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As normas infralegais que regulamentavam o antigo regime de licitações e contratos seguem em vigor?

Lei 14.133/21 revogou normas sobre licitações. Atos administrativos normativos ligados a esse regime são extintos conforme formas padrão.

9/2/2024

Quando a lei 14.133/21, com a redação que lhe fora conferida pela lei Complementar 198/23, estabeleceu no art. 193, II, alíneas “a”, “b” e “c” que em 30/12/23 estavam revogadas as leis 8.666/93 e 10.520/02 e os arts. 1º a 47-A da lei 12.462/11, o que ocorreu os atos administrativos normativos que regulamentavam esse revogado regime de licitações e contratos?

Bom, de início é preciso esclarecer que os atos administrativos normativos “são comandos gerais e abstratos emanados da Administração Pública, cujo objetivo é a fiel execução da lei. Quanto aos veículos formais adequados para expedição de regulamentos, vale mencionar os decretos regulamentares (decretos normativos), os regimentos, as resoluções, as portarias de conteúdo genérico e as deliberações1”.

E, sendo os decretos, instruções normativas, portarias ou quaisquer outros atos infralegais que regulamentavam o antigo regime de licitações e contratos em sua essência atos administrativos, eles estão sujeitos às mesmas formas de extinção dos demais tipos de atos administrativos.

E quais as formas de extinção dos atos administrativos? Citado por Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Celso Antonio Bandeira de Mello  entende que os atos administrativos extinguem-se pelo cumprimento de seus efeitos (esgotamento do conteúdo jurídico, execução material e implemento de condição resolutiva ou termo final); desaparecimento do sujeito ou do objeto; retirada (revogação, invalidação, cassação, caducidade e contraposição) e renúncia2.

Rafael Carvalho Rezende acrescenta que o ato administrativo “extingue-se naturalmente quando produz seus efeitos ou no advento do prazo nele estipulado3”.

Mencionada extinção natural do ato administrativo também é mencionada por Fernanda Marinela que assevera que “o ato administrativo pode ser extinto por diversas razões: porque já produziu todos os seus efeitos; porque atos ou fatos posteriores interferem de maneira a suspender ou eliminar definitivamente seus efeitos; porque não está mais compatível com a conveniência e a oportunidade do interesse público, ou, ainda, porque não está compatível com o ordenamento jurídico e, até, pelo descumprimento de condições impostas por parte do interessado4 e, na sequência pontua que “o ato administrativo eficaz pode ser extinto devido ao cumprimento de seus efeitos, em diversas circunstâncias que ora passam a ser analisadas. Acontece a extinção do ato pelo cumprimento de seus efeitos quando esgotado o seu conteúdo jurídico5”.

Ainda nessa linha de cumprimento de todos os efeitos de um ato administrativo, Lucas Rocha Furtado classifica de consumando ou exaurido o ato administrativo “que já produziu todos os efeitos que dele se pode esperar"6.

Nos socorrendo das lições de Celso Antonio Bandeira de Mello, Rafael Carvalho Rezende, Fernanda Marinela e Lucas Rocha Furtado podemos dizer que é perfeitamente defensável advogar no sentido de que, com a revogação das leis 8.666/93 e 10.520/02 e dos arts. 1º a 47-A da lei 12.462/11, as normas infralegais que regulamentavam o antigo regime de licitações e contratos restaram extintas em razão do exaurimento dos seus efeitos e do esgotamento dos seus conteúdos jurídicos a partir do momento que deixou de existir uma norma de hierarquia maior para elas regulamentarem.

Em outras palavras: revogada a lei objeto de regulamentação, o ato administrativo normativo que a regulamentava tem seus efeitos exauridos e, portanto, extingue-se.

Veja, considerando ainda que o “ato jurídico apresenta três elementos, sobejamente conhecidos: o agente capaz, a forma prescrita ou não defesa em lei e o objeto lícito”, que o “o ato administrativo, como espécie do ato jurídico, não poderia deixar de ter os mesmos três elementos básicos, próprios do gênero” mas que “sua compreensão, entretanto, necessita a integração de dois outros elementos, que, no genus, poderiam aparecer como acidentais, mas, em se tratando da species, aqui sob exame, são a ela essenciais: a finalidade e o motivo” e que, por fim, “o motivo é o pressuposto de fato e de direito que determina ou possibilita a edição do ato administrativo7, também é perfeitamente defensável advogar que os regulamentos do antigo regime de licitações e contratos, por terem como pressuposto de validade a existência de uma lei para regulamentar, a partir do momento em que a lei que eles regulamentavam é revogada, eles perdem o motivo que justificou a sua edição.

Outra consideração: é inegável que um ato administrativo normativo que regulamenta uma lei é assessório, ao passo que a lei regulamentada é o principal.

Neste particular, faça-se remissão ao art. 92 do Código Civil que preconiza que “principal é o bem que existe sobre si, abstrata ou concretamente; acessório, aquele cuja existência supõe a do principal” e aos comentários de Nestor Duarte que esclarece que “coisa principal é a que tem existência própria, independente de outra, e acessória, a que supõe a existência de outra, a principal” e que “a regra existente no art. 59 do Código anterior, segundo a qual, ‘salvo disposição em contrário, a coisa acessória segue a principal’, não foi repetida no CC/02, entretanto prevalece como forma suplementar de expressão do Direito8”.

Sob tal ótica, não faz sentido que um ato administrativo normativo que regulamentava o antigo regime de licitações e contratos siga em vigor após a revogação de tal regime jurídico, vez que aí o acessório não estaria seguindo o principal.

Entretanto, registre-se que na doutrina há vozes de extrema qualidade e relevância que defendem que: “a) Como regra, com o advento de uma nova legislação, os regulamentos 41 anteriores ficam revogados. b) Se a nova lei que revogou a anterior possuir o mesmo conteúdo material da antecessora (independente da nomenclatura utilizada), os regulamentos antigos podem ser aplicados a ela até que surjam os novos regulamentos. c) Não será possível aplicar os antigos regulamentos quando a nova lei trouxer conteúdo incompatível com a antiga lei ou exigir regulamentação de questão não trazida pela lei anterior. d) Não cabe a repristinação dos regulamentos antigos, caso venham a ser revogados. e) Um mesmo regulamento pode ser aplicado simultaneamente a mais de uma lei. f) o regulamento visa a tratar do conteúdo material da lei, não sobre a lei formal em si. g) a fundamentação lógico-jurídica a embasar as premissas anteriores é a teorização da compatibilização normativa do regulamento com o conteúdo material da lei. Essa construção é reforçada pela aplicação da LINDB e dos precedentes administrativos. h) enquanto não advierem os novos atos normativos para regulamentar a nova Lei de Licitações, poderão ser utilizados os antigos regulamentos e demais atos normativos correlatos, mas somente nas partes em que o conteúdo material (independentemente da nomenclatura) da nova lei for igual aos das antigas leis (leis 8.666/93, 10.520/02 e 12.462/11)9”.

E, questões jurídicas à parte, qual é o principal problema de ordem prática de tal tese?

Tal tese olvida por completo que temos aplicadores da Nova Lei Geral de Licitações e Contratos distribuídos, em órgãos e entidades espraiados na União e em 26 estados, 5.568 municípios e 1 Distrito Federal (e isso falando apenas do Poder Executivo) que terão (por vezes sem apoio de assessoria jurídica ou procuradoria) de analisar se determinado regulamento que regulamentava uma das leis revogadas é ou não materialmente compatível com a lei 14.133/21.

Jogar tal responsabilidade para o aplicador da lei é, na prática, dar azo a um cenário extremamente confuso, onde, dentre outros problemas, poderemos ter diferenças de interpretação que levem determinado regulamento do regime anterior ser aplicado num órgão e não ser aplicado por outro.

Diante de tais considerações, respondemos à pergunta do título afirmando que não, as normas que regulamentavam o antigo regime de licitações e contratos não seguem em vigor.

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1 Oliveira, Rafael Carvalho Rezende, Curso de Direito Administrativo, 5ª. ed. rev., atual. e ampl., Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017, pág. 432.

2 Di Pietro, Maria Sylvia Zanella, Direito administrativo, 27ª. ed., São Paulo: Atlas, 2014, pág. 247.

3 Oliveira, Rafael Carvalho Rezende, Curso de Direito Administrativo, 5ª. ed. rev., atual. e ampl., Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017, pág. 441.

4 Marinela, Fernanda, Direito administrativo, 9ª. ed., São Paulo: Saraiva, 2015, pág. 476.

5 Marinela, Fernanda, Direito administrativo, 9ª. ed., São Paulo: Saraiva, 2015, pág. 477.

6 Furtado, Lucas Rocha, Curso de direito administrativo, 4ª edição revista e atualizada, Belo Horizonte: Fórum, 2013, pág. 232.

7 Moreira Neto, Diogo de Figueiredo, Curso de direito administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial, 16. ed. rev. e atual., Rio de Janeiro : Forense, 2014, pág. 223 e 226.

8 Duarte, Nestor, Código Civil comentado, Coordenador Cezar Peluso, 7ª. ed., Barueri, SP: Manole, 2013, págs. 85/86.

9 Flávio Garcia Cabral, O que ocorre com os regulamentos quando a lei é revogada por uma nova legislação? O caso da Lei nº 14.133/2021, Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 281, n. 1, p. 271-294, jan/abr. 2022.

Aldem Johnston Barbosa Araújo
Advogado em Mello Pimentel Advocacia. Membro da Comissão de Direito à Infraestrutura da OAB/PE. Especialista em Direito Público.

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