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O (suposto) dever pré-contratual de informar acerca dos custos e do funcionamento da arbitragem em relações de franquia

Debates nos tribunais sobre dever de informar em arbitragem avançam. Divergências surgem em decisões do TJ/SP, como na Apelação Cível 1003513-24.2020.8.26.0271. Artigo propõe padrões dogmáticos no dever pré-contratual de informar sobre procedimento arbitral e custos.

8/2/2024

O debate sobre a existência de um dever de informar sobre os custos e o funcionamento de uma eventual arbitragem vem ganhando corpo nos tribunais a partir de uma série de decisões do TJ/SP. É possível perceber o surgimento de duas correntes distintas, sustentando posições diametralmente opostas. Nesse sentido, o presente artigo se propõe a contribuir para o debate, traçando padrões dogmáticos acerca da profundidade do dever pré-contratual de informar ao parceiro de negócios sobre o funcionamento do procedimento arbitral e dos respectivos custos. 

Um dos leading cases é a Apelação Cível 1003513-24.2020.8.26.0271, julgada pela 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ/SP em 1º de junho de 2022, em decisão de relatoria do Desembargador Alexandre Lazzarini. O acórdão analisa uma apelação relacionada a um contrato de franquia, com lentes focadas na cláusula compromissória. 

Os apelantes alegaram que o contrato continha uma cláusula compromissória patológica, pois obrigaria o franqueado a se submeter à via arbitral, o que violaria o princípio da inafastabilidade da jurisdição. Ademais, os franqueados argumentaram que não foram previamente informados sobre os custos da arbitragem, o que levaria à invalidade da avença. A franqueadora, em defesa, sustentou a validade do contrato e das cláusulas, e invocou a exceção de arbitragem para conduzir a controvérsia à jurisdição arbitral.

O TJ/SP, naquela hipótese, ao analisar a questão, elencou dois argumentos principais para concluir pela invalidade da convenção de arbitragem. Primeiramente, haveria violação do dever de informação, por não ter sido explicado ao contratante o funcionamento (e custos) do procedimento arbitral, e a não disponibilização prévia destas informações acarretaria a invalidade da convenção de arbitragem. Segundo, entendeu-se que a inserção de cláusula compromissória em contrato de franquia, mesmo atendendo aos requisitos formais previstos pela Lei de Arbitragem, pode caracterizar abuso de direito, se inibisse o acesso ao Poder Judiciário. 

Sobre o primeiro argumento, entendeu o acórdão que “a informação e o esclarecimento das condições do contrato de franquia, são fatores de validade da própria relação contratual” e que “a ausência adequada da informação e do esclarecimento, que são inerentes ao contrato de franquia (e a razão da Circular de Oferta de Franquia - COF) fulmina o contrato no que diz respeito à cláusula compromissória”. Assim, percebe-se que o acórdão qualificou aquele específico dever de informar como requisito  de validade da convenção de arbitragem. 

Sobre o segundo argumento, asseverou o mesmo acórdão que “o franqueado não tem acesso ao sistema estatal de justiça, em razão da cláusula que prevê a arbitragem como forma de solução de conflitos” e que “o franqueado não tem acesso ao sistema privado de justiça, pois não tem capacidade financeira de arcar com os custos de uma arbitragem”. Essa situação, na visão exposta na referida decisão, faria com que a parte só encontrasse “portas fechadas, uma por questão jurídica-formal, outra em razão de um fato financeiro, que lhe impede de exercer um direito (portanto, incide a regra do art. 187 do Código Civil)”. Assim, percebe-se a realização de uma associação entre a situação de impecuniosidade da franqueada e do instituto do abuso de direito. 

No entanto, é possível encontrar na própria jurisprudência do mesmo TJ/SP julgados que adotam posição oposta, como é o caso da Apelação Civil 1003245-29.2020.8.26.0510, julgada pela 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ/SP, em 18 de outubro de 2021, de relatoria do Desembargador Jorge Tosta. Nessa oportunidade, a franqueada também pretendeu o afastamento da convenção de arbitragem “sob a alegação de que a autora é leiga e que não tinha conhecimento de quão custoso é um procedimento arbitral”.

A Corte paulista rejeitou a linha de argumentação da franqueada com base em três fundamentos principais. Primeiramente, pelo fato de a franqueada ser empresária, e, portanto, “afeiçoada às questões negociais, não podendo alegar ignorância ou erro em relação à cláusula compromissória”. Segundo, pela não observância do ônus de auto informação da franqueada, pois “cabia à contratante informar-se acerca de tais questões, tendo a possibilidade de afastar a cláusula compromissória da avença. Assim, contudo, não procedeu, não podendo agora tisnar de inválida a referida cláusula, ante os alegados custos elevados da arbitragem”. Terceiro, pelo fato de a lei de franquia (lei 13.966, de 26.12.19, art. 7º, §1º) prever expressamente a possibilidade de as partes elegerem o juízo arbitral para solução das controvérsias.

Da comparação dos dois julgados, que seguem linhas jurisprudenciais distintas, destacam-se três pontos centrais para a análise dogmática do tema. Primeiro, há um dever de informar pré-contratual referente aos custos e funcionamento da arbitragem? Segundo, caso haja esse dever, a sua violação implica a invalidade da cláusula compromissória? Terceiro, a pactuação de cláusula compromissória, em contexto de impecuniosidade da franqueada, pode caracterizar abuso de direito, considerando a expressa autorização legal da utilização da arbitragem nesses contratos?   

Acerca do dever de informar pré-contratual, é inegável o amplo reconhecimento deste dever genérico pelo Direito Brasileiro. Trata-se de dever de fonte legal, decorrente da boa-fé objetiva, cujo objeto é a proteção e a preservação da integridade da esfera jurídica e da confiança dos integrantes da negociação1. No entanto, reconhece-se que a manifestação da boa-fé objetiva apresenta traços específicos no contexto das relações empresariais. Em tais situações, há de se considerar um standard mínimo de diligência que deriva do caráter profissional dessas relações, e que servirá para balizar a incidência dos deveres pré-contratuais2

Dessa forma, como em toda a relação jurídica desenvolvida sob os auspícios da boa-fé objetiva, é necessário haver o preenchimento de determinados requisitos para a efetiva configuração de um dever pré-contratual de informação, especificamente: (i) a existência de uma informação relevante; (ii) o conhecimento da informação pela parte incumbida de informar; e (iii) o desconhecimento legítimo da informação pela parte interessada.

Os custos do procedimento arbitral - bem como outras questões centrais ao funcionamento desse método de solução de conflitos - tendencialmente preenchem dois desses três requisitos: trata-se de uma informação relevante para o projeto de contratação das partes e, presumivelmente, aquela que propõe a escolha da arbitragem como método de resolução de conflitos conhece as implicações dessa escolha. 

Estando dois dos requisitos satisfeitos, resta averiguar o terceiro e mais relevante para o objeto deste estudo, i.e a existência de desconhecimento legítimo da parte credora da informação. 

O interessado na informação não pode pretender ser tutelado diante de uma situação de ignorância ilegítima, ou seja, quando puder conhecer a informação por seus próprios meios ou através de dispêndio de custos razoáveis3. A busca por informações só será dotada de sentido econômico caso estas tenham o potencial de evitar custos superiores àqueles inerentes à obtenção de informação. Por essa razão, a ordem jurídica impõe o dever de informar à parte que mais facilmente pode acessar a informação - como é o caso das companhias abertas, na hipótese da divulgação para o mercado, ou do árbitro, nas revelações que deve fazer para as partes. 

Em contratos paritários, o dever de informar de um contratante convive com o ônus de auto-informação do outro. O padrão de diligência em relação aos próprios interesses decorre tanto da autonomia privada quanto do critério da razoabilidade4. Assim, somente haverá dever de informar sobre circunstâncias que se estimem imprescindíveis para o aceite de determinada relação contratual e que não sejam facilmente acessadas pelo outro contratante5.

É linha de entendimento consolidada do STJ que “o franqueado não é consumidor de produtos ou serviços da franqueadora, mas aquele que os comercializa junto a terceiros, este sim, os destinatários finais” 6. Nesse aspecto, importa apontar que a Lei de Liberdade Econômica, aprovada em 2019, passou a prever que os contratos empresariais “presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção”.

Assim, o ônus de auto informação do franqueado deve seguir os parâmetros típicos de qualquer relação empresarial, o que, por consequência, tornam raros os casos em que o franqueado poderá alegar “desconhecimento legítimo” acerca dos custos e do funcionamento do procedimento arbitral. Trata-se de informações normalmente públicas, de fácil acesso, e inseridas no âmbito do ônus de auto informação do contratante. 

Milita também em favor da inexistência de um dever de informar o “princípio da difusão suficiente7, segundo o qual se tem por fato sabido aquele que se apresenta com grande probabilidade de ser conhecido. Por essa razão, fatos de domínio público (como as custas de um procedimento arbitral e as consequências da opção pela arbitragem), cognoscíveis facilmente, intensificam o ônus de auto informação do contratante, não havendo razão para configuração de um dever informacional específico sobre esse fato. Nos casos analisados, bastava que as partes acessassem previamente à assinatura do contrato de franquia o site das instituições arbitrais referidas para tomar conhecimento das informações relevantes.

Dessa sorte, somente em casos excepcionais, em que o contrato de franquia é caracterizado como contrato de consumo, ou que as informações sobre a arbitragem não se encontrem facilmente disponíveis, que poderá haver a caracterização de um dever pré-contratual de alertar ao franqueado sobre as consequências da pactuação de cláusula compromissória. Assim, a regra geral é no sentido de não existência de um dever de informar do franqueador ao franqueado sobre as consequências da pactuação de cláusula compromissória. 

Na sequência, cabe averiguar as consequências da eventual violação do dever de informar pré-contratual, nos casos em que esse efetivamente é perquirível. A decisão da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ/SP parece criar uma falsa simetria entre a não divulgação de informação e a invalidade da convenção de arbitragem. 

Contudo, via de regra, a violação de dever de proteção pré-contratual dá ensejo à responsabilidade aquiliana, culpa in contrahendo, não caracterizando necessariamente causa de invalidade de negócio jurídico. Essencialmente, haverá invalidade somente se estiverem preenchidos, no caso concreto, os requisitos necessários à configuração de erro e/ou de dolo informativo omissivo essencial. Portanto, não bastaria a mera falta de informação para que se conclua pela invalidação da convenção de arbitragem. 

Por fim, cabe analisar a eventual caracterização de abuso de direito na pactuação da convenção de arbitragem. Nesse aspecto, a 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ/SP reconheceu a existência da prática de “algumas empresas franqueadoras em instituir a cláusula compromissória com o objetivo de afastar a jurisdição estatal e dificultar o acesso à Justiça ao franqueado e à própria discussão das demais cláusulas do contrato, ante os custos por vezes elevados dessa forma alternativa de solução de conflito”. 

De fato, é necessário reconhecer que a contratação por adesão de convenção de arbitragem pode, em algumas situações, levar à “inexistência de porta” de acesso à justiça - o que, indubitavelmente - configura prática ilícita. A arbitragem é meio de acesso à justiça, não podendo ser pactuada em caráter emulativo, tentando impedir que um dos contratantes busque os respectivos direitos. 

No entanto, há necessidade de parâmetros para averiguar, especificamente, se há ou não abuso na pactuação da arbitragem em contratos marcados pela dependência econômica entre os contratantes. Nesse quesito, a mera impecuniosidade não é suficiente para configurar abusividade na contratação da arbitragem como forma de solução de conflitos. Em verdade, quando há impecuniosidade originária (i.e que se manifesta desde o início da relação comercial), essa teria de ser divulgada para a contraparte. E, em caso de impecuniosidade superveniente, essa é tendencialmente irrelevante para a análise da validade e da eficácia da convenção de arbitragem. 

Em todo caso, a arbitragem já é pacificamente reconhecida como método jurisdicional adequado para várias situações que envolvem empresas em crise, em processos de recuperação judicial ou falimentar. Por essa razão, a simples impecuniosidade não basta para permitir a incidência do instituto do abuso de direito para afastar a eficácia da convenção de arbitragem.

Em síntese, em um contexto de volatilidade da jurisprudência sobre o dever pré-contratual de informar sobre a arbitragem, urge a formulação de distinções dogmáticas precisas, aptas a conferir critérios seguros e replicáveis para avaliar tais situações, como forma de conferir maior previsibilidade e segurança jurídica. Nesse quesito, importa que as decisões judiciais estejam pautadas em requisitos claros e compatíveis com as premissas já consolidadas acerca da arbitragem no contexto de contratos de franquia - i.e, tomando como ponto de partida a regra geral do caráter empresarial da relação. A partir daí, importa avaliar a incidência da boa-fé objetiva (e dos deveres dela decorrentes, como o dever de informar pré-contratual) diante das peculiaridades dessa relação, sob pena de desvirtuar o propósito do instituto ao utilizar a boa-fé para decidir conforme concepções particulares de justiça, desgarradas do necessário rigor e criteriologia científicos. 

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1 BENETTI, Giovana. Dolo no Direito Civil: uma análise da omissão de informações. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 225.

2 SALTON, Rodrigo. O Regime da “Informação” na Fase Pré-Contratual e as Operações de M&A. São Paulo: Quartier Latin, 2023, II. 2.1.

3 SALTON, Rodrigo. O Regime da “Informação” na Fase Pré-Contratual e as Operações de M&A. São Paulo: Quartier Latin, 2023, III.1.2.

4 MARTINS-COSTA, Judith. Um Aspecto da Obrigação de Indenizar: notas para uma sistematização dos deveres pré-negociais de proteção no direito civil brasileiro. Revista dos Tribunais, vol. 867, p. 11-51, 2008, p. 17.

5 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado: Critérios para a sua Aplicação. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 592.

6 STJ. Recurso Especial 1.602.076/SP.  Min. Rel. Nancy Andrighi. Terceira Turma. J. em: 15.09.2016.

7 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo I. Atualizado por Judith Martins-Costa, Gustavo Haical e Jorge Cesa Ferreira da Silva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 218.

José Antonio Fichtner
José Antonio Fichtner se destaca como advogado, escritor, mediador, árbitro e professor, sendo reconhecido e listado nas principais instituições jurídicas arbitrais brasileiras.

Rodrigo Salton
Bacharel em direito pela UFRGS. Especialização em Direito Civil e Processo Civil na FMP. LLM em Advocacia Corporativa na FMP. Advogado. Sócio de Fichtner Advogados.

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