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A importância da lei 14.811/24 e da tipificação do cyberbullying na sociedade atual

A internet, apesar de benefícios como acesso à informação, também apresenta desafios. A liberdade informática, essencial para o desenvolvimento democrático, exige respeito aos direitos fundamentais, como intimidade e imagem, diante dos riscos associados à publicação online.

25/1/2024

A popularização da internet trouxe consigo inúmeros benefícios, como ampliação do acesso à informação, facilidade de comunicação e troca de informações, entre outros. Entretanto, a característica de alcance global e imediato de qualquer publicação feita on line pode trazer também inúmeros prejuízos quando realizada de forma indevida, nascendo aí a recente relação entre direito e internet.

A rede mundial tornou-se um cenário frágil, e, ao mesmo tempo, amplo, capaz de abrigar vários crimes que até então não existiam de tal forma. Chamamos de liberdade informática a utilização de instrumentos informáticos para informar e para se informar, constituindo um importante fenômeno no desenvolvimento democrático das sociedades contemporâneas. Entretanto, o exercício desse direito, como qualquer direito fundamental, não é ilimitado e requer o respeito aos direitos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem dos cidadãos.

O uso indevido e criminoso do mundo virtual pode propiciar a prática de ofender a honra e a imagem de outros e, com isso, surgem danos emocionais e psicológicos, além dos danos materiais, sendo necessário que o Estado proteja os usuários neste mundo virtual. Nesse sentido, é preciso esclarecer que a atual legislação brasileira, embora com certo avanço, ainda é muito precária e limitada ao tratar do assunto, visto que não há lei específica sobre o tema, abrangendo todas as hipóteses de crimes que podem ser cometidos pela internet.

 Entretanto, é inegável que existe, sim, um pequeno avanço brasileiro quanto ao direito virtual. Temos, por exemplo, o Marco Civil da Internet, lei 12.965/14, que estabeleceu os princípios, direitos e deveres do uso da internet, porém, nada trouxe a respeito dos crimes virtuais ou da responsabilidade penal dos provedores de internet. Ainda nesta toada, há de se falar sobre o artigo 216-B do Código Penal, o qual foi incluído pela lei 13.772/18, que tem por objetivo criminalizar o registro não autorizado de conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado.

Entende-se que são profundas as mudanças diárias que ocorrem no meio da informática, assim como são profundas as mudanças que ocorrem em nossa sociedade como todo, portanto, é necessário atentar-se ao aumento da intensidade e da rapidez com que se propagam os crimes já tipificados em nosso ordenamento jurídico no campo dos crimes virtuais e entender o dilema de termos leis específicas.

No último dia 15 de Janeiro, foi sancionada pelo atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, a lei 14.811/24, que teve origem no PL 4224/21, responsável por incluir os crimes de bullying e cyberbullying no Código Penal e transformar crimes previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA em hediondos, como o sequestro e a indução à automutilação. Tal medida institui a Política Nacional de Prevenção e Combate ao Abuso e Exploração Sexual da Criança e do Adolescente.

Determinada novidade legislativa aborda medidas de prevenção e combate à violência contra crianças e adolescentes em estabelecimentos educacionais ou similares, os entes políticos responsáveis por sua implementação e o desenvolvimento de protocolos de proteção. A lei tipifica Bullying como:

“Intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais”

e fixa como punição a multa, se a conduta não constituir crime mais grave.

Entretanto, faz-se necessário a análise de forma mais aprofundada da extrema necessidade do referido diploma legal na tipificação da conduta conhecida por cyberbullying. O cyberbullying é caracterizado na legislação “se a conduta é realizada por meio da rede de computadores, de rede social, de aplicativos, de jogos online ou por qualquer outro meio ou ambiente digital, ou transmitida em tempo real”.

Em uma breve reflexão acerca da disseminação da internet atualmente, é de fácil percepção que, devido às suas características e peculiaridades, no mundo virtual poderão ocorrer crimes e conflitos mais complexos, com maior intensidade e com danos sociais mais intensos do que os praticados na vida real.

O cyberbullying trata da forma de agressão virtual que visa atingir o psicológico de sua vítima, através de mensagens de celular, fóruns on-line, blogs, e-mails, mensagens através de aplicativos e sites de relacionamentos, como redes sociais.

Normalmente os agressores direcionam seus ataques às características pessoais da vítima, em meios públicos, buscando difamar a imagem pública da vítima e afetando sua autoestima para consigo mesma e para com o coletivo. O grande problema é que a constância destes ataques atinge proporções imensas, e praticamente incontroláveis, pois uma vez que as informações são lançadas na internet, lá permanecem indefinidamente, não têm controle algum. Enquanto o bullying envolve as figuras do agressor e da vítima, no cyberbullying, existe um terceiro personagem: o espectador.

Acerca do espectador, embora este personagem não seja reconhecido como parte atuante no crime, mostra-se fundamental para a continuidade da agressão. Trata-se de uma testemunha dos fatos, entretanto não defende a vítima, e nem apoia os agressores, alguns não compartilham mensagens ou por medo, ou por falta de iniciativa em se posicionar, outros agem como uma plateia ativa ou uma torcida, reforçando a agressão, rindo ou dizendo palavras de incentivo, repassam as mensagens, fazem piadas e se divertem.

É importante destacar que, no cyberbullying, as condutas ganham novas perspectivas e abordagens e, diferente do bullying, as características físicas não têm mais relevante valor na hora do ataque, ou seja, quem é o mais forte ou fraco pouco importa nesse âmbito, pois o agressor fica protegido pela barreira do mundo virtual, podendo ofender sua vítima sem ter de lidar com as consequências como ocorreria se a ofensa fosse pessoalmente.

Ao abordar o tema, Celso Fiorillo e Christiany Conte, afirmam que ele é um gênero que pode ser subdividido nas seguintes espécies: Flaming (ou provocação online), sendo essa a prática que consiste no envio de mensagens vulgares ou que mostram hostilidade em relação a uma pessoa, as mensagens são chamas (flames), pois visam provocar a vítima; e Cyberstalking, o qual é a prática de perseguição on-line. Ainda, podemos citar o outing, trata-se da conduta daquele que envia ou posta material sobre uma pessoa, contendo informação sensível, privada ou constrangedora. Inclui-se aqui as mensagens privadas e imagens.

O ponto chave da discussão se concentra no fato de que o desenvolvimento tecnológico e o mundo contemporâneo em seu atual estágio de globalização facilitam e promovem ferramentas para novas práticas criminosas, em formas e modelos diferenciados daqueles já conhecidos pela sociedade. Em especial a internet, a qual se mostra como um ambiente sem barreiras, fronteiras ou delimitações, simplesmente alcançando dados ou pessoas que, usualmente, não seriam de fácil acesso fora dessa comunidade.

Dessa forma, o espaço cibernético tornou-se um lugar facilitador para os delitos, tendo em vista a facilidade de ocultação do sujeito ativo da conduta através do anonimato e da sensação de impunidade, por ser um local de informação livre e rede aberta de comunicação, deixando assim a ideia de que a liberdade de expressão é a máxima vigente no ambiente virtual. Com isso, é evidente que, a evolução tecnológica é extremamente rápida, e com ela, veio junto a ausência de segurança e proteção legal, abrem-se a cada dia brechas para o crescimento de crimes virtuais.

A lei 13.185/15 instituiu o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (bullying) em todo o território nacional e, no referido título, o  legislador  privilegiou  o diálogo,  a  prevenção e a conscientização como medidas prioritárias. Entretanto, a lei 14.811/24 fixou penas mais concretas e severas para as condutas aqui discutidas e se acredita que a severidade das penas, trazida pela nova lei, deve trazer mais segurança para as vítimas, ainda que seja indispensável a conscientização da comunidade educacional e a sociedade como um todo, para que seja possível a mudança de conduta e de realidade na convivência de crianças, adolescentes e jovens-adultos em um parâmetro geral.

Relatório publicado pela pesquisa “Este Jovem Brasileiro”, realizada em 2014 pelo Portal Educacional revela que, no Brasil, 59% dos professores acham que os alunos não percebem riscos na Internet; 64% sabem  que  alunos  ofendem  uns  aos  outros  na  Internet;  e  73%  afirmam  que  o  cyberbullying  afeta  o relacionamento na escola. A pesquisa do Portal Educacional apontou, ainda, que 37% disseram que já agiram  de  modo  agressivo  na  Internet  e  36%  já  ficaram  tristes  com  problemas  vividos  no  mundo virtual.

Ainda nesse sentido, no ano de 2015, uma pesquisa feita pela Childline  revela  que,  em  2014,  em torno de  45  mil  crianças relataram casos de cyberbullying, sendo que, acredita-se, esse número é apenas uma parcela da prática lesiva, pois a maioria das crianças e adolescentes não revelam o problema, e, assim, muito dos casos da real prática da discutida intimidação compõe os dados apenas da cifra negra da criminologia.

Dessa forma, é evidente que os números são alarmantes e expressivos, demonstrando de forma palpável a necessidade da criminalização das condutas de Bullying e Cyberbullying na sociedade atual, trazendo de forma concreta para o ordenamento jurídico obrigações já previstas  em  nossa  Constituição  Federal, Estatuto da Criança e Adolescente, Código Civil, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira e o próprio Marco Civil da Internet.

Por todo o exposto, é evidente que o advento e popularização da internet trouxeram inúmeros benefícios, como a facilidade de acesso à informação, a comunicação instantânea e sem limites geográficos, a interação social entre os mais diversos grupos pessoais, entre outros. Embora tenha trago uma globalização de forma mais ampla, os benefícios, a facilidade e a disseminação imediata de qualquer informação publicada via internet, bem como a ausência de controle prévio sobre tais publicações gera também inúmeros problemas, tais como violação a direitos personalíssimos, propagação de notícias e informações falsas e, em especial, práticas ilícitas como o cyberbullying.

O Direito Penal, como instrumento de controle da sociedade, não poderia ficar alheio a essa percepção. Assim, é sabido que a legislação brasileira apresenta resposta jurídica possível a alguns dos crimes propagados de forma on line, porém, o advento da lei 14.811/24 é de um avanço no ordenamento jurídico de extrema relevância e necessidade, uma vez que é palpável o aumento do número de violência e vulnerabilidade que assola as crianças e adolescentes no Brasil. Com o advento da nova norma incriminadora, é de se esperar que haja uma maior proteção e fiscalização de cuidados aos menores, os quais vêm sendo vítimas de atos brutais no decorrer da história do direito brasileiro, atos esses que já ensejaram recentemente outras normas penais, à exemplo da Lei Henry Borel.

Ademais, fica evidente que a legislação penal brasileira tem a necessidade do devido amadurecimento no que diz respeito à punição dos crimes praticados em âmbito virtual, não apenas no que diz respeito ao cyberbullying, mas principalmente contra tal prática, o que decorre da (até então) inadequação dos tipos penais preexistentes, da rapidez com a qual a tecnologia se desenvolve, da falta de conhecimento técnico dos legisladores e, ainda, da ilimitada e ardilosa criatividade delitiva dos criminosos.

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ASSIS, José Francisco de. Direito à privacidade no uso da internet: omissão da legislação vigente e violação ao princípio fundamental da privacidade. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVI, n. 109, fev 2013. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-109/direito-a-privacidade-no-uso-da-internet-omissao-da-legislacao-vigente-e-violacao-ao-principio-fundamental-da-privacidade/

AZEVEDO, Ana. Marco civil da internet no Brasil, Rio de Janeiro, RJ: Alta Books, 2014.

BRASIL. LEI 12.737/2012 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011- 2014/2012/lei/l12737.htm

BRASIL, LEI 14.811/2024. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/l14811.htm#:~:text=Institui%20medidas%20de%20prote%C3%A7%C3%A3o%20%C3%A0,Penal)%2C%20e%20as%20Leis%20n%C2%BAs

BRITO, Auriney Uchôa de. Direito Penal Informático. Saraiva. São Paulo, 2013, p. 86.

FIORILLO, Celso Antonio Pacheco; CONTE, ChristianyPegorari. Crimes no Meio Ambiente Digital. Saraiva, São Paulo, 2013, p. 156

_______, Celso Antonio Pacheco; CONTE, ChristianyPegorari. Op. cit., p. 209.

JESUS, Damásio E. de. Apud. FIORILLO, Celso Antonio Pacheco; CONTE, ChristianyPegorari. Op. cit., p. 213.

LEITÃO, Carla Faria; NICOLACI-DA-COSTA, Ana Maria. Impactos da internet sobre pacientes: a visão de psicoterapeutas. Psicol. Estd., Maringá v. 10, n. 3, p. 3, 2015. Apud. FIORILLO, Celso Antonio Pacheco; CONTE, Christiany Pegorari. Op. cit., p. 211.

Dayanne Avelar
Advogada na Barreto Dolabella. Graduada em Direito pelo Instituto de Ensino Superior de Brasília (IESB) e possui experiência em assessoria jurídica e consultoria no contencioso cível.

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