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Por um novo princípio da insignificância: uma contribuição crítica ao HC 834.558

A 5ª Turma do STJ aplicou o princípio da insignificância a uma tentativa de furto de oito frascos de xampu, totalizando R$93. Destaque para a atuação da Defensoria Pública de Goiás e o voto da Ministra Daniela Teixeira.

24/1/2024

A 5ª Turma do STJ, em acórdão de 12 de dezembro de 2023, por maioria, reconheceu a aplicação do princípio da insignificância a uma tentativa de furto de oito frascos de xampu, que, somados, dão um total de R$ 93,00.

Gostaria, primeiro, de destacar a atuação da Defensoria Pública do Estado de Goiás, que não mediu esforços na esfera recursal para reverter uma decisão não adequada às circunstâncias do caso. Judiciário só é chamado a decidir por quem tem coragem para reivindicar o direito. E, em segundo lugar, ressaltar o belo voto vencedor da Ministra Daniela Teixeira, que, apreendendo o correto sentido do Direito Penal, foi capaz de proferir um voto político-criminalmente apropriado.

A Ministra superou a argumentação contrária de que a habitualidade da ré – que é tecnicamente primária – em delitos da mesma natureza seria incompatível com a aplicação do princípio da insignificância, afirmando que “a reiteração, em outras palavras, é incapaz de transformar um fato atípico em uma conduta com relevância penal. Repetir vária vezes algo atípico não torna esse fato um crime”. É de notar, inclusive, que os bens foram integralmente restituídos à vítima e, para além disso, a Ministra também verificou que aqueles requisitos exigidos pelas nossas Cortes Superior e Suprema para aplicação da insignificância – mínima ofensividade da conduta, nenhuma periculosidade social da ação, reduzido grau de reprovabilidade e inexpressividade da lesão jurídica – estavam presentes no caso.

A importância desta decisão vai em duas direções. Primeiro, como dissemos, é a mais adequada ao caso concreto porque se trata de produtos de higiene pessoal e de baixo valor, já que não configura nem 10% do salário mínimo. Por sua natureza subsidiária e fragmentária, o direito penal nada tem a dizer sobre esse fato, a não ser dar o protagonismo a outros ramos do direito mais aptos. Essa pessoa precisa não de restrição de liberdade, mas de acolhimento e – numa sociedade capitalista como a nossa – ter capacidade de compra de mercadorias de necessidades mais básicas: duas tarefas que o direito penal é incapaz de cumprir.

Por outro lado, o voto da Ministra Daniela também joga luz no tratamento desigual e assistemático que nosso direito penal dá aos delitos patrimoniais. Sabemos todos que aos crimes materiais contra a ordem tributária é dado a possibilidade de extinção da punibilidade, a qualquer tempo, se houver pagamento integral do crédito tributário. Esse mesmo tratamento – que, apesar da sua tendência de tornar o processo penal como mecanismo de cobrança de dívida, parece ainda levar em conta a subsidiariedade do direito penal – não é dado a delitos patrimoniais sem violência como o furto, nos quais a coisa pode perfeitamente ser restituída e que representa boa parte de nossa população carcerária.

O cenário é ainda pior se levarmos em consideração que o Supremo Tribunal Federal reconhece a insignificância do não pagamento de tributos federais no valor de até R$ 20.000,00. No âmbito estadual, o Estado de São Paulo, por exemplo, no art. 17 da lei 16.498, de 18 de julho de 2017, autoriza a não propositura de ações fiscais para a cobrança de débitos cujos valores não excedam 1.200 Unidades Fiscais do Estado de São Paulo - UFESPs, que equivalem, em 2024, a R$ 42.432,001. São benefícios que não exigem restituição alguma de qualquer valor.

Agora, casos como esse de habitualidade ou reiteração delitiva em espécies patrimoniais, sobretudo o furto – ao invés de indicar a justificativa para a incidência do direito penal –, talvez seja sintoma da existência de um grupo de casos que não encontra solução a partir dos requisitos jurisprudenciais mencionados. De fato, a reincidência da conduta delitiva não é capaz de tornar uma conduta materialmente atípica em típica, mas não é o fundamental ou essencial. Isso porque, nesses casos, a incidência do direito penal não possibilita ao sujeito ter acesso a mercadorias necessárias, apenas concede uma passagem à prisão. A pena suprime desse sujeito algo que ele já não possui – a liberdade – e, ao mesmo tempo, oferece algo que não o liberta – a reclusão.

Podemos caracterizar esse grupo de casos pela incapacidade econômica do sujeito ter acesso, através da compra, a mercadorias de primeira necessidade, principalmente as de higiene pessoal e as alimentícias. Todo ser social tem direito à propriedade daquela parte da natureza que lhe permite atender suas necessidades mais básicas, ainda que o sistema produtivo imperante transforme tudo em mercadorias acessíveis apenas pela compra. Se tal sistema não consegue garantir que todos tenham a capacidade de acesso à essas mercadorias, não há nada que autorize a utilização do direito penal como instrumento de negação de necessidades propriamente humanas. É como negar a gravidade!

É somente se levarmos em consideração a base material da sociedade – estrutura que, em alguma medida, condiciona-nos – que poderemos oferecer um critério científico e com capacidade de rendimento prático para lidar com esse grupo de casos. Deve-se agregar àqueles quatro requisitos para aplicação do princípio da insignificância mais um, o qual deve funcionar como um topos e deve ser confirmado para que se possa passar à análise dos outros: capacidade de compra de mercadorias para subsistência digna.

Espera-se que com este novo critério a jurisprudência possa ter em mãos uma ferramenta dogmática adequada para correção de falhas sistêmicas e não só com grande capacidade de rendimento para esse grupos de casos, mas, também, crítica frente a uma realidade material que impõe decisões político-criminais que a combata.

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1 Índice pode ser encontrado no site: https://portal.fazenda.sp.gov.br/Paginas/Indices.aspx.

Luca Parentoni
Advogado criminalista, sócio do escritório Parentoni Advogados. Graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie, participou da VII Escola Alemã de Ciências Criminais realizada pelo Centro de Estudos de Direito Penal e Processo Penal Latino-americano (CEDPAL) da Universidade Georg-August de Göttingen (Alemanha), especializando-se em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Portugal, é parecerista, responsável pela área consultiva de temas específicos do Direito Penal e Penal Econômico, atuante nos Tribunais Superiores. Membro do IBRADD - Instituto Brasileiro do Direito de Defesa e do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

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