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O garantismo e seus efeitos

A pergunta que deveria anteceder a todas as discussões sobre criminalidade é se ela agrava ou atenua a pobreza. Ainda que se despreze os números e se entenda que os crimes são gerados pela pobreza e desigualdade, não há dúvida que a criminalidade agrava o sofrimento dos mais carentes, destrói as famílias e inviabiliza o crescimento econômico nas áreas mais afetadas.

16/1/2024

O fim do Regime Militar, em 1984, veio acompanhado do crescimento do chamado garantismo. Essa corrente doutrinária do direito penal defende a prevalência do direito do criminoso à liberdade, mesmo que em detrimento do direito dos demais membros da sociedade à vida, ao patrimônio e à integridade física.

Alegam os garantistas que a cadeia não regenera e até agrava a periculosidade dos criminosos, pois conviverão com outros. Por isso, as penas devem ser curtas e leves. Esse argumento nunca foi demonstrado com fatos, o que poderia ser apurado analisando a vida pregressa dos chamados réus primários.

O garantismo ignora que é difícil ficar preso no Brasil antes de cometer vários crimes. ”Ladrões de galinha” não chegam aos presídios. Também despreza a óbvia realidade do convívio social dos criminosos enquanto soltos, bem como a função de neutralização temporária, essencial para a proteção dos demais cidadãos.

A premissa implícita dos garantistas é que os criminosos podem se regenerar naturalmente enquanto estiverem soltos e cometendo crimes. Ou seja, enquanto usufruírem apenas do lado bom do crime. Esperam que pessoas que optaram por desprezar valores fundamentais e o convívio social saudável se arrependam voluntariamente.

Essa leviana presunção não leva em conta que os crimes são planejados e os criminosos precisam se esconder, o que é inviável sem conviver com outros criminosos e incompatível com uma vida regular de estudo e trabalho

O garantismo também esquece que os indivíduos derivam para o crime por preferirem o ganho fácil do que percorrer o caminho lícito. Essa opção pelo crime evolui e se aprofunda a cada dia em que os criminosos convivem com outros no planejamento, execução, fuga e guarda do produto dos crimes.

É a convivência ativa que gera o aperfeiçoamento na vida criminosa, não a mera convivência passiva no ambiente dos presídios. Nas cadeias os criminosos conhecem o lado ruim do crime. Quanto mais cedo tiverem contato com as consequências dos seus atos, maior a chance de mudarem de rumo.

Nos últimos quarenta anos, foram aprovadas diversas leis garantistas em prol da impunidade, sempre acentuadas pela jurisprudência. A lista começa com a nova Parte Geral do Código Penal e a Lei de Execuções Penais (leis 7.209 e 7.210/84), que instituíram o regime aberto e facilitaram o livramento condicional, entre outras benesses.

Na sequência, veio o Estatuto do Menor (lei 8.069/90), que dificultou a internação de menores delinquentes, a exigência de audiências de custódia para manter prisões (lei 13.964/19) e farta jurisprudência voltada a anular prisões, condenações e flagrantes em geral, além de autorizar várias saídas temporárias de presos.1

Os defensores de tais normas alegam que a criminalidade é fruto da pobreza e da desigualdade e, por isso, não deve ser rigorosamente atacada sob pena de punir os mais pobres. Essa tese, que busca, simultaneamente, explicar e justificar os crimes, não resiste à análise dos fatos.

Primeiro, porque as vítimas mais frequentes dos crimes são exatamente os mais pobres, pois representam a maioria da população. Além disso, são muito mais vulneráveis por usarem transporte público, viverem próximos dos criminosos e não contarem com as estruturas condominiais de proteção. Se a preocupação dos garantistas fosse realmente com os mais carentes, deveriam defender o rigor penal para protegê-los.

Segundo, porque existem mais de cem países bem mais pobres que o nosso, mas com criminalidade muito menor. Em 2023, o Brasil se manteve na liderança do total de mortes violentas (homicídio, latrocínio e sequestro), com quarenta e sete mil. Em 2021, a taxa brasileira de mortes violentas foi de 22,38 por cem mil habitantes, o que nos deixa em 11° lugar, em quase duzentos países pesquisados.2

Em 1980, quando o Brasil era bem mais pobre e até um pouco mais desigual, a taxa de mortes violentas por cem mil habitantes era de 11,693. A título de comparação, a média da África em 2021 foi de 12,74, sendo que todos os seus países são mais pobres que o Brasil e vários deles mais desiguais.5

Por fim, os garantistas desconsideram a enorme redução da pobreza ocorrida nas últimas décadas. O índice de Desenvolvimento Humano - IDH brasileiro subiu de 0,61 em 1990 para 0,75 em 20216, principalmente em razão da grande redução da natalidade.7

Em sentido oposto ao da redução da pobreza, a população carcerária do Brasil não para de crescer. Passou de 233 mil, em 2000, para 832 mil presidiários em 20228, sendo que a população aumentou apenas 50% nessas duas décadas (de 137 para cerca de 203 milhões de habitantes).9

A comparação entre os dados de redução consistente da pobreza com o aumento significativo da criminalidade, associada à análise isenta da evolução legislativa e jurisprudencial do Brasil nas últimas décadas, evidencia que é a impunidade, não a pobreza, que ceifa vidas em nosso país.

A pergunta que deveria anteceder a todas as discussões sobre criminalidade é se ela agrava ou atenua a pobreza. Ainda que se despreze os números e se entenda que os crimes são gerados pela pobreza e desigualdade, não há dúvida que a criminalidade agrava o sofrimento dos mais carentes, destrói as famílias e inviabiliza o crescimento econômico nas áreas mais afetadas.

Essas inevitáveis consequências completam um círculo vicioso e justificam a séria repressão ao crime. Contudo, isso não ocorre porque as leis penais lenientes são produzidas pelos legisladores frequentemente envolvidos em ilícitos, apoiados pelos advogados criminais, que se beneficiam dos ilícitos. 

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1 STJ, REsp 2069822 / MG, 2023/0149392-1, Relator Ministro JESUÍNO RISSATO, 28/11/2023;  STJ, HC 852356 / RS, 2023/0322258-8, Relator Ministro JESUÍNO RISSATO, pub. 16/11/2023. Anulando flagrante em razão de revista não autorizada.

Súmula vinculante do STF n° 11, restrição ao uso de algemas.

REsp 1544036 / RJ, 2015/0173247-8, recurso repetitivo, Relator Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, 3ª SEÇÃO, pub. 19/09/2016.  Saída temporária de presos não prevista em lei e independentemente de decisão judicial no processo.

2 Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutschewelle/2023/12/08/brasil-lidera-ranking-de-homicidios-no-mundo-mostra-estudo-da-onu.htm e https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/dados-series/20

3 Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/dados-series/20

4 Disponível em: https://sicnoticias.pt/mundo/2023-12-08-Brasil-lidera-lista-dos-10-paises-com-mais-mortes-violentas-44dcf34c

5 Os mais desiguais são Botsuana, índice de desigualdade 53,3, Angola (51,3) e Zimbabué (50,3). Nosso índice é igual ao do Congo - (48,9).

6 Disponível em: https://www.ecodebate.com.br/2022/09/12/idh-do-brasil-recuou-pela-primeira-vez-em-30-anos/#:~:text=O%20gr%C3%A1fico%20abaixo%20mostra%20que,um%20IDH%20global%20de%200%2C724.

7 Disponível em: https://www.seade.gov.br/entre-2000-e-2020-o-numero-medio-de-filhos-passou-de-208-filhos-por-mulher-para-156/https://www.google.com/search?q=natalidade+brasil+2023&oq=natalidade+brasil+2023&gs_lcrp=EgZjaHJvbWUyCQgAEEUYORiABDIICAEQABgWGB4yCAgCEAAYFhgeMggIAxAAGBYYHtIBCDY1ODJqMGo5qAIAsAIA&sourceid=chrome&ie=UTF-8

8 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/07/brasil-tem-832-mil-presos-populacao-carceraria-e-maior-que-a-de-99-dos-municipios-brasileiros.shtml

9 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/07/brasil-tem-832-mil-presos-populacao-carceraria-e-maior-que-a-de-99-dos-municipios-brasileiros.shtml#:~:text=A%20popula%C3%A7%C3%A3o%20prisional%20no%20Brasil,anos%20(43%2C1%25).

Fernando Lemme Weiss
Advogado, mestre e doutor em Direito Público pela UERJ

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