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Cifra oculta da criminalidade: crimes que não chegam ao conhecimento do Judiciário

Estatísticas criminais revelam parte não registrada da criminalidade. Pesquisas sobre cifra oculta avançam para entender como delitos são reportados, direcionando ação preventiva ou repressiva. Controle social do crime e papel da vítima são reavaliados no sistema de justiça criminal.

7/2/2024

As informações estatísticas no campo das ciências criminais são ferramentas bastante úteis para compreender uma parte da criminalidade que não é registrada nas instâncias penais. Apesar dos antecedentes históricos, as pesquisas sobre a cifra oculta têm avançado em resposta à necessidade atual do Estado de compreender como os delitos são reportados às agências de controle social do crime. Isso permite direcionar a atuação preventiva ou repressiva em relação à criminalidade.

Primeiramente, é fundamental compreender as modalidades de controle social do crime, visando reconsiderar o papel da vítima no atual sistema de justiça criminal. Cada sociedade emprega mecanismos disciplinares para garantir a convivência interna de seus membros, sendo, por isso, atribuídos aos tipos penais o papel de orientar as condutas humanas e influenciar comportamentos pessoais e sociais.

Nessa conjuntura, o controle social pode ser caracterizado como o conjunto de mecanismos e sanções sociais destinados a submeter o indivíduo aos modelos e normas comunitários. As instâncias de controle das organizações sociais são comumente divididas entre formal e informal. O controle informal ou difuso é exercido pela sociedade civil, abrangendo elementos como família, escola, profissão, opinião pública e grupos de pressão. Já o controle formal ou institucionalizado é representado pela atuação do aparelho político do Estado, manifestando-se por meio da polícia, da justiça, do exército, do Ministério Público, da administração penitenciária e de todas as entidades correlatas, configurando-se como controle legal e penal.

A esfera informal age através da provisão de educação e socialização do indivíduo. Ela é mais sutil do que as agências formais, exercendo sua influência ao longo de toda a vida da pessoa, ao inculcar valores e normas da sociedade sem recorrer à coerção estatal. Contudo, diante da complexidade das relações sociais, os mecanismos informais de controle social podem enfraquecer ou, até mesmo, tornar-se inoperantes.

A ideia de criminalidade oculta foi desenvolvida a partir das pesquisas de Lambert Adolphe Jacques Quételet (1796-1874), um dos precursores da sociologia moderna e da criminologia com fundamentos sociológicos. Ele fazia parte da Escola Cartográfica, uma ponte entre as abordagens clássicas e positivistas. Segundo o autor, a criminalidade poderia ser expressa por meio de uma função matemática que considerasse os estados econômicos e sociais, destacando a problemática dos crimes não reportados às autoridades. De maneira específica, ele conseguiu conceituar essa ideia de "cifra oculta" ao estabelecer uma conexão constante entre a criminalidade real, aquela aparente, e a criminalidade legal, que resultava em processos judiciais para os acusados.

A criminologia clássica argumenta que é possível compreender a relação causal entre os fatores de criminalidade e os delitos praticados por meio das estatísticas criminais. Contudo, é crucial adotar uma certa dose de precisão ao analisar as estatísticas criminais oficiais, considerando que existe uma quantidade significativa de delitos não reportados ao Poder Público, seja devido à inatividade ou desinteresse das vítimas, seja por outras causas, incluindo erros na coleta de dados, manipulação de informações pelo Estado e funcionamento seletivo das instâncias formais e informais de controle.

A "cifra negra", também chamada de "cifra obscura" ou "zona obscura" (dark number) da criminalidade, pode ser caracterizada como a diferença entre a criminalidade real (condutas que são efetivamente passíveis de criminalização, ou seja, a totalidade de delitos realmente cometidos) e a criminalidade estatística, aparente, revelada (aquela oficialmente registrada ou que chega ao conhecimento dos órgãos de controle). Em resumo, refere-se à porcentagem de crimes não comunicados ou esclarecidos.

Além disso, podem-se apontar alguns motivos que explicam essa criminalidade informal, evidenciada pelo descrédito da população no sistema repressor do estado, que é percebido como burocrático na busca por punição estatal. Outro aspecto é a consideração de que os mecanismos sociais são ineficazes para que as vítimas alcancem um desfecho desejado. Assim, embora haja possibilidade de solução para suas demandas, muitas vezes, a vítima evita buscar esses recursos devido ao receio de enfrentar constrangimentos.

Existem várias técnicas para avaliar a delinquência oculta. A primeira consiste em investigações de autoconfissão, que envolvem a realização de pesquisas anônimas para determinar quantas pessoas cometeram certos atos em um período específico. A segunda técnica é a pesquisa de vitimização, na qual são realizadas pesquisas em uma amostra representativa da população para identificar o número de vítimas, o tipo de crime e o período de tempo. A terceira técnica envolve a coleta de informações junto a informantes criminais, oferecendo a vantagem de apresentar uma amostragem mais desinibida e confiável. Os informantes são questionados sobre as circunstâncias que lhes permitiram ter conhecimento direto sobre a ocorrência de algum delito em um determinado período e local. Finalmente, existe o método de análise das abordagens ou desistências adotadas pelos tribunais e pela polícia. Esse método consiste em representar graficamente as entradas e saídas de crimes e criminosos no sistema de controle formal, em cada uma das fases da detenção e do processo.

Em relação a essa última abordagem, é incontestável que a subnotificação do crime dependerá da instância em que os dados estatísticos são gerados: nem todo crime cometido é perseguido; nem todo crime perseguido é registrado; nem todo crime registrado é investigado pela polícia; nem todo crime investigado é denunciado; nem toda denúncia é recebida; nem todo recebimento resulta em condenação. Em outras palavras, o processo de criminalização, em todas as suas etapas, contribui para a existência de cifras ocultas e, consequentemente, para a redução dos índices de criminalidade.

Ainda se destaca que o infrator pode ser caracterizado de duas maneiras: em sentido material, é o autor de um delito; em sentido formal, é o indivíduo condenado pela justiça com uma sentença transitada em julgado. Para alcançar o status de condenado, é necessário seguir um caminho obrigatório. Caso uma dessas etapas procedimentais seja violada, oficialmente não haverá criminoso, resultando na incidência da cifra oculta da criminalidade. Essa cifra não se restringe à lacuna entre os crimes praticados e os registrados; ela vai além, considerando os crimes cometidos e todo o processo formal necessário para estabelecer a culpabilidade do delinquente. Uma parcela ínfima dos infratores, representando menos de 1% da criminalidade real, possui uma sentença penal condenatória transitada em julgado. Isso ocorre devido à inadequação e ao considerável desencontro no sistema penal entre os programas de ação, como o processo legislativo e a criminalização primária, e os recursos administrativos disponíveis para implementar esses programas.

Com base em tudo o que foi apresentado até agora, é evidente destacar que uma das principais razões para o surgimento das cifras ocultas no âmbito do direito penal é a questão da vitimização ao longo de todo o processo jurídico. Antes de entender a contribuição da vítima na geração da criminalidade oculta, é crucial examinar as diferentes perspectivas sobre o processo de vitimização.

A vitimização primária acontece quando um indivíduo é diretamente impactado pela ocorrência de um ato criminoso. Essa situação pode resultar em diversos tipos de danos, como prejuízos materiais, lesões físicas e impactos psicológicos, variando conforme a natureza da infração e as características da vítima. Já a vitimização secundária emerge das interações entre as vítimas primárias e o Estado no contexto do sistema de repressão, que envolve elementos como a polícia, a burocracia do sistema e a falta de sensibilidade por parte dos operadores do direito, entre outros.

A vitimização secundária está associada à presença de um processo simultâneo de seleção e estigmatização da vítima. O fenômeno de estigmatização ou “revitimização” da vítima ocorre, principalmente, no contexto do processo penal, que é visto como um ambiente angustiante com "cerimônias degradantes". Isso intensifica e amplia os danos, sejam eles materiais ou imateriais, que a vítima já havia sofrido com o delito. Esse rótulo é atribuído principalmente a vítimas do sexo feminino de crimes relacionados à liberdade de autodeterminação sexual, sendo frequente o tratamento delas como suspeitas ou provocativas.

Já a vitimização terciária é caracterizada por um sofrimento excessivo, ultrapassando os limites estabelecidos pela lei do país, mesmo quando há envolvimento direto com o crime. Frente a determinados crimes estigmatizadores, a vítima enfrenta sérias consequências decorrentes do abandono por parte do Estado e, por vezes, da própria comunidade.

Com isso, é certo dizer que a criminalidade estatística não representa, de modo algum, um reflexo preciso da criminalidade real, mas é o resultado de um processo complexo de distorção. Diversos elementos influenciam esse processo, incluindo: a maior ou menor incidência de denúncias de crimes; a percepção social da eficácia do sistema policial e judiciário; a gravidade ou o montante envolvido no crime; se o crime implica ou não em uma situação socialmente constrangedora para a vítima (como estupro ou estelionato); o grau de relacionamento entre a vítima e o agressor; a experiência anterior da vítima com as autoridades policiais; se o bem roubado está segurado ou não; se o policial passa pelo local exatamente no momento da atividade criminosa, entre outros fatores.

Por todo o exposto, resta claro que a cifra oculta dos delitos é um fenômeno relevante a ser ponderado ao examinar as estatísticas criminais, pois a criminalidade real é significativamente superior àquela oficialmente registrada. Além disso, existem distorções nas notificações de crimes que geram uma visão distorcida do fenômeno criminal. O sistema penal não consegue lidar com a totalidade dos crimes em uma sociedade, o que o torna um instrumento seletivo em relação a pessoas e condutas.

Nesse contexto, destaca-se a significativa importância de procurar mecanismos que desestimulem a presença das cifras obscuras, uma vez que estudos criminológicos indicam a ausência de uma causa única em relação à etiologia de comportamentos desviantes. A participação ativa da vítima desempenha um papel crucial no controle da criminalidade. Uma reestruturação do sistema penal é necessária para promover uma maior participação da vítima na resolução de conflitos. Muitos dos delitos registrados pelas autoridades policiais podem ser abordados por meio de políticas criminais restauradoras, reparadoras e integrativas. Ao retirar o conflito do escopo do poder punitivo e incentivar uma comunicação mais efetiva entre "delinquente" e "vítima", proporcionando voz aos protagonistas reais da relação jurídico-penal, podemos trilhar caminhos saudáveis em direção à concretização de um sistema penal mais equilibrado.

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CÂMARA, Guilherme Costa. Programa de política criminal: orientado para a vítima de crime. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.

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OLIVEIRA, Ana Sofia Schmidt de. A vítima e o direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos? 2. ed. Rio de janeiro: Editora Lumen juris, 2007.

Dayanne Avelar
Advogada na Barreto Dolabella. Graduada em Direito pelo Instituto de Ensino Superior de Brasília (IESB) e possui experiência em assessoria jurídica e consultoria no contencioso cível.

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