1. O mote deste artigo
Conforme notícia trazida pelo Jornal Eletrônico Migalhas de 12.1.24 o Poder Judiciário tomou uma iniciativa voltada para que seja evitado o juridiquês (uma espécie de língua que seria utilizada pelos operadores do direito) de forma a se tornar mais eficiente o entendimento da sociedade sobre os atos da Justiça1. Para esse efeito foi formulado um “Pacto do Judiciário pela Linguagem Simples”. Há muitos problemas relacionados a esse objetivo, devendo se começar para explicar ao leitor leigo o que é “pacto”.
O objetivo geral desse Pacto está em que, no âmbito de todos os segmentos da Justiça e em todos os graus de jurisdição seja adotada linguagem simples, direta e compreensível a todas as pessoas na produção das decisões judiciais e na comunicação geral com a sociedade. Além dos documentos escritos, o pacto inclui o uso da Libras e de audiodescrição, ou outras ferramentas, sempre que for possível. Nesse sentido o compromisso da Magistratura estará em:
- eliminar termos excessivamente formais e dispensáveis à compreensão do conteúdo a ser transmitido;
- adotar linguagem direta e concisa nos documentos, comunicados públicos, despachos, decisões, sentenças, votos e acórdãos;
- explicar, sempre que possível, o impacto da decisão ou do julgamento na vida de cada pessoa e da sociedade brasileira;
- utilizar versão resumida dos votos nas sessões de julgamento, sem prejuízo da juntada de versão ampliada nos processos judiciais;
- fomentar pronunciamentos objetivos e breves nos eventos organizados pelo Poder Judiciário;
- reformular protocolos de eventos, dispensando, sempre que possível, formalidades excessivas; g. utilizar linguagem acessível à pessoa com deficiência (Libras, audiodescrição e outras) e respeitosa à dignidade de toda a sociedade; e
- utilizar linguagem acessível à pessoa com deficiência (Libras, audiodescrição e outras) e respeitosa à dignidade de toda a sociedade.
A fundamentação normativa indicada no texto do pacto são a Constituição Federal, e instrumentos internacionais voltados para os direitos humanos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto de São José da Costa Rica, a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação racial (decreto 65.810/69), a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (decreto 10.932/22), as Regras de Brasília Sobre Acesso à Justiça da Pessoas em Condição de Vulnerabilidade e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ODS 16 – Paz, Justiça e Instituições Eficazes).
Além disso, a Constituição Federal de 1988, segundo exposto na justificação do pacto, estabeleceria, entre os direitos e garantias fundamentais, o acesso à justiça, à informação e à razoável duração do processo, os quais apenas podem se concretizar por meio do uso de palavras, termos e expressões compreensíveis por todas as pessoas, bem como sessões de julgamento mais céleres. Ainda, busca-se ampliar o uso de linguagem inclusiva, nos termos estabelecidos pela Recomendação 144 de 25/8/23 e pela Resolução 376 de 2/3/21.
Trata-se de iniciativa de grande envergadura sobre a qual faremos algumas observações que julgamos pertinentes, mas sendo necessário estabelecer antes algumas premissas, a partir de uma breve visão da linguística e, segundo ela, os padrões da língua portuguesa.
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2. Generalidades sobre a língua em geral e sobre a língua portuguesa
Todos sabemos que a língua portuguesa é uma das filhas do latim, levada e modificada pelos romanos quando chegaram à Península Ibérica – como aconteceu em inúmeras outras regiões ocupadas pelos seus exércitos - fruto de muitos séculos de evolução. Falada em diversos países, ela não é hoje a mesma em que Camões escreveu os Lusíadas e também difere entre os falantes, conforme o lugar do seu nascimento por força, por sua vez, das mudanças de cada cultura.
Devido a um acidente cultural chegou-me às mãos um delicioso livrinho (carinhosamente falando) sobre a história da nossa língua, a chamada “última flor do Lácio”, quando me deparei com ele em uma das estantes da livraria de um hospital ao chegar para fazer uma visita e buscava comprar um presente para o paciente. Trata-se da obra “Latim em pó – um passeio pela formação do nosso português”, escrito por Caetano W. Galindo, na qual nos baseamos para escrever este texto, entre outras fontes2.
Tem havido uma preocupação longínqua com a “estabilidade” do português para que possa atingir com eficiência o seu resultado, isto é a comunicação adequada entre os falantes e os ouvintes, o que é, evidentemente, extremamente importante para o direito. Daquela preocupação nasceu a gramática, que encerra as regras necessárias para que se possa colocar as palavras certas nos lugares certos, mostrando essa noção que se trata de uma visão universal, porque serve a toda e qualquer língua falada neste planeta.
A primeira gramática do nosso português foi elaborada pelo padre Fernão de Oliveira,3 4 (Grammatica da lingoagem Portugueza), de 1536, encomendada por D. Fernando de Almada, seguida pela de João de Barros, editada em Lisboa quatro anos depois, portanto, em 1540. Veja-se que “Os Lusíadas”, a famosa obra de Camões, foi publicada em 1572, portanto sob já a égide da segunda gramática aqui citada e ao alcance do entendimento dos letrados do seu tempo, não sei dizer qual a sua proporção em relação à população total de Portugal, podendo arriscar que não seria muita gente, pois o acesso à chamada “norma culta” relativa à linguagem estaria restrita a poucos centros de conhecimento o que, ademais, se dá em todos os lugares em todos os tempos.
Tenha-se em conta, o que é intuitivo, serem as gramáticas o repositório das línguas faladas e escritas de sua época, segundo uma criação de baixo para cima, ou seja, dos falantes para os letrados e não de cima para baixo, destes para os primeiros, o que caracterizaria uma artificialidade, conforme tem acontecido na tentativa da construção de uma gramática politicamente correta, tema que será abordado logo adiante.
E também é significativo que os neologismos surgem precisamente em virtude do uso pelos falantes locais de termos importados de línguas estrangeiras e climatizados nas línguas locais, sempre na influenciadas por uma língua franca – aquela falada em diversas regiões, tal como aconteceu com o latim. Modernamente inglês ocupa esse papel de colonização gramatical, não se revelando eficaz a reação dos gramáticos locais.
No sentido acima podemos indicar um exemplo de um verbo inglês que faz parte há algum tempo dos falantes brasileiros, to delete, que aqui passou a ser corriqueiro para significar apagar ou destruir, talvez com um uso mais frequente do que os termos equivalentes no português. Na decorrência de circunstâncias como essa em um dado momento a gramática local passará a incluir tais termos na língua local.
Ora, como se vê, quando os portugueses aqui chegaram em 1500 a língua portuguesa ainda não se encontrava sedimentada em termos de unicidade gramatical, podendo se dizer que ela era, de um lado a que se falava na corte; e, de outro, entre diversas variantes e no tocante àquela que nos interessa, a língua falada pelos tripulantes das caravelas que aqui aportaram.
E é claro que o nosso paciente leitor há de convir que a primeira missa celebrada em nossas terras – em latim – não deve ter sido compreendida nos seus termos pelos marinheiros portugueses e muito menos pelos índios circunstantes, que tudo viam com muita surpresa.
- Confira aqui a íntegra do artigo.
1 Cf. “Sem data vênia: Judiciário lança iniciativa para facilitar linguagem”, matéria da redação, edição de 12.01.2024.
2 Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2022.
3 Cf. “A grammatica da lingoagem portuguêsa” (Lisboa, 1536) de Fernão de Oliveira (1507-1581) e a linguística portuguesa contemporânea), in abf/rabf/5/090.pdfwww.filologia.org.br/abf/rabf/5/090, acesso em 08.01.0;pdf, 2024.
4 Note-se um engano da Wikipédia, que atribui essa obra erroneamente a Fernand de Saussure, que foi efetivamente um linguista e filósofo suíço, mas que viveu muito depois da edição da gramática em foco, nascido em Genebra em 1857 e falecido em 1913, conforme pesquisa pelo seu nome na Wikipédia.