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A IN 93/24 do TCU e os desafios na regulamentação das transferências especiais

EC 105/2019 introduziu "emendas pix" na gestão orçamentária, agilizando recursos para entes federativos. Controle externo busca regulamentação, enfrentando lacunas com interpretação hermenêutica.

6/2/2024

Em um texto recente, discutimos aspectos polêmicos introduzidos pela Emenda Constitucional 105/19, que, ao inserir o Art. 166-A na CF/88, inovou na gestão orçamentária brasileira ao admitir as transferências especiais (emendas parlamentares individuais impositivas), também apelidadas de “emendas pix”, a fim de agilizar a alocação de recursos federais para Estados, DF e Municípios.

Mesmo com a proposital exclusão de menções aos órgãos responsáveis pela fiscalização desta modalidade de transferências voluntárias, o Sistema de Controle Externo nacional (federal, estadual e distrital) tem buscado em bases já estabelecidas, constitucionais e infraconstitucionais, os fundamentos para regulamentação da matéria e para atuação de seu aparato de acompanhamento e fiscalização. 

Parece que os constituintes derivados não atentaram para um tópico da Teoria do Direito, nas lições de Hans Kelsen, para quem as lacunas no/do direito eram meras ficções. As lacunas nos textos legais são sempre superadas, ainda que pela atividade interpretativa extensiva e analógica. O ordenamento normativo vigente, em uma ação de complementação hermenêutica, orientará o preenchimento do “hiato” normativo, desde que respeitadas a coerência e a integridade do sistema. Obviamente, o resultado desta atividade exegética integrativa, gera, por vezes, crítica e desconfiança.    

Defende-se aqui que os membros e servidores das Cortes de Contas atuam, em diversas oportunidades, como verdadeiros “heróis da resistência”, em prol do aperfeiçoamento da Administração Pública, sempre em busca do maior benefício para a Sociedade. Ruy Barbosa, Patrono dos Tribunais de Contas, e um dos “heróis da Pátria”, citado no “livro de aço” do Congresso Nacional, já profetizava que a Corte de Contas deveria atuar como “vigia” e com “a mão forte”, com plenas garantias para o exercício efetivo de suas funções constitucionais, evitando que se tornasse em uma “instituição de ornato aparatoso e inútil”.

O TCU, bem como seus congêneres estaduais, municipais e distrital, tem assumido essa árdua missão. De quando em quando enfrentando oposições, ameaças e revezes, mas ancorando suas ações no pensamento de Serzedello Corrêa, que o via como a “[...] instituição que será a garantia de boa administração e o maior embaraço que poderão encontrar os governos para a prática de abusos no que diz respeito a dinheiros públicos”. Em um modelo federalista complexo e insólito, nos campos político, legiferante, tributário e orçamentário, somente em cooperação os objetivos constitucionais podem ser garantidos e alcançados.

Sobre a fiscalização das “emendas pix”, alguns Tribunais de Contas assumiram a dianteira no enfrentamento dos riscos criados pelo modelo flexível criado pelo Art.  166-A da CF/1988. O TCE do Paraná, por exemplo, disponibiliza em seu site, desde 2022, um painel interativo que permite acompanhar dados relativos aos valores transferidos ao Estado e aos municípios paranaenses por intermédio das referidas emendas, tornando possível o exercício tanto do controle institucional como social.

Por sua vez, a Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil - ATRICON, também em 2022, elaborou e difundiu a “Nota Recomendatória Atricon 01/22”, com importantes direcionamentos aos Tribunais de Contas brasileiros, para a atuação em relação às transferências especiais. Este documento acabou influenciando as deliberações do TCU, especialmente na construção da Instrução Normativa TCU 93/24 que tenta suprir as referidas lacunas da E.C. 105/19. 

O Acórdão 518/23 – Plenário já havia definido que a partir da liberação, via ordem bancária, dos recursos outrora pertencentes ao orçamento da União para o ente beneficiário, não caberia mais ação fiscalizatória de órgãos de controle federais quanto à sua aplicação, mantendo-se, contudo, a competência do TCU para fiscalizar o cumprimento das quatro condicionantes contidas no Art. 166-A, que são: 1. Vedação do uso dos recursos para o pagamento de "despesas com pessoal e encargos sociais relativas a ativos e inativos, e com pensionistas"; 2. Vedação do uso dos recursos para o pagamento de "encargos referentes ao serviço da dívida"; 3. Obrigação do uso dos recursos exclusivamente "em programações finalísticas das áreas de competência do Poder Executivo" local; e 4. Obrigação do uso de "pelo menos 70% " dos recursos "em despesas de capital". 

O “cheque em branco” com o qual alguns deputados federais, senadores, prefeitos e governadores sonharam, estava sustado! 

Dois focos de atuação bem distintos foram estabelecidos. Um de fiscalização da aplicação dos recursos, direcionados aos Tribunais de Contas estaduais, municipais e distrital. Outro, de fiscalização das condicionantes do Art. 166-A, mantida sob a competência do TCU. A IN TCU 93/24 é o resultado do esforço regulamentador e uniformizador da Corte de Contas da União. O encaminhamento normativo proposto pelo Plenário do TCU segue uma lógica interpretativa indutiva, difícil de questionar em um Estado constitucional de Direito, que impõe a sujeição de todos aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. 

Mas um alerta é necessário e cabível! Ainda que o TCU assuma e exerça, naturalmente, um papel destacado e norteador no Sistema de Controle Externo pátrio, efetivamente não há nenhuma hierarquia entre os Tribunais de Contas brasileiros, pois cada um possui competências e jurisdições próprias, definidas tanto pelo texto da CF/88, como pelas Constituições estaduais, e até por Leis Orgânicas, como no caso do TCM-SP e do TCM-RJ. Assim, qualquer regulamentação de caráter geral precisa encontrar tanto adequação jurídica ao Ordenamento vigente, como eco e receptividade política em todos os coprotagonistas do Sistema de controle. Nesse último ponto, tem sido fundamental o papel da ATRICON. 

Na proposta de Instrução Normativa do TCU, uma das diretrizes destacadas foi: “elaborar um texto conciso, que buscasse não interferir, de maneira indevida, nas atribuições dos sistemas de controle local sobre a fiscalização da execução dos recursos transferidos por meio das emendas especiais”. Definitivamente não é tarefa fácil, principalmente em um (con)texto constitucional (E.C. 105/19), que lembrou Chacrinha, conhecido artista brasileiro, que dizia: “Eu não vim para explicar. Eu vim para confundir”. O texto final do Art. 166-A pareceu mesmo querer “confundir” nosso Sistema de Controle externo, entretanto, não obteve êxito. 

Nos “considerandos” da I.N. TCU – 93/24 foi lembrado que a própria CF/1988 bem como a lei 8.443/92 estabelecem as suas competências, inclusive o poder regulamentar para expedição de atos e instruções normativas naquelas matérias sujeitas às suas atribuições e a respeito dos processos sob sua competência. Também ficaram assentadas os fundamentos que levaram o TCU a construir a sistemática procedimental, tão bem explicada no Acórdão 518/23 – Plenário, ainda que nesses pontos, como escrito acima, já se caminhe pela senda hermenêutica, ou seja, o texto não é tão claro e diretivo como deveria ser. 

Assim, o Art. 1 da I.N. TCU – 93/24 reafirma que o TCU fiscalizará as transferências especiais “para fins de verificação do atendimento das condicionantes impostas nos incisos I e II do §1º, no inciso III do §2º e no §5º do art. 166-A” da CF/1988, cabendo aos órgãos do sistema de controle externo local (estadual, distrital e municipal) a “fiscalização sobre a regularidade das despesas efetuadas na aplicação de recursos recebidos”. Deixando, ainda, asseverado o caráter vinculante das disposições, para os “entes federados beneficiados das referidas transferências especiais”. 

Para garantir a transparência, controle social e permitir a verificação do atendimento das condicionantes constitucionais pelo TCU, o Art. 2º impõe aos entes beneficiados com as transferências especiais o dever de inserir informações e documentos na plataforma Transferegov.br, estabelecendo, também, prazos para notificação do Tribunal de Contas local sobre o recebimento das “emendas pix” e para inserção dos dados na plataforma citada, bem como os conteúdos mínimos que devem ser informados. 

O Art. 3º estipula que os entes federados beneficiados devem apresentar um “relatório de gestão”, que também deverá será incorporado ao Transferegov.br, até o dia 30 de junho do ano subsequente ao recebimento dos recursos, e atualizado anualmente, se for o caso. Já o Art. 4º fixa prazos para a finalização da execução do objeto que justificou o repasse dos recursos, via transferências especiais, sendo o menor de 36 meses, para transferências até R$ 2.500.000,00 e o maior de 60 meses, para transferências acima de R$ 5.000.000,00, admitindo prorrogações, conforme as excepcionalidades especificadas no Art. 5º.

Não se pode negar, que o caráter vinculativo de algumas Instruções Normativas do TCU é criticado por parte da doutrina administrativista, pois flertariam por um lado com invasão de competências de outros órgãos de controle externo locais, e de outro com desrespeito à autonomia dos entes federados. A nosso sentir, é melhor ter-se alguma regulamentação, ainda que carente de aperfeiçoamento, do que nenhuma, ou pior, várias, mas conflitantes entre si, que permitam a malversação de recursos públicos, sem a possibilidade de reação estatal.    

Também podem surgir questionamentos quanto à imposição de obrigações não constantes de lei, em sentido estrito, contudo, os procedimentos e prazos propostos são absolutamente necessários, adequados e proporcionais, para que qualquer atividade de fiscalização seja realizada, em um contexto de governança e accountability, sem dúvida respaldados no Ordenamento, em sentido amplo.  

Quanto à fiscalização propriamente dita, no Art. 6º, ficam estabelecidas diretrizes procedimentais já aplicadas ordinariamente pelo TCU e seus órgãos, ou seja, apenas reafirmou os mecanismos tradicionais de ação, sem maiores inovações, podendo ser destacado apenas que a fonte principal é a plataforma Transferegov.br. O § 4º do referido dispositivo merece um realce, pois estabelece que se o TCU receber denúncia que não se refira às condicionantes do Art. 166-A da CF/1988, deve remetê-la ao “Tribunal de Contas Estadual, Distrital ou Municipal” do ente beneficiado, para que este adote as providências fiscalizatórias pertinentes.

De acordo com os preceitos do Art. 7º, em caso de inobservância ou omissão quanto às condicionantes, aos deveres associados à verificação de procedimentos e prazos, e ainda quanto à plena execução do objeto, o TCU intervirá para que as pendências sejam regularizadas, sob pena de ser instaurado o devido (e temido), “processo de tomada de contas especial”, com as consequências sancionatórias já conhecidas. A I.N. TCU – 93/24 já informa que o Tribunal de contas ao qual o ente beneficiado está vinculado, será informado para que outras medidas cabíveis sejam tomadas. 

A colaboração/cooperação/coordenação entre diferentes órgãos de controle será fundamental para que o sistema de fiscalização funcione com coesão, robustez e eficiência, evitando conflitos e sobreposição de esforços, ou o pior: lacunas no acompanhamento que facilitem e permitam a prática de irregularidades.

O TCU fez sua parte, em um contexto no qual prevaleciam a insegurança jurídica e omissões que potencializavam os riscos em uma nova modalidade de transferências voluntárias. Mas a jornada ainda parece longa e desafiadora. No Sistema de Controle, é preciso investir em coordenação e cooperação com todos os Tribunais de contas locais, com a Controladoria-Geral da União e com as Controladorias (Auditorias) estaduais e municipais, tal qual com os Ministérios Públicos de Contas. 

No campo político e jurídico o Congresso Nacional deveria incorporar as diretrizes estabelecidas pela I.N. TCU – 93/24 tanto às próximas LDO’s, como em normas infraconstitucionais. O Executivo Federal precisa atualizar os regulamentos que possui sobre a matéria, especialmente as Portarias Interministeriais ME/SEGOV 6.411/21 e MPO/MGI/SRI-PR 1/23, promovendo uniformidade, atualização e segurança jurídica. 

Ruy Barbosa alertava: “Nenhuma instituição é mais relevante, para o movimento regular do mecanismo administrativo e político de um povo, do que a lei orçamentaria. Mas em nenhuma também há maior facilidade aos mais graves e perigosos abusos”. Portanto, não havendo perspectiva de alteração constitucional visando restringir as “emendas pix”, o Sistema de Controle precisa aperfeiçoar constantemente seus processos, garantindo que os princípios de eficiência, integridade, ética e responsabilidade na gestão pública sejam mantidos e potencializados, prevenindo-se o mau uso dos recursos públicos.

Giussepp Mendes
Advogado especialista em direito administrativo público.

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