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As lições do Tribunal Penal Internacional para Ruanda sobre os limites da liberdade de expressão

No julgamento do genocídio em Ruanda importantes lições sobre os limites da liberdade de expressão nos meios de comunicação, discursos de ódio e o chamado “álibi democrático” foram apresentados.

10/1/2024

No dia 7 de fevereiro de 2022, durante a transmissão do podcast Flow, um fato em particular alcançou grande repercussão nacional. Na ocasião, o apresentador Bruno Monteiro Aiub (Monark) entrevistava os deputados federais Kim Kataguiri e Tabata Amaral e, ao debaterem sobre a extensão do direito à liberdade de expressão, aquele se posicionou favoravelmente à criação de um partido nazista, assim como ao direito de um indivíduo ser antijudeu. O apresentador fundamentou suas ideias no fato de que dentro do campo da liberdade de expressão tudo seria válido. Na sequência, as declarações do apresentador foram amplamente divulgadas e objeto de severa repulsa por parte da sociedade. O apresentador, então, retratou-se publicamente e apresentou suas justificativas a respeito do equívoco cometido.

O fato em questão é, por certo, grave, sobretudo quando considerado o alcance que o programa pode ter e o efeito que tais declarações podem causar em determinados ouvintes. Em tempos de terrorismo do “lobo solitário” (lone wolf terrorist) e outras formas de acentuada intolerância, certas palavras irradiam efeitos muito além do imaginável. O efeito borboleta, teorizado em 1972 pelo matemático e meteorologista Edwar Norton Lorenz, aduz que o “bater de asas de uma borboleta no Brasil pode gerar um tornado no Texas” (Franko, 2019). Nessa linha, ainda que não se possa evidenciar qualquer intento genocida nas declarações de Monark, deve-se ponderar que uma mensagem difundida em um canal de comunicação de grande alcance pode se tornar uma fagulha, cujos desdobramentos podem ser extremamente nocivos e com danos inestimáveis.

Em sede doutrinária, a questão entre os limites e diferenças de discursos de ódio (hate speech) e a incitação ao genocídio são amplamente debatidos. Infelizmente, não são poucos os casos na história em que meios de comunicação foram indevidamente utilizados para disseminar a eliminação de determinados grupos. Além do notório caso envolvendo os judeus e outras minorias na Alemanha nazista, outro exemplo recente evidencia relevantes elementos fáticos e jurídicos para a compreensão da dimensão da liberdade de expressão em se tratando do direito à existência humana: o genocídio em Ruanda em 1994.

A respeito desses fatos, importa-se rememorar questões históricas e circunstanciais que contribuíram para a irrupção das atrocidades cometidas. Ruanda é um país de pequenas dimensões territoriais localizado na região da África Central e que teve sua configuração social substancialmente influenciada por seus colonizadores alemães e belgas, com particular ênfase no último grupo. O país que possuía mais de dezoito clãs no início do século passado, passou por um intensivo processo de “catalogação” da população entre Hutus (maioria, aproximadamente 84%), Tutsi (15%) e Twa (1%). A partir de 1930 as autoridades belgas passaram a exigir que todo ruandês carregasse um documento de identidade que comprovasse o seu vínculo com um dos grupos. Mesmo após a independência do país a distinção permaneceu até os trágicos eventos de 1994. Os Tutsis desfrutaram durante anos de uma posição social mais favorável, o que com os anos gerou acentuado ressentimento entre os Hutus. Com efeito, em 1959 os Hutus derrubaram a monarquia em Ruanda, o que levou à fuga do país de milhares de Tutsi. No início da década de 90, porém, Tutsis que se encontravam no exílio se organizaram e lançaram incursões no território ruandês objetivando retornar e tomar o poder. Após anos de conflitos, um acordo de paz foi firmado em 1993 entre o governo e os membros das forças revolucionárias rebeldes. No entanto, o acordou durou pouco tempo e no dia 6/4/94 o avião que transportava o presidente Juvenal Habyarimana foi derrubado quando se preparava para pousar na capital Kigali. Tal ocorrência foi o estopim para as atrocidades que se seguiriam.

Na sequência, líderes Tutsis foram acusados de serem os responsáveis pela morte do presidente e uma desenfreada matança teve início no país. Hutus munidos de facões, machados, enxadas e outros instrumentos passaram a perseguir e matar Tutsis e alguns Hutus moderados. Durante o ocorrido, a Radio Télévision Libre de Mille Collines - RTLM teve papel fundamental na propagação do genocídio. A rádio possuía um grande alcance no país e não apenas incitou diretamente o genocídio, como também fabricou supostos ataques dos grupos revolucionários Tutsis e transmitiu informações para as milícias locais sobre onde estariam grupos Tutsis. Em suas transmissões diárias, a rádio fazia chamadas sobre “notícias quentes”. Para impulsionar a agressividade e facilitar as mortes, a rádio continuamente se referia aos Tutsis como “baratas”. Seguindo essa linha, o jornal extremista Kangura chegou a afirmar que “uma barata não pode gerar uma borboleta. Uma barata gera apenas outra barata” (Des Forges, 1999). É certo, pois, que a tática de desumanizar uma pessoa não é inédita, valendo lembrar como os nazistas se referiam aos judeus como sendo “ratos”. Ao desumanizar a pessoa fica muito mais fácil matá-la. Em uma transmissão feita em 29 de março de 1994, o apresentador Kantano Habimana, de forma irreverente, afirmou que “se você cura o olho de um Tutsi, ele irá usá-lo para te amaldiçoar e se você convida um Tutsi para sua casa, ele irá dormir em sua cama” (Karnell, 2003). Como se pode perceber, desenvolveu-se uma contínua e sistemática desconstrução da imagem dos Tutsis como seres humanos.

Como resultado desses eventos, em pouco mais de cem dias entre 500.000-800.000 pessoas foram mortas. Diante do horror dos acontecimentos, o Conselho de Segurança da ONU, em conformidade com os poderes previstos pelo capítulo VII, da Carta das Nações Unidas, editou a Resolução n. 955 determinando a criação de um tribunal responsável para analisar e julgar os crimes cometidos em Ruanda no período de 1/1/94 até 31/12/94. Sob esses termos, o Tribunal Penal Internacional para Ruanda foi criado e instalado na cidade de Arusha, Tanzânia. Entre figuras proeminentes que foram julgadas pelo tribunal, particular atenção recebeu os casos envolvendo pessoas vinculadas aos meios de comunicação. Após analisar os fatos, o tribunal condenou Ferdinand Nahimana e Jean-Bosco Barayagwiza, responsáveis pela Radio Télévision Libre de Mille Collines - RTLM, à pena de prisão perpétua e trinta e cinco anos de reclusão, respectivamente. Apesar das objeções da defesa, argumentando, pois, que tais condenações eram um retrocesso no direito à liberdade de expressão, o juiz Navanethem Pillay afirmou o intento genocida em incentivar a “exterminação das baratas”, assim como que “sem utilizar armas de fogo, empunhar uma faca ou qualquer arma física, vocês causaram a morte de milhares de civis inocentes” (National Post, 2003). O “álibi democrático” não foi acolhido, sobretudo quando ficou evidente que a “radio havia se tornado um instrumento para homicídio em massa” (Thompson, 2007). O painel de magistrados ainda esclareceu que os réus deveriam saber que o conteúdo que estava sendo transmitido provavelmente desencadearia violência, dado o clima político em Ruanda na época. O juiz Navanethem Pillay ainda asseverou que Ferdinand Nahimana “escolheu o caminho do genocídio e traiu a confiança que nele foi colocada como líder intelectual”, assim como “teria envenenado a mente de sua audiência” (National Post, 2003). Outrossim, relevante destacar que uma das testemunhas ouvidas pelo tribunal declarou que:

“Matar é muito desencorajador se você decide fazê-lo por si mesmo, mas se você está obedecendo ordens de autoridades, se você é condicionado, se você se sente empurrado e atraído, se você vê que a carnificina não terá qualquer efeito adverso no futuro, você se sente confortado e revitalizado. Você faz isso sem qualquer vergonha. Encara com alívio e sem qualquer relutância. Nós fomos eficientemente condicionados pelas transmissões da rádio e pelos conselhos que ouvíamos” (Hatzfeld, 2003).

Delineado esse contexto, é possível ver que apesar da hediondez dos fatos cometidos, o argumento da liberdade de expressão foi invocado de forma pujante pela defesa. Das provas carreadas nos autos ficou evidente o chamado direto para o genocídio, o qual, em um contexto de alta tensão política, foi considerado de forma incontroversa com um gatilho para a ação dos génocidaires.

O Tribunal Penal Internacional para Ruanda condenou os principais envolvidos no que ficou conhecido como “media trial”. O tribunal sopesou o alcance da rádio no país, a influência exercida nos ouvintes, o conhecimento direto e eventual dos líderes e agentes envolvidos sobre o que as suas palavras poderiam produzir no contexto político vivenciado, o teor desumanizador e agressivo das palavras e discursos proferidos e, assim, o irrefragável nexo entre a incitação perpetrada e o genocídio que se sucedeu.

Posteriormente, com o Estatuto de Roma e a criação de uma instituição permanente para julgar crimes contra a humanidade, o Tribunal Penal Internacional, restou enfatizada uma maior responsabilidade por declarações que possam implicar em genocídio, afora aquela já prevista pelo Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio de 1948. Conforme o artigo 25, parágrafo terceiro, alínea “e”, do estatuto, será responsável criminalmente aquele que “no caso de crime de genocídio, incitar, direta e publicamente, à sua prática”.

Todas essas premissas evidenciam que à liberdade de expressão é um bem indiscutivelmente importante, porém extremamente sensível e que não pode ser desvirtuado sob um pretenso álibi democrático, conforme assentou o Tribunal Penal Internacional para Ruanda.

Certas práticas precisam ser cessadas em definitivo. Não existe “ódio democrático”, sobretudo quando as ideias de determinado grupo ou ideologia se opõem frontalmente ao direito à vida de certos indivíduos. Por que essa preocupação em assegurar um espaço para o ódio declarado? Ainda que o apresentador Monark não tenha tido qualquer intento genocida - como é facilmente perceptível em suas palavras - acabou, todavia, sendo displicente em seus dizeres. O suposto direito em ser antijudeu implica no direito de autorizar alguém a poder considerar o outro como um rato e, assim, tratá-lo como. A busca pela desumanização de determinados grupos infelizmente é cíclica. Armênia, Alemanha, Ruanda, Iugoslávia, Serra Leoa e outros tantos casos são uma prova palpável da existência de ódio contido apenas esperando certos gatilhos para eclodir. No julgamento em Ruanda ficou nítido o poder que pequenas concessões produzem e que com o acúmulo de outras propiciam um desate de atos de proporções inimagináveis.

Em tempos de ainda acentuadas tensões sociais e políticas, a ousadia está em propagar o bem, o perdão, a pacificação. Não é defensável buscar projeções ultrapassando limites como se tudo fosse relativo e dependesse de um determinado ponto de vista. Sobre os meios de comunicação recai uma maior responsabilidade, haja vista o potencial de influência que possuem sob suas audiências. O jornalista americano Edward Murrow, ao defender um jornalismo responsável na televisão, afirmou que: “Este instrumento pode ensinar, pode iluminar; sim, e pode inclusive inspirar. No entanto, pode fazer isso apenas na medida em que os humanos estão determinados a usá-lo para esses fins. Do contrário, não são nada além de fios e luzes em uma caixa. Há uma grande e talvez decisiva batalha a ser travada contra a ignorância, a intolerância e a indiferença. A arma da televisão pode ser útil”.

Como nota conclusiva, vale refletir que controlar o que se diz é um ato individual, ao alcance de qualquer pessoa, seja qual for sua crença ou ideologia, e que em um conjunto maior produzirá uma consciência coletiva do bem. O Tribunal Penal Internacional para Ruanda procurou depurar os limites da expressão e assegurar a primazia da vida. Deve-se, pois, resgatar uma reverência e temor pelo conhecimento. Palavras levianas e displicentes de ódio, sejam elas ativas ou reativas, devem ser cessadas. É tempo, no Brasil e no mundo, de incitar o bem, sem medida, tornar a “excentricidade” do bem exaustiva e o tom maior para que eventos como o de Ruanda e outros lugares nunca mais se repitam.

Fernando Procópio Palazzo
Assessor jurídico. Mestre em Criminologia pela Erasmus Universiteit Rotterdam e pela Universiteit Ghent. Membro da CSSN (Brown Univeristy) e da European Society of Criminology (ESC).

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