No último dia 29/12/23, o governo publicou a MP 1.202/23, por meio da qual efetivamente promoveu o aumento de tributação, destacando-se entre esses aumentos a “revogação do PERSE” e a “reoneração da folha de salários/pagamentos das empresas”.
Ocorre, porém, que essas novas onerações já haviam sido anteriormente analisadas e expressamente rejeitadas pelo Congresso Nacional, quando da análise e rejeição de vetos presidenciais.
Com efeito, em relação ao PERSE, quando da publicação da lei 14.148/21 (PL 5.638/20), o Presidente da República vetou a alíquota zero de PIS, COFINS, IRPJ e CSLL, pelo prazo certo de 60 meses, prevista no artigo 4º de referida lei. Logo em seguida, porém, o Congresso, de forma soberana, legal e constitucional, entendendo que referida alíquota zero, por referido prazo certo, era essencial para a reparação dos prejuízos que esse setor enfrentou durante a pandemia, derrubou/rejeitou o veto presidencial.
E isso, como se depreende das discussões parlamentares sobre tal veto, de forma a verdadeiramente compensar/indenizar esses agentes econômico pelo seu sacrifício em prol da coletividade (e não simplesmente lhes conceder um benefício), e assim possibilitar a retomada do setor de eventos (e atividades correlatas), o qual foi indiscutivelmente o seguimento econômico que mais sofreu e se sacrificou durante a crise sanitária da COVID19, tendo sido o primeiro ter o seu fechamento determinado pelo Poder Público e o último a ser autorizado a retomar as suas atividades. Não é demais lembrar que a reunião de pessoas em eventos, festas, etc. chegou a ser criminalizada no período de obrigatório fechamento (com prisões aos que desobedeciam a tais restrições), por se entender que o afastamento social era a principal e essencial forma de conter o avanço e a propagação do vírus da COVID19.
Por outro lado, em relação à chamada “desoneração da folha”, a evidência da burla à decisão soberana do Congresso, em verdadeiro ato ditatorial, não é menor.
Realmente, por meio da discussão do PL 334/23, o Congresso prorrogou, por mais 8 anos, a chamada “desoneração” da folha de salários, o qual foi objeto de veto integral do Presidente da República. E por decisão novamente soberana do Congresso, tal veto igualmente foi rejeitado, prevalecendo a vontade da maioria esmagadora do Parlamento, inclusive de parlamentares pertencentes ao grupo de apoio ao governo nas duas Casas Legislativas.
Dessa forma, resta de clareza solar a inconstitucionalidade de tal MP, por afronta ao disposto no artigo 62, caput (relevância e urgência), além dos incisos IV c/c § 10, da CF/88, e, principalmente, ao princípio da moralidade administrativa, inserto no artigo 37 da Magna Carta e à Separação dos Poderes e ao Princípio Democrático, objeto dos artigos 1º e 2º de nossa Magna Carta.
Tais dispositivos e princípios proíbem, sem qualquer sombra de dúvida, por qualquer meio de interpretação, a utilização desse instrumento autocrático e excepcional, a MP, de iniciativa do Presidente da República, fora de situações de urgência e relevância (e não se pode sequer imaginar, em qualquer regime democrático ao menos, ser relevante e/ou urgente a burla de uma decisão soberana e refletida/debatida do Congresso Nacional), para tratar justamente de matérias cujo veto do mesmo Presidente da República já fora analisado e derrubado, por maioria esmagadora do Congresso, “verbis”:
“Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.
§ 1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria:
I - relativa a:
(...)
IV - já disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto do Presidente da República.
(...)
(...)
§ 10. É vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo.”
E isso simplesmente porque aquele que teve a sua vontade (veto) rejeitada pelo Congresso não pode, posteriormente, pretender fazer valer essa mesma vontade preterida, de forma unilateral e antidemocrática, ainda que provisoriamente, como se um ditador fosse.
Com efeito, o jogo democrático impõe instrumentos legais para que a mesmas matérias possam vir a ser eventualmente novamente debatidas na Casa do Povo, após a sua rejeição inicial. Isso deverá se dar, necessariamente, por meio de projetos de lei, amplamente re-debatidos no Congresso (com melhor esclarecimento ou com negociações republicanas); ou, caso o Presidente realmente entenda que seus vetos sejam corretos – com fundamento, por exemplo, em apontadas inconstitucionalidades das medidas anteriormente vetadas – deve ele exercer o seu poder/dever, sob pena de prevaricação inclusive, de acionar o Supremo Tribunal Federal, por meio da competente ação direta de inconstitucionalidade para o qual é parte legítima.
Mas jamais, em hipótese alguma, deve o Presidente da República de uma país democrático pretender fazer valer a sua vontade “na marra”, ou melhor, “na MP”, de matéria já debatida e rejeitada, sob pena de ruína de todo o nosso sistema jurídico, embasado nos princípios da real democracia, da tripartição, independência, harmonia e respeito entre os Poderes da República, e, acima de tudo, da moralidade, a qual não admite tais ardis para que sejam atingidos os objetivos do governo de ocasião.