Migalhas de Peso

A língua portuguesa e o Direito

Poder Judiciário implementa o "Pacto do Judiciário pela Linguagem Simples" para evitar juridiquês, buscando decisões mais compreensíveis à sociedade em todos os níveis e incluindo meios como libras e áudiodescrição.

26/1/2024

1. O mote deste artigo

Conforme notícia trazida pelo Jornal Eletrônico Migalhas de 12.1.24 o Poder Judiciário tomou uma iniciativa voltada para que seja evitado o juridiquês (uma espécie de língua que seria utilizada pelos operadores do direito) de forma a se tornar mais eficiente o entendimento da sociedade sobre os atos da Justiça1. Para esse efeito foi formulado um “Pacto do Judiciário pela Linguagem Simples”. Há muitos problemas relacionados a esse objetivo, devendo se começar para explicar ao leitor leigo o que é “pacto”.

O objetivo geral desse Pacto está em que, no âmbito de todos os segmentos da Justiça e em todos os graus de jurisdição seja adotada linguagem simples, direta e compreensível a todas as pessoas na produção das decisões judiciais e na comunicação geral com a sociedade. Além dos documentos escritos, o pacto inclui o uso da Libras e de audiodescrição, ou outras ferramentas, sempre que for possível. Nesse sentido o compromisso da Magistratura estará em:

  1. eliminar termos excessivamente formais e dispensáveis à compreensão do conteúdo a ser transmitido;
  2. adotar linguagem direta e concisa nos documentos, comunicados públicos, despachos, decisões, sentenças, votos e acórdãos;
  3. explicar, sempre que possível, o impacto da decisão ou do julgamento na vida de cada pessoa e da sociedade brasileira;
  4. utilizar versão resumida dos votos nas sessões de julgamento, sem prejuízo da juntada de versão ampliada nos processos judiciais;
  5. fomentar pronunciamentos objetivos e breves nos eventos organizados pelo Poder Judiciário;
  6. reformular protocolos de eventos, dispensando, sempre que possível, formalidades excessivas; g. utilizar linguagem acessível à pessoa com deficiência (Libras, audiodescrição e outras) e respeitosa à dignidade de toda a sociedade; e
  7. utilizar linguagem acessível à pessoa com deficiência (Libras, audiodescrição e outras) e respeitosa à dignidade de toda a sociedade.

A fundamentação normativa indicada no texto do pacto são a Constituição Federal, e instrumentos internacionais voltados para os direitos humanos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto de São José da Costa Rica, a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação racial (decreto 65.810/69), a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (decreto 10.932/22), as Regras de Brasília Sobre Acesso à Justiça da Pessoas em Condição de Vulnerabilidade e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ODS 16 – Paz, Justiça e Instituições Eficazes).

Além disso, a Constituição Federal de 1988, segundo exposto na justificação do pacto, estabeleceria, entre os direitos e garantias fundamentais, o acesso à justiça, à informação e à razoável duração do processo, os quais apenas podem se concretizar por meio do uso de palavras, termos e expressões compreensíveis por todas as pessoas, bem como sessões de julgamento mais céleres. Ainda, busca-se ampliar o uso de linguagem inclusiva, nos termos estabelecidos pela Recomendação 144 de 25/8/23 e pela Resolução 376 de 2/3/21.

Trata-se de iniciativa de grande envergadura sobre a qual faremos algumas observações que julgamos pertinentes, mas sendo necessário estabelecer antes algumas premissas, a partir de uma breve visão da linguística e, segundo ela, os padrões da língua portuguesa.

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2. Generalidades sobre a língua em geral e sobre a língua portuguesa

Todos sabemos que a língua portuguesa é uma das filhas do latim, levada e modificada pelos romanos quando chegaram à Península Ibérica – como aconteceu em inúmeras outras regiões ocupadas pelos seus exércitos -  fruto de muitos séculos de evolução. Falada em diversos países, ela não é hoje a mesma em que Camões escreveu os Lusíadas e também difere entre os falantes, conforme o lugar do seu nascimento por força, por sua vez, das mudanças de cada cultura.

Devido a um acidente cultural chegou-me às mãos um delicioso livrinho (carinhosamente falando) sobre a história da nossa língua, a chamada “última flor do Lácio”, quando me deparei com ele em uma das estantes da livraria de um hospital ao chegar para fazer uma visita e buscava comprar um presente para o paciente. Trata-se da obra “Latim em pó – um passeio pela formação do nosso português”, escrito por Caetano W. Galindo, na qual nos baseamos para escrever este texto, entre outras fontes2.

Tem havido uma preocupação longínqua com a “estabilidade” do português para que possa atingir com eficiência o seu resultado, isto é a comunicação adequada entre os falantes e os ouvintes, o que é, evidentemente, extremamente importante para o direito. Daquela preocupação nasceu a gramática, que encerra as regras necessárias para que se possa colocar as palavras certas nos lugares certos, mostrando essa noção que se trata de uma visão universal, porque serve a toda e qualquer língua falada neste planeta.

A primeira gramática do nosso português foi elaborada pelo padre Fernão de Oliveira,3 4 (Grammatica da lingoagem Portugueza), de 1536, encomendada por D. Fernando de Almada, seguida pela de João de Barros, editada em Lisboa quatro anos depois, portanto, em 1540.  Veja-se que “Os Lusíadas”, a famosa obra de Camões, foi publicada em 1572, portanto sob já a égide da segunda gramática aqui citada e ao alcance do entendimento dos letrados do seu tempo, não sei dizer qual a sua proporção em relação à população total de Portugal, podendo arriscar que não seria muita gente, pois o acesso à chamada “norma culta” relativa à linguagem estaria restrita a poucos centros de conhecimento o que, ademais, se dá em todos os lugares em todos os tempos.

Tenha-se em conta, o que é intuitivo, serem as gramáticas o repositório das línguas faladas e escritas de sua época, segundo uma criação de baixo para cima, ou seja, dos falantes para os letrados e não de cima para baixo, destes para os primeiros, o que caracterizaria uma artificialidade, conforme tem acontecido na tentativa da construção de uma gramática politicamente correta, tema que será abordado logo adiante.

E também é significativo que os neologismos surgem precisamente em virtude do uso pelos falantes locais de termos importados de línguas estrangeiras e climatizados nas línguas locais, sempre na influenciadas por uma língua franca – aquela falada em diversas regiões, tal como aconteceu com o latim. Modernamente inglês ocupa esse papel de colonização gramatical, não se revelando eficaz a reação dos gramáticos locais.

No sentido acima podemos indicar um exemplo de um verbo inglês que faz parte há algum tempo dos falantes brasileiros, to delete, que aqui passou a ser corriqueiro para significar apagar ou destruir, talvez com um uso mais frequente do que os termos equivalentes no português. Na decorrência de circunstâncias como essa em um dado momento a gramática local passará a incluir tais termos na língua local.

Ora, como se vê, quando os portugueses aqui chegaram em 1500 a língua portuguesa ainda não se encontrava sedimentada em termos de unicidade gramatical, podendo se dizer que ela era, de um lado a que se falava na corte; e, de outro, entre diversas variantes e no tocante àquela que nos interessa, a língua falada pelos tripulantes das caravelas que aqui aportaram.

E é claro que o nosso paciente leitor há de convir que a primeira missa celebrada em nossas terras – em latim – não deve ter sido compreendida nos seus termos pelos marinheiros portugueses e muito menos pelos índios circunstantes, que tudo viam com muita surpresa.

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1 Cf. “Sem data vênia: Judiciário lança iniciativa para facilitar linguagem”, matéria da redação, edição de 12.01.2024.

2 Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2022.

3 Cf. “A grammatica da lingoagem portuguêsa” (Lisboa, 1536) de Fernão de Oliveira (1507-1581) e a linguística portuguesa contemporânea), in  abf/rabf/5/090.pdfwww.filologia.org.br/abf/rabf/5/090, acesso em 08.01.0;pdf, 2024.

4 Note-se um engano da Wikipédia, que atribui essa obra erroneamente a Fernand de Saussure, que foi efetivamente um linguista e filósofo suíço, mas que viveu muito depois da edição da gramática em foco, nascido em Genebra em 1857 e falecido em 1913, conforme pesquisa pelo seu nome na Wikipédia.

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.

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