As informações estatísticas no campo das ciências criminais são ferramentas bastante úteis para compreender uma parte da criminalidade que não é registrada nas instâncias penais. Apesar dos antecedentes históricos, as pesquisas sobre a cifra oculta têm avançado em resposta à necessidade atual do Estado de compreender como os delitos são reportados às agências de controle social do crime. Isso permite direcionar a atuação preventiva ou repressiva em relação à criminalidade.
Primeiramente, é fundamental compreender as modalidades de controle social do crime, visando reconsiderar o papel da vítima no atual sistema de justiça criminal. Cada sociedade emprega mecanismos disciplinares para garantir a convivência interna de seus membros, sendo, por isso, atribuídos aos tipos penais o papel de orientar as condutas humanas e influenciar comportamentos pessoais e sociais.
Nessa conjuntura, o controle social pode ser caracterizado como o conjunto de mecanismos e sanções sociais destinados a submeter o indivíduo aos modelos e normas comunitários. As instâncias de controle das organizações sociais são comumente divididas entre formal e informal. O controle informal ou difuso é exercido pela sociedade civil, abrangendo elementos como família, escola, profissão, opinião pública e grupos de pressão. Já o controle formal ou institucionalizado é representado pela atuação do aparelho político do Estado, manifestando-se por meio da polícia, da justiça, do exército, do Ministério Público, da administração penitenciária e de todas as entidades correlatas, configurando-se como controle legal e penal.
A esfera informal age através da provisão de educação e socialização do indivíduo. Ela é mais sutil do que as agências formais, exercendo sua influência ao longo de toda a vida da pessoa, ao inculcar valores e normas da sociedade sem recorrer à coerção estatal. Contudo, diante da complexidade das relações sociais, os mecanismos informais de controle social podem enfraquecer ou, até mesmo, tornar-se inoperantes.
A ideia de criminalidade oculta foi desenvolvida a partir das pesquisas de Lambert Adolphe Jacques Quételet (1796-1874), um dos precursores da sociologia moderna e da criminologia com fundamentos sociológicos. Ele fazia parte da Escola Cartográfica, uma ponte entre as abordagens clássicas e positivistas. Segundo o autor, a criminalidade poderia ser expressa por meio de uma função matemática que considerasse os estados econômicos e sociais, destacando a problemática dos crimes não reportados às autoridades. De maneira específica, ele conseguiu conceituar essa ideia de "cifra oculta" ao estabelecer uma conexão constante entre a criminalidade real, aquela aparente, e a criminalidade legal, que resultava em processos judiciais para os acusados.
A criminologia clássica argumenta que é possível compreender a relação causal entre os fatores de criminalidade e os delitos praticados por meio das estatísticas criminais. Contudo, é crucial adotar uma certa dose de precisão ao analisar as estatísticas criminais oficiais, considerando que existe uma quantidade significativa de delitos não reportados ao Poder Público, seja devido à inatividade ou desinteresse das vítimas, seja por outras causas, incluindo erros na coleta de dados, manipulação de informações pelo Estado e funcionamento seletivo das instâncias formais e informais de controle.
A "cifra negra", também chamada de "cifra obscura" ou "zona obscura" (dark number) da criminalidade, pode ser caracterizada como a diferença entre a criminalidade real (condutas que são efetivamente passíveis de criminalização, ou seja, a totalidade de delitos realmente cometidos) e a criminalidade estatística, aparente, revelada (aquela oficialmente registrada ou que chega ao conhecimento dos órgãos de controle). Em resumo, refere-se à porcentagem de crimes não comunicados ou esclarecidos.
Além disso, podem-se apontar alguns motivos que explicam essa criminalidade informal, evidenciada pelo descrédito da população no sistema repressor do estado, que é percebido como burocrático na busca por punição estatal. Outro aspecto é a consideração de que os mecanismos sociais são ineficazes para que as vítimas alcancem um desfecho desejado. Assim, embora haja possibilidade de solução para suas demandas, muitas vezes, a vítima evita buscar esses recursos devido ao receio de enfrentar constrangimentos.
Existem várias técnicas para avaliar a delinquência oculta. A primeira consiste em investigações de autoconfissão, que envolvem a realização de pesquisas anônimas para determinar quantas pessoas cometeram certos atos em um período específico. A segunda técnica é a pesquisa de vitimização, na qual são realizadas pesquisas em uma amostra representativa da população para identificar o número de vítimas, o tipo de crime e o período de tempo. A terceira técnica envolve a coleta de informações junto a informantes criminais, oferecendo a vantagem de apresentar uma amostragem mais desinibida e confiável. Os informantes são questionados sobre as circunstâncias que lhes permitiram ter conhecimento direto sobre a ocorrência de algum delito em um determinado período e local. Finalmente, existe o método de análise das abordagens ou desistências adotadas pelos tribunais e pela polícia. Esse método consiste em representar graficamente as entradas e saídas de crimes e criminosos no sistema de controle formal, em cada uma das fases da detenção e do processo.
Em relação a essa última abordagem, é incontestável que a subnotificação do crime dependerá da instância em que os dados estatísticos são gerados: nem todo crime cometido é perseguido; nem todo crime perseguido é registrado; nem todo crime registrado é investigado pela polícia; nem todo crime investigado é denunciado; nem toda denúncia é recebida; nem todo recebimento resulta em condenação. Em outras palavras, o processo de criminalização, em todas as suas etapas, contribui para a existência de cifras ocultas e, consequentemente, para a redução dos índices de criminalidade.
Ainda se destaca que o infrator pode ser caracterizado de duas maneiras: em sentido material, é o autor de um delito; em sentido formal, é o indivíduo condenado pela justiça com uma sentença transitada em julgado. Para alcançar o status de condenado, é necessário seguir um caminho obrigatório. Caso uma dessas etapas procedimentais seja violada, oficialmente não haverá criminoso, resultando na incidência da cifra oculta da criminalidade. Essa cifra não se restringe à lacuna entre os crimes praticados e os registrados; ela vai além, considerando os crimes cometidos e todo o processo formal necessário para estabelecer a culpabilidade do delinquente. Uma parcela ínfima dos infratores, representando menos de 1% da criminalidade real, possui uma sentença penal condenatória transitada em julgado. Isso ocorre devido à inadequação e ao considerável desencontro no sistema penal entre os programas de ação, como o processo legislativo e a criminalização primária, e os recursos administrativos disponíveis para implementar esses programas.
Com base em tudo o que foi apresentado até agora, é evidente destacar que uma das principais razões para o surgimento das cifras ocultas no âmbito do direito penal é a questão da vitimização ao longo de todo o processo jurídico. Antes de entender a contribuição da vítima na geração da criminalidade oculta, é crucial examinar as diferentes perspectivas sobre o processo de vitimização.
A vitimização primária acontece quando um indivíduo é diretamente impactado pela ocorrência de um ato criminoso. Essa situação pode resultar em diversos tipos de danos, como prejuízos materiais, lesões físicas e impactos psicológicos, variando conforme a natureza da infração e as características da vítima. Já a vitimização secundária emerge das interações entre as vítimas primárias e o Estado no contexto do sistema de repressão, que envolve elementos como a polícia, a burocracia do sistema e a falta de sensibilidade por parte dos operadores do direito, entre outros.
A vitimização secundária está associada à presença de um processo simultâneo de seleção e estigmatização da vítima. O fenômeno de estigmatização ou “revitimização” da vítima ocorre, principalmente, no contexto do processo penal, que é visto como um ambiente angustiante com "cerimônias degradantes". Isso intensifica e amplia os danos, sejam eles materiais ou imateriais, que a vítima já havia sofrido com o delito. Esse rótulo é atribuído principalmente a vítimas do sexo feminino de crimes relacionados à liberdade de autodeterminação sexual, sendo frequente o tratamento delas como suspeitas ou provocativas.
Já a vitimização terciária é caracterizada por um sofrimento excessivo, ultrapassando os limites estabelecidos pela lei do país, mesmo quando há envolvimento direto com o crime. Frente a determinados crimes estigmatizadores, a vítima enfrenta sérias consequências decorrentes do abandono por parte do Estado e, por vezes, da própria comunidade.
Com isso, é certo dizer que a criminalidade estatística não representa, de modo algum, um reflexo preciso da criminalidade real, mas é o resultado de um processo complexo de distorção. Diversos elementos influenciam esse processo, incluindo: a maior ou menor incidência de denúncias de crimes; a percepção social da eficácia do sistema policial e judiciário; a gravidade ou o montante envolvido no crime; se o crime implica ou não em uma situação socialmente constrangedora para a vítima (como estupro ou estelionato); o grau de relacionamento entre a vítima e o agressor; a experiência anterior da vítima com as autoridades policiais; se o bem roubado está segurado ou não; se o policial passa pelo local exatamente no momento da atividade criminosa, entre outros fatores.
Por todo o exposto, resta claro que a cifra oculta dos delitos é um fenômeno relevante a ser ponderado ao examinar as estatísticas criminais, pois a criminalidade real é significativamente superior àquela oficialmente registrada. Além disso, existem distorções nas notificações de crimes que geram uma visão distorcida do fenômeno criminal. O sistema penal não consegue lidar com a totalidade dos crimes em uma sociedade, o que o torna um instrumento seletivo em relação a pessoas e condutas.
Nesse contexto, destaca-se a significativa importância de procurar mecanismos que desestimulem a presença das cifras obscuras, uma vez que estudos criminológicos indicam a ausência de uma causa única em relação à etiologia de comportamentos desviantes. A participação ativa da vítima desempenha um papel crucial no controle da criminalidade. Uma reestruturação do sistema penal é necessária para promover uma maior participação da vítima na resolução de conflitos. Muitos dos delitos registrados pelas autoridades policiais podem ser abordados por meio de políticas criminais restauradoras, reparadoras e integrativas. Ao retirar o conflito do escopo do poder punitivo e incentivar uma comunicação mais efetiva entre "delinquente" e "vítima", proporcionando voz aos protagonistas reais da relação jurídico-penal, podemos trilhar caminhos saudáveis em direção à concretização de um sistema penal mais equilibrado.
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