desde que cientes de sua ilegalidade. No entanto, é crucial promover a responsabilização dos dirigentes partidários. Em última análise, não deveríamos sequer ter que ressaltar a inadequação e retrocesso que representa a anistia a partidos políticos que transgridem as leis vigentes. Este artigo busca aprofundar a análise dessas questões, explorando a entrelaçada teia da fraude, as complexidades da punição aos envolvidos, o papel do Tribunal Superior Eleitoral - TSE nos julgamentos, e a interseção desses desafios com os ideais da Agenda 2030 da ONU, dos quais o Brasil é signatário.

As Eleições de 2024 prometem gerar debates intensos sobre os fatores que contribuem para a persistente sub-representação de mulheres, pessoas negras e outros grupos minorizados na política. Até a década de 1990, vários estudos destacavam que preconceitos inibiam mulheres e pessoas negras de se candidatarem, pois o eleitorado subestimaria suas competências para ocupar cargos políticos. Muitas vezes, essas candidatas nem se registravam junto aos partidos, temendo serem recusadas pelos dirigentes em favor de políticos homens cisgêneros brancos, originários das classes médias e altas. Além disso, temiam que os estereótipos disseminados na sociedade, relacionados ao sexismo, racismo e elitismo, levassem eleitores a rejeitarem suas candidaturas. Isso evidencia um problema na oferta de candidaturas de mulheres e pessoas negras, seja pela baixa quantidade de inscritas, seja pela escassez de candidatas competitivas.

Progressivamente, observamos que fatores institucionais, organizacionais e comportamentais intrínsecos às disputas políticas contribuíram para desequilibrar as chances de voto, desfavoravelmente contra esses grupos. Entre esses fatores incluem-se as características do sistema eleitoral, os mecanismos de escolha das candidatas e as normas de financiamento de campanha. Outras barreiras ao sucesso das candidatas nas eleições estão relacionadas ao padrão de recrutamento de candidatas pelos partidos, ao aumento de postulantes aos cargos eleitorais, à forma de arrecadação e distribuição dos recursos para as campanhas, e, por fim, às características da base social de candidatas negras e brancas, sendo que, na maioria das vezes, as primeiras possuem menos recursos pessoais e relacionais para enfrentar uma eleição.

No entanto, um elemento crucial estava ausente nessa equação e, diante de vários eventos recentes, precisa receber a devida atenção. Referimo-nos ao impacto da violência política, que atinge os atores políticos de maneiras distintas e interseccionais, considerando gênero, raça, identidade de gênero, territorialidade e outros marcadores sociais. Seu objetivo principal é inibir, dificultar ou impedir a participação de mulheres, pessoas negras e de outros grupos minorizados nas corridas eleitorais e na permanência em espaços de tomada de decisões.

Constituição Federal, o princípio Aristotélico, feminismo jurídico, as leis vigentes e a violência política de gênero

Não posso subestimar a importância da contextualização nesta parte, como destaco também em meu Ebook "Até Quando um Estado Excludente? Desvendando o Feminismo Jurídico de Maneira Simplificada e Abordando a Violência Política Sob a Ótica do Direito Eleitoral e da Constituição Federal". A Constituição Federal, ao enfatizar a Dignidade Humana (Art. 1º, III) e o princípio da igualdade (Art. 5º), inspirado no princípio Aristotélico, nos conduz a compreender que ela respalda ações afirmativas para atingirmos efetivamente a igualdade. No âmbito da participação política, as cotas de gênero podem ser analisadas sob a luz do princípio aristotélico e interseccional. Ao assegurar uma representação equitativa, essas cotas reconhecem as desigualdades históricas e estruturais enfrentadas por diferentes grupos de mulheres. O artigo 5º da Constituição, ao proclamar a igualdade perante a lei, alinha-se à ideia de Aristóteles de que a justiça requer não apenas tratamento igualitário, mas também diferenciado quando as desigualdades existem.

“Tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades.” (Aristóteles).

A aplicação da interseccionalidade no Feminismo Jurídico, em consonância com a filosofia de Aristóteles, implica reconhecer que as mulheres não formam uma categoria homogênea. Pelo contrário, as experiências das mulheres são profundamente influenciadas por variáveis como raça, classe e orientação sexual. Portanto, ao elaborar políticas e leis que buscam promover a igualdade de gênero, é imperativo considerar as desigualdades inerentes a essas diferentes identidades.

O fenômeno da violência política contra mulheres tem conquistado maior visibilidade ao longo dos últimos trinta anos, na América Latina. Contudo, no Brasil, talvez um marco que despertou o interesse público quanto a esse fundamental debate tenha sido o brutal assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, do Partido Socialismo e Liberdade (Psol), e do motorista Anderson Gomes, na cidade do Rio de Janeiro, no dia 14 de março de 2018. O homicídio de uma pessoa política é um exemplo extremo de violência, uma vez que aniquila não apenas aquela que foi vitimada como também passa o recado de que suas ideias e propostas incomodam, não sendo bem aceitas por outros grupos de espectros políticos diferentes. É, pois, um ato que afeta uma coletividade, que pode, inclusive, inibir que outras pessoas se disponham a participar.

As eleições de 2022 foram as primeiras nas quais duas leis a respeito da violência política estiveram em vigor no Brasil, sendo que a lei 14.197/21 aborda a violência política em seu caráter mais geral e a lei 14.192/21 trata especificamente da violência política contra as mulheres. Embora ainda não haja na legislação menção quanto ao marcador racial ou de identidade de gênero, não podemos ficar indiferentes ao fato de que a violência política contra as mulheres traz em si agravantes interseccionais, como citado acima.

Ainda com base no pleito de 2022, é possível verificar que a violência política se consolidou como mais um obstáculo para ingresso e participação na arena política em nosso país, em razão, talvez, do aumento das candidaturas de mulheres e de pessoas negras e do crescimento de eleitas advindas desses grupos. Embora ainda bem distante de percentuais paritários, as mulheres representaram 35% das candidaturas para a Câmara dos Deputados, chegando a 18% de representantes eleitas. Quanto a postulantes negras/os a essa casa legislativa, perfizeram 49,5% das candidaturas, convertendo-se em apenas 26% das cadeiras.

Retornando ao tema da violência política, os ainda poucos estudos e registros estatísticos a seu respeito têm se ampliado ao redor do mundo e no Brasil, em especial, por causa de diversos incidentes de ameaças, agressões e assassinatos de mulheres e membros de grupos minorizados que foram publicizados recentemente. Em Minas Gerais, por exemplo, vereadoras de Belo Horizonte e deputadas estaduais foram alvo de ameaças de estupro corretivo e de assassinato (contra elas e familiares), que muitos apontam para uma ação orquestrada de intimidação. As ofensas e ameaças na mesma linha direcionadas à ex-deputada federal (RS) Manuela D’Ávila e à vereadora de Niterói (RJ) Benny Briolly, primeira parlamentar trans da cidade, são outros exemplos de casos recentes de violência política contra mulheres.

Para órgãos como a Organização dos Estados Americanos - OEA, a violência política de gênero e raça é um problema de direitos humanos que atinge as democracias contemporâneas. Se levarmos a reflexão para o sentido de discussões canônicas da ciência política, por exemplo, a violência como mecanismo para impedir o livre exercício da participação política e eleitoral derruba, pelo menos, três dos oito pilares da poliarquia, segundo o modelo de democracia do cientista político estadunidense Robert Dahl: direito de se eleger para cargos públicos; direito de líderes políticos de competirem por apoio; e eleições livres e limpas.

Em artigo apresentado durante 47º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), realizado este ano, o pesquisador Huri Paz (Afro-Cebrap/USP) fez uma análise a partir da perspectiva interseccional, no sentido de demonstrar consistentemente que gênero, raça e territorialidade importam e muito para o exercício da carreira política, e que a violência política de gênero e raça não pode ser compreendida como algo corriqueiro e típico da política. Paz abordou os assassinatos de mulheres políticas negras ocorridos no estado do Rio de Janeiro, no período de 1988-2022. A relevância da pesquisa foi reconhecida pelos pares, ficando o trabalho entre os três laureados do Prêmio Luiza Bairros 2023.

A sociedade democrática para todas as pessoas não se resume à formulação de leis ou à realização periódica de eleições. Necessariamente, deve contemplar o amplo direito do exercício da cidadania, a defesa dos direitos humanos e a compreensão de que as diferenças precisam ser compreendidas como pluralidade, não como indutoras de desigualdades. Dessa forma, destacamos que a violência política que, como vimos, recai sobretudo sobre mulheres, pessoas negras e demais grupos minorizados, é mais uma barreira para concretização da democracia no Brasil.

A lei 14.192/21, em seu Artigo 3º, define violência política de gênero como qualquer ação que objetive impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher. É fundamental ressaltar que, ao discutir gênero, não nos referimos à condição biológica, mas sim à identidade de gênero com a qual a pessoa se identifica. A legislação eleitoral, como a Resolução do TSE 23.609 e a Lei dos Partidos Políticos, promove a igualdade de gênero, incluindo a destinação de 30% do Fundo Especial de Financiamento de Campanha para candidaturas femininas.

Também, o Código Eleitoral (Artigo 326-B) e o Código Penal (Artigo 359-P) tipificam crimes eleitorais e criminais, respectivamente, relacionados à violência política de gênero. A proibição de propaganda que incite preconceito (Código Eleitoral, Artigo 243) e as resoluções do TSE (23.609/19 e 23.610/19) reforçam a luta contra manifestações discriminatórias na política. O estímulo à participação feminina por meio da cota de gênero está previsto na legislação brasileira há 26 anos, mais precisamente no artigo 10, parágrafo 3º, da Lei das Eleições (lei 9.504/97). O mecanismo funciona da seguinte forma: cada partido ou coligação deve preencher no mínimo 30% e no máximo 70% para candidaturas de cada sexo, nas eleições para Câmara dos Deputados, Câmara Legislativa do Distrito Federal, Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais.

Fraude à cota de gênero, exemplos práticos, legislação eleitoral e punibilidade

Apesar do compromisso firme do Ministério Público Federal, que monitora mais de 124 casos de violência política de gênero, e também da Justiça Eleitoral e das ações afirmativas para promover a representação feminina na política, o Tribunal Superior Eleitoral - TSE tem enfrentado inúmeros casos de candidaturas femininas fictícias, evidenciando fraudes na chamada cota de gênero. No início do ano de 2023, o TSE analisou a possibilidade de estender aos dirigentes partidários a inelegibilidade decorrente da prática da fraude à cota de gênero nas eleições proporcionais. Esse debate surgiu no julgamento de uma fraude envolvendo candidatos do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e do Avante nas eleições para a Câmara dos Vereadores de Andradina (SP), em 2020.

O ministro Carlos Horbach, relator do caso, propôs revisar a decisão que inicialmente julgou as ações improcedentes, apontando que os partidos utilizaram duas candidaturas fictícias para cumprir a cota mínima de 30% de mulheres. A jurisprudência do TSE é clara ao estabelecer que a inelegibilidade, nos casos de fraude à cota de gênero, se aplica a quem praticou ou, no mínimo, anuiu à fraude. No entanto, é crucial evitar um automatismo na imposição exclusiva dessa punição às mulheres, como alertou a ministra Maria Cláudia Bucchianeri na ocasião.

A complexidade da fraude à cota de gênero, evidenciada nos casos mencionados, destaca a necessidade de aprofundamento nas investigações, especialmente para responsabilizar os dirigentes partidários. O Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, ao afastar a ocorrência de fraude em recurso, sublinhou a importância de incluir os dirigentes nas investigações. Em 2021, o TSE confirmou a participação do dirigente na prática ilícita, sustentando a inelegibilidade conforme o artigo 1º, inciso I, alínea "d" da LC 64/90.

Diante desse cenário, proponho não apenas a exploração dos casos específicos, mas também melhorias, como a inclusão obrigatória de dirigentes partidários nas Ações de Investigação Judicial Eleitoral - AIJEs. Essa abordagem, defendida pela ministra Maria Claudia, visa evitar a banalização do processo, garantindo uma análise mais abrangente e evitando penalizações desproporcionais às candidatas. Há também a preocupação com casos em que as candidatas desconhecem sua própria candidatura. O Tribunal Superior Eleitoral já puniu dirigentes partidários pela fraude à cota de gênero, como no caso das eleições para a Câmara Municipal de Pimenteiras - PI em 2016. O dirigente do PSB local foi confirmado pelo TSE, em 2021, como responsável pelo ilícito eleitoral, destacando a importância de incluir os dirigentes nas investigações.

Em resumo, a análise detalhada desses casos específicos e as propostas de aprimoramento são fundamentais para a compreensão e melhoria do atual cenário político relacionado à fraude à cota de gênero. Os casos específicos mencionados são:

Agenda 2030 da ONU e violência política no Brasil: uma análise detalhada

A interconexão entre a Agenda 2030 da ONU e a fraude à cota de gênero no Brasil destaca-se pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável - ODS voltados à igualdade de gênero. O ODS 5 enfatiza a necessidade de erradicar todas as formas de discriminação e violência contra mulheres, exigindo ações concretas para atingir a igualdade de gênero até 2030. A Agenda 2030 reconhece a igualdade de gênero como um requisito indispensável para as demais transformações almejadas até 2030.

Alguns pontos do objetivo 5 merecem destaque:

“Objetivo 5.  Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas:

- 5.1. Eliminar todas as formas de discriminação contra mulheres e meninas em todas as circunstâncias.

- 5.2. Erradicar todas as formas de violência contra mulheres e meninas, tanto em âmbitos públicos quanto privados, incluindo o tráfico e exploração sexual, entre outras formas.

- 5.5. Assegurar a participação plena e efetiva das mulheres, bem como igualdade de oportunidades para liderança em todos os níveis de tomada de decisões na vida política, econômica e pública.

- 5.b. Aumentar o uso de tecnologias fundamentais, especialmente tecnologias de informação e comunicação, para promover o empoderamento das mulheres.

- 5.c. Adotar e fortalecer políticas sólidas e legislação aplicável para promover a igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulheres e meninas em todas as esferas.”

A ONU Mulheres destaca que a violência política é disseminada e sistemática, demandando a desarticulação de barreiras estruturais e institucionais para sua erradicação. Este contexto exige uma abordagem integrada que vá além da retórica, implementando políticas e leis robustas para alcançar a igualdade de gênero, conforme delineado pelos compromissos da Agenda 2030.

Conclusão

Ao examinar de perto a fraude à cota de gênero, a punibilidade dos envolvidos e o papel do TSE nos julgamentos, torna-se evidente a necessidade premente de uma abordagem mais abrangente e equitativa. A sugestão de incluir obrigatoriamente os dirigentes nas Ações de Investigação Judicial Eleitoral (Aijes), alinhada com os princípios da Agenda 2030 da ONU, emerge como um passo significativo em direção à transparência, equidade e eficácia nas eleições brasileiras. Os ajustes propostos neste artigo, respaldados nos textos revisados acima, buscam não apenas enriquecer o debate, mas também fortalecer a compreensão dos desafios jurídicos neste contexto. Ao promover reflexões sobre os aprimoramentos necessários, visamos assegurar a integridade do processo democrático. Afinal, é por meio de diálogos informados e propostas concretas que podemos moldar um cenário eleitoral mais justo e em consonância com os ideais de igualdade e justiça preconizados pela comunidade internacional.

Isabella Trevisani
Graduada em Gestão Pública, cursando Direito e pós-graduação em Direito Eleitoral, com diversos cursos na área pública e digital.

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