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O debate da reforma tributária leva o direito financeiro a sério?

A EC 132/23, apesar de chamada de reforma tributária, levanta dúvidas sobre sua abrangência. A análise crítica destaca a necessidade de considerar aspectos do direito financeiro para compreender os impactos sobre o federalismo fiscal e o financiamento de políticas sociais.

24/1/2024

Reforma tributária finalmente aprovada e promulgada por meio da Emenda Constitucional 132/23. Levantam-se, contudo, algumas questões:  o nome dessa reforma é adequado? Cuida-se de uma reforma estritamente tributária?

Defende-se que a limitação do debate aos campos do direito tributário simplifica a análise dos efeitos da Emenda. Tal enfoque ignora aspectos de direito financeiro essenciais para a compreensão dos impactos da Reforma sobre o federalismo fiscal e sobre o financiamento de políticas públicas sociais.

Essa provocação reflete uma análise crítica feita em um texto de livre acesso de nossa autoria chamado "Repactuação do Federalismo Brasileiro e Reforma Fiscal", recentemente publicado na Revista PGE/MS – Edição n. 19 de 20231.

O conceito de direito financeiro e o direito tributário

O Direito Financeiro tem como objeto o estudo dos princípios e as regras que regem a atividade financeira do Estado, compreendendo a arrecadação de receitas, orçamento, despesas, controle, partilha federativa e responsabilidade fiscal.2

Na visão de Geraldo Ataliba: “o direito financeiro é o ramo do direito que rege a ação do Estado quando realiza receitas (contratuais ou coativas estas tributárias), guarda e administra dinheiros e os despende (despesa pública)”. Quanto ao Direito Tributário, o autor o classifica dentro do Direito Financeiro, como parte das receitas3.

Segundo Aliomar Baleeiro, o “conjunto das normas que regulam a atividade financeira constitui o Direito Financeiro”, compreendendo todas as instituições financeiras – receitas, despesas, orçamento, crédito e processo fiscal. O direito tributário, por sua vez, limita-se ao campo restrito das receitas de caráter compulsório. Regula precipuamente “as relações jurídicas entre o Fisco, como sujeito ativo, e o contribuinte ou terceiros, como sujeitos passivos”4.

Em contrapartida, finanças públicas e direito financeiro estão intrinsecamente ligados por um só objeto:  a atividade financeira do Estado. A atividade financeira do Estado abrange aspectos da arrecadação, fixação da despesa, endividamento, administração e organização dos recursos econômicos essenciais para atender às necessidades que o Estado assumiu ou delegou a outras entidades de direito público. O estudo das finanças públicas foca nas necessidades públicas, abordando problemas econômicos, políticos e sociais. Já o direito financeiro restringe-se à aplicação de normas sobre o fenômeno financeiro, traduzindo a realidade em efeitos jurídicos.

Passadas por essas questões básicas, a reforma tributária da Emenda Constitucional 132/23 cuida tão somente das relações jurídicas entre o Fisco e contribuintes ou demais particulares?

A reforma fiscal e a repactuação do federalismo brasileiro

O que ficou popularmente denominado como “reforma tributária” é, de fato, uma ampla reforma fiscal que repactua significativamente o federalismo brasileiro.

Não é aleatória a escolha de "reforma fiscal" em oposição à "tributária", na medida em que se pretende corrigir um equívoco que tem prejudicado as discussões sobre o tema. Reconhece-se que a modificação no sistema tributário constitucional traz consigo questões de extrema relevância no campo tributário, devido às propostas de introdução de novos tributos e regras que alterarão substancialmente a dinâmica entre os órgãos fiscais e os contribuintes.

De extrema importância, entretanto, é o viés financeiro inerente à reforma, que altera o panorama do federalismo fiscal e incide diretamente nas relações financeiras entre os órgãos da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, afetando inclusive a forma de financiamento das políticas públicas na federação brasileira. Este ponto, por sua vez, tem sido negligenciado em termos de atenção merecida e proporcional.

A denominação "reforma tributária" pode sugerir que o cerne da reforma reside apenas na questão da arrecadação tributária, limitando-se à relação entre fisco e contribuinte. Contudo, é notável que essa reforma abarca inúmeros outros elementos, como gastos públicos, endividamento, organização das finanças estatais e até questões políticas delicadas, como representação política local (federalismo) e democracia.

O termo “reforma fiscal”, por sua vez, compreende um conjunto de medidas para abordar o endividamento estatal por meio de várias combinações de reduções de despesas e reformas no sistema de arrecadação (tributária ou não) para aumentar a receita pública. Essas reformas, geralmente arquitetadas por grupos de economistas e outros técnicos, podem envolver instrumentos como: (1) programas de regulação de gastos; (2) revisão de processos orçamentários, afetando o equilíbrio entre receita e despesa; e (3) alteração de normas tributárias específicas5. No tocante aos fins, reformas fiscais visam geralmente atender necessidades públicas como: (a) correção de problemas de instabilidade macroeconômica como inflação e volatilidade cambial; (b) combate à pobreza; (c) ajuste de déficits de receitas públicas; e (d) equilíbrio do orçamento público6.

Por seu turno, a ideia de “repactuação” do federalismo não é algo novo no cenário político mundial. Conforme apontado por diversos teóricos, o federalismo é um processo historicamente dinâmico e não estático. Apresentam-se variações nos níveis de centralização e descentralização não apenas entre países, mas também dentro deles no decorrer do tempo. Isso significa que essas variações ocorrem dentro de uma mesma estrutura federal, regional ou unitária. Esse fenômeno não ocorre somente por meio do advento de novas constituições ou de mutações constitucionais, ocorrendo igualmente por meio de emendas constitucionais e alterações em legislações nacionais. Desde a promulgação da Constituição de 1988, o pacto federativo brasileiro vem sofrendo inúmeras alterações. A mais significativa repactuação certamente é a “reforma tributária” votada em 2023, porquanto praticamente extingue as competências tributárias mais importantes dos entes subnacionais, substituindo-as por uma competência tributária colegiada e gerida externamente por um Conselho Intergovernamental.

Aspectos "deixados de lado" no debate

O debate da reforma tributária focou em termos como simplificação do sistema, capacidade contributiva e justiça tributária, abordando principalmente aspectos referentes à relação entre o fisco e os contribuintes. Há inúmeras outras relações de caráter político-financeiro e representativo que não estão sendo abordados de forma satisfatória. Listam-se algumas:

  1. a reforma fiscal aposta na troca da autonomia dos entes subnacionais pela participação destes na gestão do imposto subnacional chamado IBS mediante um Conselho Intergovernamental chamado “Comitê Gestor”. Previsto no artigo 156-B da Constituição, o Comitê Gestor será responsável por uniformizar regras tributárias e financeiras do IBS nos termos da Lei Complementar. Perde-se expressamente a autonomia dos Estados, Distrito Federal e Municípios para legislar sobre seus próprios tributos, que podiam tratar sobre as alíquotas possíveis, regimes específicos de tributação, isenções fiscais e outras questões em legislação estadual ou municipal. Não se sabe se a uniformização normativa conseguirá suprir todas as complexidades econômicas das diferentes regiões brasileiras.
  2. A reforma fiscal privilegia critérios fiscais redistributivos (equalização fiscal) em desfavor do esforço arrecadatório dos entes federados no exercício de suas competências tributárias. Esse processo visa reduzir disparidades financeiras entre diferentes regiões ou unidades administrativas dentro do sistema federativo. O sistema de gestão do IBS tende a ampliar esse sistema de equalização fiscal, porquanto fundado na fusão de dois impostos (ICMS e ISS), centralização arrecadatória e descentralização do produto da arrecadação. A partilha será realizada por meio de critérios previstos em lei e executados pelo Conselho intergovernamental responsável pela partilha (artigo 156-A da Constituição)7. Inclusive alguns critérios de repasse dos estados para Municípios tendem a assumir critérios mais redistributivos em oposição aos critérios devolutivos (que levam em conta as operações tributáveis ocorridas no território dos Municípios) (§2º do artigo 158 da Constituição)8.
  3. Em razão da centralização arrecadatória e descentralização de recursos, aposta-se na eficiência de um sistema de transferências intergovernamentais. Há, no entanto, uma falsa equivalência entre receita própria e receita transferida. O grau de autonomia política para lidar com questões fiscais é diametralmente oposta se for considerada a diferença entre a competência tributária (receita própria) e a competência financeira (receita transferida). Quando possui competência tributária, o governo local pode livremente ajustar sua política arrecadatória para suprir suas necessidades fiscais (despesas e dívidas), aumentando a carga tributária ou direcionando incentivos para determinados setores econômicos estratégicos. No caso da competência financeira, o ente federado beneficiário da partilha fica condicionado à eficiência arrecadatória do ente que detém a competência tributária do imposto de receita partilhada. O ente federado subnacional, outrossim, não tem a liberdade para formular uma política tributária conforme suas necessidades fiscais, ficando sujeito às barganhas políticas com ente central para obter mais recursos. Ignora-se ainda um extenso histórico de litígios judiciais envolvendo fundos de repartição fiscal e transferências em geral no Brasil.
  4. Em relação ao equilíbrio orçamentário, a reforma tende a ampliar, no Brasil, um fenômeno chamado “Ilusão fiscal”: quando o contribuinte não consegue fazer mais o link entre seus tributos e o financiamento de serviços e bens públicos locais, pressionando por mais gastos e endividamento. Essa ausência de link ocorre obviamente quando o governo local é dependente de transferências intergovernamentais e não possui autonomia para tributar. Nessa lógica, eficiente é o governante local que gasta mais com os recursos transferidos.
  5. A perda da autonomia tributária de estados e municípios traz impactos consideráveis, transformando Estados e Municípios em meros lobistas por repasses de recursos. Isso implica a dificuldade de individualização de políticas econômicas conforme as necessidades e perfis de eleitores de cada região no Brasil. A autonomia de Estados e Municípios não pode se resumir a mera execução de planos e leis do governo federal, porquanto o sistema democrático brasileiro é construído pela pluralidade política e cultural de interesses regionais e não pela uniformidade autocrática.

A necessidade de levar o direito financeiro a sério

Com o passar do tempo, a doutrina passou a dar mais atenção ao Direito Financeiro. Muitos estudiosos voltaram seus olhos para essa área até então esquecida e alunos viram nela um vasto campo a ser explorado e tem sido gratificante acompanhar a produção de dissertações e teses que se aprofundam nas instigantes questões da matéria9.

No entanto, ao analisar os debates que resultaram na Emenda Constitucional 132/23, percebe-se que há um descaso com o Direito Financeiro. Isso porque a reforma “tributária” afeta não somente a arrecadação dos membros da federação, mas igualmente como gastam, organizam seus orçamentos, se endividam e controlam suas finanças em geral. Não se pode perder de vista que esses recursos financiam serviços essenciais como educação, saúde, segurança pública, sistema da justiça, entre outros. Percebe-se, logo, que o Direito Financeiro influencia inclusive outros ramos - notadamente em razão de disciplinar a forma pela qual as finanças públicas atingirão as finalidades sociais do Estado.

Adequado, portanto, tomar emprestado de Ronald Dworkin a feliz expressão que utilizou para intitular sua conhecida obra: Levando os direitos a sério (taking rights seriously). Isso porque o que tem faltado é, justamente, que o Direito Financeiro seja levado a sério10 - notadamente na Reforma fiscal.

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1 Link de acesso ao texto: https://www.pge.ms.gov.br/wp-content/uploads/2023/12/Revista-PGE-19-Conti-e-Caio.pdf.

2 CONTI, José Maurício. O planejamento orçamentário da administração pública no Brasil - 1. ed. - São Paulo : Blucher Open Access, 2020, p. 36.

3 ATALIBA, Geraldo. Sistema constitucional tributário brasileiro. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1968. p. 217-218.

4 BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. Forense, 1978, p. 1-10.

5 DIAMOND, John W.; ZODROW, George R. (Ed.). Pathways to fiscal reform in the United States. MIT Press, 2014.

6 TOYE, John. Fiscal crisis and fiscal reform in developing countries. Cambridge journal of economics, v. 24, n. 1, p. 21-44, 2000.

7 Segundo a aprovada redação constitucional do §5º do artigo 156-A:  “§ 5º Lei complementar disporá sobre: I – as regras para a distribuição do produto da arrecadação do imposto, disciplinando, entre outros aspectos: a) a sua forma de cálculo; b) o tratamento em relação às operações em que o imposto não seja recolhido tempestivamente; c) as regras de distribuição aplicáveis aos regimes favorecidos, específicos e diferenciados de tributação previstos nesta Constituição; [...]”.

8 Cuida-se da redação do §2º do artigo 158 da Constituição, que cuida da partilha do imposto IBS dos Estados para os Municípios, com a extinção do critério devolutivo VAF: “§ 2º As parcelas de receita pertencentes aos Municípios mencionadas no inciso IV, “b”, serão creditadas conforme os seguintes critérios: I – 80% (oitenta por cento) na proporção da população; II – 10% (dez por cento) com base em indicadores de melhoria nos resultados de aprendizagem e de aumento da equidade, considerado o nível socioeconômico dos educandos, de acordo com o que dispuser lei estadual; III – 5% (cinco por cento) com base em indicadores de preservação ambiental, de acordo com o que dispuser lei estadual; IV – 5% (cinco por cento) em montantes iguais para todos os Municípios do Estado.”.

9 CONTI, José Mauricio. Levando o direito financeiro a sério: a luta continua [livro eletrônico] - 3. ed. - São Paulo: Blucher, 2019, p.10.

10  Cuida-se de preocupação antiga de um dos autores desse texto, motivando uma coluna de opinião e, posteriormente, um livro: CONTI, José Mauricio. Levando o direito financeiro a sério: a luta continua [livro eletrônico] - 3. ed. - São Paulo: Blucher, 2019.

José Maurício Conti
Professor de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da USP. Mestre, doutor e livre-docente em Direito Financeiro pela USP. Economista. Consultor em Direito e Finanças Públicas.

Caio Gama Mascarenhas
Doutorando em Direito Econômico e Financeiro (USP). Mestre em Direitos Humanos (UFMS). Extensão em federalismo comparado pela Universität Innsbruck. Procurador do Estado do Mato Grosso do Sul.

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